Thursday, November 24, 2005

Resenha do Livro Antropologia Infernal

SERRA, Ordep. Veredas: antropologia infernal. Salvador: EDUFBA, 2002.

por Milton L. Torres

O livro de Serra contém dois ensaios: o primeiro (“Arqueologia do símbolo”) é uma discussão da estrutura do símbolo e dos mitos no horizonte da cultura helênica; o segundo (“Tempo afora: estudo de antropologia infernal”), mais próximo do título da obra, aborda o tema das catábases, isto é, das viagens aos infernos, estes definidos como “o mundo dos mortos”. O autor tem certa dificuldade em articular os dois temas e, exceto pela metodologia e pelo pano de fundo antropológico e helenista, o resultado é que este parece mesmo tratar de assuntos para os quais não consegue estabelecer uma ligação evidente. Daí uma das principais deficiências da obra: a falta de uma conclusão. Apesar disso, Serra oferece uma série de reflexões provocativas acerca da maneira como os mitos da Antigüidade e a literatura com eles relacionada podem informar nossa concepção da realidade.
A metodologia empregada pelo autor nos dois ensaios é a da exemplificação e análise literária aplicadas às questões antropológicas e etnológicas, tendo como ponto de partida o universo greco-romano, no primeiro ensaio, e o Renascimento, no segundo. Sua premissa é que as respostas imaginárias dadas pelas diferentes culturas podem contribuir para uma melhor compreensão da percepção que a humanidade tem das fronteiras da vida. No caso do primeiro ensaio, Serra lida com o universo familiar dos poemas homéricos e hesiódicos, dos diálogos platônicos e do drama grego, com ocasional recurso a Foucault e à etnografia, sempre preocupado com os aspectos simbólicos dos ritos hospedais (dentro do arcabouço das práticas de xenia e potlatch) e nupciais. Sua tese, aí, é que “o uso do enigma nos ritos e mitos evoca, freqüentemente, a problemática do conúbio, as vicissitudes da distinção e da união sexual de homem e mulher” (p. 58). No segundo ensaio, contudo, o recurso à literatura extrapola os limites helenistas da epopéia, do drama e da filosofia, e envolve outros campos literários e epistemológicos, incluindo referências às obras de Hawthorne, Irving, os irmãos Grimm, Gautier Map, Borges, Santayana, Milorad Pávich, Schelling, Lévi-Strauss e Lewis Carrol, entre outros. O principal objetivo do segundo ensaio é analisar os aspectos liminares da morte e do sono sob a perspectiva proposta por Schelling segundo a qual a Divina comédia teria sido um elemento norteador no “delineamento de uma problemática definida pela convergência crítica de questões fundamentais sobre a identidade, o tempo e a comunicação” (p. 128) no que estas diriam respeito à filosofia e à antropologia. Serra é relativamente bem sucedido em sua empreitada, embora alguém pudesse esperar mais antropologia em meio ao abundante uso que o autor faz das fontes literárias. Também pode causar estranheza o papel de destaque que atribui ao romance Dicionário Kazar, de Pávich, cuja proeminência, no ensaio, só cede lugar à do épico dantesco, mas que não goza, absolutamente, da mesma popularidade em outros círculos.
O livro tem formato apropriado e sua diagramação é atraente, contudo a quantidade de incorreções e descuidos editoriais chega a ser incômoda. Com efeito, a primeira palavra da obra (porquê) é grafada incorretamente (p. 7), erro repetido na página seguinte. A isso se seguem erros de concordância nominal (p. 44, 56, 69, 73, 98, 122, 164, 167) e barbarismos ortográficos (como engimático por enigmático na p. 169). Essa dificuldade aparece principalmente na grafia das palavras estrangeiras: irredeamable, em vez de irredeemable (p. 11), Zálmóxis aparece, desnecessariamente, com dois acentos (p. 96), through é grafado thorough (p. 152), don’t aparece como dont, couldn’t como could’nt e isn’t como is’nt (p. 157). Entre as palavras da língua portuguesa várias têm acentuação incorreta: juizes (p. 18), o tempo para, em vez de o tempo pára (p. 94), outrém (p. 146), judaíco (p. 172). O erro mais comum é a insistência em acentuar os verbos da terceira conjugação quando acompanhados de ênclise: reduzí-los e dividí-los (p. 30), definí-lo (p. 38) e perseguí-las (p. 56). O erro mais grave é grafar consistentemente o termo potlatch como se fosse potlacht (p. 47, 55, 84). O descuido é indesculpável uma vez que o termo é muito comum nas discussões antropológicas dos ritos hospedais e nupciais, tema principal do primeiro ensaio e tema incidental do segundo.
Além da falta de uma tentativa de conclusão à obra, uma outra grande deficiência está no referenciamento bibliográfico. O texto tem sua origem em um curso oferecido pelo autor, em 1990, na Universidade Federal da Bahia (cf. p. 11). A bibliografia já aparentemente defasada na época do curso parece ter sofrido atualização mínima para o livro. Um exemplo banal disso ocorre quando Serra menciona o cinema como possível fonte para o estudo das possibilidades advindas com o “congelamento de pessoas para posterior reanimação” (p. 76) e chega a mencionar algumas produções mais antigas, mas omite o caso mais recente do filme Vanilla Sky. Talvez fosse tarde demais para isso, uma vez que o filme foi lançado em dezembro de 2001 (numa adaptação do filme Abre los Ojos, de Alejandro Almenábar, lançado em 1997), mas alguns exemplos clássicos também estão faltando. No caso da literatura, Serra poderia ter mencionado o caso de Ulisses e sua permanência na ilha de Circe e na caverna insular de Calipso quando trata “de lugares onde a existência é subtraída ao fluir do tempo” (p. 77), mas é uma pena que não o faça. Circe foi, afinal de contas, quem admoestou Ulisses a empreender sua catábase (Canto X da Odisséia) e Calipso o manteve em um lugar onde o fluxo do tempo se dava de modo excepcional (Canto V da Odisséia). Além disso, os nomes dos autores consultados apresentam discrepâncias ocasionais (por exemplo: Nmuendaju, p. 162, ou Nimuendaju, p. 170?). Para piorar, algumas obras citadas nos rodapés e no corpo do segundo ensaio simplesmente não aparecem na bibliografia: Cunha 1978 (nota 19), Laraia 1967 (nota 27), por exemplo. O estilo de Serra peca, ainda, por sua insistência em parágrafos excessivamente curtos que, muitas vezes, produzem uma certa fragmentação do fluxo dissertativo à moda de solavancos inesperados.Apesar de suas limitações, a obra é admirável por causa do profundo conhecimento que o autor demonstra em relação aos temas tratados bem como sua riqueza vocabular e força expressiva. Além disso, Serra surpreende o leitor com a facilidade com que usa tanto o tratamento alegórico quanto o estudo tautegórico dos mitos, com nítida preferência pela segunda modalidade (cf. p. 126ss). O autor consegue, ainda, fazer emergir questões decisivas para as chamadas ciências humanas, sugerindo relevantes insights para temas tão profundos quanto o da etnogonia e o da percepção dos limites cognitivos e existenciais da humanidade, incluindo a concepção que esta tem da morte.

publicado originalmente em Formadores: Vivências e Estudos, Cachoeira, BA, v. 1, n. 2, p. 301-303, 2005.