Saturday, November 24, 2007

Resenha do Livro Textos Hipocráticos

CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR., Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Coleção História e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. 251 pp.

por Milton L. Torres

A obra de Cairus e Ribeiro vem preencher uma lacuna deixada imperdoavelmente vazia por longos anos: a tradução para o vernáculo de alguns dos mais importantes tratados do Corpus hippocraticum, a coletânea de obras médicas (em sua maioria atribuídas pelos antigos a Hipócrates de Cós, o pai da medicina). A primeira parte da obra, sob a responsabilidade de Cairus, inclui três tratados (Da doença sagrada, Ares, águas e lugares e Da natureza do homem), elencados pelo tradutor a fim de demonstrar a relevância do Corpus hippocraticum para a história da medicina, a filosofia e a antropologia. A segunda parte, sob os cuidados de Ribeiro, inclui os tratados deontológicos (o Juramento, a Lei, Do médico, Do decoro e os Preceitos) que estabelecem a “etiqueta” médica, na antigüidade, e lançam as bases da ética médica.
A tradução, embora apenas parcial, do Corpus hippocraticum é, indubitavelmente, uma contribuição notável aos estudos filológicos clássicos e à história da medicina. Embora os tradutores advirtam que “o estilo duro e visceralmente anti-literário dos tratados do Corpus hippocraticum foi observado” (p. 41), notamos, com satisfação, que a tradução tem um fluxo agradável e é bastante elucidativa. É provável, no entanto, que haja alguns pontos em que o observador atento note algumas discrepâncias. Nos poucos pontos em que comparei o texto grego com a tradução (com a finalidade precípua de verificar a acuracidade da mesma), notei, modestamente, apenas um pequeno descuido no fim do § 9 do tratado Da natureza do homem, onde a tradução “e emagrecendo os corpos” para kai ta sōmata leptunonta, embora literal, poderia ser menos ambígua se a expressão grega fosse vertida como “enquanto emagrecem os corpos”. Algumas falhas tipográficas poderiam ter sido evitadas, no entanto, com uma revisão mais atenta. A título de exemplificação, menciono as seguintes incorreções: “carregada pus” em vez de “carregada de pus” (p. 48), o aparecimento inexplicável do número 17 quase no fim do § 15 de Da natureza do homem (p. 50), “doenças segradas” (p. 131), “marocéfalos” em vez de “macrocéfalos” (p. 139), “soemente” (p. 140), a palavra “partem” desnecessariamente grafada em caracteres gregos (p. 141), “cáuticos” em vez de “cáusticos” (p. 141), “ajuda” em vez de “ajudam” (p. 183), entre outros tantos erros. Na seção sob os cuidados de Ribeiro, aparece um número consideravelmente alto de palavras desnecessariamente hifenizadas, como, para citar uns poucos exemplos, “evi-tando” (p. 152), “res-peitar” (p. 154), “apre-sen-tam” (p. 169), etc. Esses pequenos descuidos também ocorrem no texto grego: a palavra pana keian, por exemplo, aparece indevidamente separada (p. 152) e há uma frase aparentemente incompleta na nota 293 (p. 179).
A contribuição de Ribeiro será, provavelmente, mais útil uma vez que ele depende menos de Jouanna e Littré e, principalmente, apresenta comentários para os tratados por ele traduzidos. Em vez de comentar seus textos, Cairus nos remete, invariavelmente, a discussões preliminares e de menor peso (como as questões de autoria e data) já empreendidas por outros autores, especialmente os francófonos (o que explica, por exemplo, sua preferência por chamar Dênis a Dionísio de Halicarnaso).[1] Cairus, aliás, depende excessivamente de fontes secundárias, “apud” sendo, aparentemente, uma de suas palavras favoritas. Ribeiro é mais ousado, fornecendo-nos, de fato, interpretações úteis (e geralmente plausíveis) para as traduções que nos oferece. Um exemplo de sua preocupação em facilitar as coisas para o leitor é sua decisão de incluir um pequeno esboço gráfico das ventosas (p. 189), instrumentos médicos descritos no § 7 do Do médico. Gostaria, no entanto, de que ele tivesse tomado mais tempo para desenvolver sua tese de que os médicos não cuidavam dos doentes nos templos de cura (p. 175), que me parece vai de encontro à opinião já estabelecida entre os classicistas.
Os tradutores demonstram um louvável respeito pela arte médica, mas duvido que tal respeito tivesse sido partilhado pelos contemporâneos da coleção hipocrática, afinal de contas, a medicina era uma technē e há documentação abundante de que a aristocracia greco-romana via, com desfavor, qualquer atividade que dependesse do uso das mãos. Os autores demonstram uma certa relutância em aceitar a possibilidade da existência de escravos engajados na prática da medicina (p. 160), incorrendo mesmo na temeridade de usar o argumento do silêncio para declarar que só os escravos de médicos livres podiam atuar como médicos (mas sem prestar o juramento de Hipócrates!). Os tradutores parecem, às vezes, defender a posição reducionista de que a medicina deveria ter “a primazia entre as ciências” (p. 32). Numa época em que tão recentemente se discutiu o assim-chamado Ato Médico, não sei se os demais eruditos concordariam com os tradutores de que os médicos teriam sido os primeiros a interrogar a natureza com o espírito aberto (p. 33). Isso explica também por que aplaudem “a valiosa contribuição de Littré” (p. 32) em demonstrar que a medicina era a arte do pharmakon, enquanto a mágica dos curandeiros dependia exclusivamente do encantamento (epaiodē). A literatura já demonstrou ostensivamente que os mágicos da Grécia Antiga faziam ampla utilização de pharmaka.[2]A diagramação e a qualidade visual do texto são excelentes. As deficiências da obra se limitam a alguns erros tipográficos, à falta de um comentário para a tradução dos tratados da primeira parte do livro e à ausência de um glossário para os principais termos médicos presentes no livro (os tradutores só fornecem um limitado glossário de personagens). Apesar dessas limitações (compreensíveis dada a dificuldade do empreendimento), a existência de uma tradução do Corpus hippocraticum em português e sua publicação, sob os auspícios da Fundação Oswaldo Cruz (em excelente edição bilíngüe), não podem ser subestimadas. A obra certamente desencadeará uma onda de estudos hipocráticos no Brasil que há de trazer para nossas letras clássicas preocupações já em voga entre os estudiosos estrangeiros, atualizando-nos frente a uma área de estudos que, embora importantíssima, vem sendo relegada a segundo plano em um país que nem sempre é amigo dos livros.

publicado originalmente em Acta Científica: Ciências Humanas, v. 1, p. 99-101, 2007.

[1] Não estou plenamente convencido de que Cairus tenha conseguido escapar à tentação de produzir “uma análise littreana après la lettre” (p. 93).
[2] Cf. TORRES, Milton Luiz . A mágica erótica de Simaeta no idílio 2 de Teócrito. Phaos: Revista de Estudos Clássicos, Campinas, v. 2, p. 187-204, 2002.

Monday, January 01, 2007

Eu Quero Ir Embora

por Milton L. Torres

Eu quero ir embora
Sem saber pra onde ir
Eu quero ir embora
Sem ter pra onde ir
Eu quero ir embora
Sem ser pra ir e vir

Eu quero ir embora
Sem pedir para voltar
Eu quero ir embora
Sem ter que me importar
Eu quero ir embora
Eu quero, eu queria, eu iria

Eu quero ir embora
Mas não tem que ser agora,
Pode ser outro dia...