Monday, November 24, 2008

Educando para o Futuro

por Milton L. Torres

As grandes universidades americanas nasceram do desejo dos cristãos dos Estados Unidos de criarem um ambiente favorável ao estudo do homem, da natureza e das ciências, mas hoje assistimos, nos países cristãos, a um enfraquecimento da religião no ambiente universitário. É, no entanto, lamentável que isso esteja ocorrendo uma vez que as artes liberais dependem do cultivo e da prática das mesmas virtudes enfatizadas pelo cristianismo: a honestidade, a humildade, a diligência. Essas virtudes têm, ao longo dos anos, sustentado as artes liberais. Por isso, o enfraquecimento do cristianismo na universidade é, nesse sentido, uma ameaça à própria universidade.
Faz muito tempo Francis Bacon sugeriu que o derradeiro fim da ciência é a caridade. A educação superior é a principal aliada da ciência nesse empreendimento de promover caridade, ou compaixão, se preferirmos um termo mais dos nossos dias. De acordo com o epistemólogo Paolo Rossi, não é o prazer da curiosidade, nem a tranqüilidade da resolução, não é a elevação do espírito, nem a vitória ou a argúcia, não é a habilidade do discurso, nem o lucro na profissão, não é a ambição de honra e fama, nem a habilidade nos negócios que constituem os verdadeiros fins da educação. Alguns desses ideais são mais nobres que outros, mas todos são inferiores. O verdadeiro fim da educação é a restituição e a restauração (em grande parte) do homem à soberania e ao poder que ele tinha no primeiro estágio da criação. Exposto à morte e à doença, fechado nos breves limites da existência, posto diante da vaidade das coisas, o homem pode, mediante a fé, redimir-se e reconquistar o poder perdido sobre o mundo. Aquilo que se pede à religião, isto é, que a fé seja demonstrada pelas obras, vale também para a educação e a ciência: mais que pelas argumentações e observações dos sentidos, a verdade é comprovada pelas obras.
É preciso refletir sobre nossa forma de fazer a universidade e de construir o conhecimento. É preciso que tal construção não se dê através da prática vaidosa do diletantismo. O que queremos é um saber prático que beneficie a todos: discentes, docentes e comunidade. O que queremos é moldar o futuro com uma educação cujo alvo principal seja a caridade. A compaixão como fim último da educação significa colocar o produto do pensar científico a serviço do bem da espécie humana, a idéia de um saber universal cujos resultados sejam desfrutados por todos, a suplantação dessa falsa globalização de cujos frutos pouquíssimos se beneficiam. Platão nos adverte no livro Leis de que a educação é um tema tão sério que deveria, se possível, permanecer pura, fixa, inalterada. De acordo com ele, é necessário combinar a fixidez da tradição com as variações impostas, e somente aquelas impostas, pela necessidade. Talvez seja, por essa razão, que o sistema educacional do ocidente tenha resistido, de forma tão admirável, às vicissitudes do tempo. No entanto, é um falso conceito pensar que entre a antiga variedade de opiniões haja sempre prevalecido a melhor. O tempo parece ter a natureza de um rio que transporta aquilo que é volumoso e leve e deixa afundar aquilo que é sólido e pesado. É um grande obstáculo para o desenvolvimento da ciência continuar a avançar sobre terrenos batidos e sobre princípios já consolidados e ter medo de enfrentar tudo que pareça contradizê-los. Nosso desafio para a universidade é que estejamos dispostos a desbravar caminhos, a questionar o que é obsoleto, a rejeitar o academicismo infrutífero e a propor alternativas que venham a contribuir para a melhoria de vida daqueles a quem educamos, sem, com isso, perder as conquistas de incontáveis gerações de educadores que trabalharam pelo ideal da universidade, palavra cuja etimologia nos remete ao conceito de “uma linha”, um lugar onde muitos fios se entrecruzam para formar uma “única linha”, onde a diversidade é respeitada e acolhida como essencial para uma tecitura – sem dobras – do conhecimento, um cadinho em que todos os elementos se harmonizam. Em suma, nosso repto é que estejamos dispostos a demonstrar nossa fé na educação através das obras: que estejamos desejosos de construir o futuro com tolerância e altruísmo. Que Deus nos abençôe nesse empreendimento.

Referências

ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

Discurso proferido originalmente na Celebração dos 60 Anos da UFBA, no dia 4 de julho de 2006, no Museu de Arte Sacra da UFBA, a convite do Prof. Dr. Naomar de Almeida Filho, Magnífico Reitor. Publicado posteriormente na Revista Formando Líderes Cristãos, Cachoeira, BA, p. 36-36, 05 out. 2006.

Unção e Oração: o Cuidado do Fisioterapeuta Cristão com a Saúde Física e Espiritual de seus Pacientes

por Milton L. Torres

Nas sociedades antigas, a doença e a morte eram consideradas como sendo contrárias às leis da natureza. Por essa razão, criaram-se rituais e mitos que ajudavam as pessoas a lidar com o caos provocado por essas penosas circunstâncias. Algumas das mais antigas práticas desses povos incluíam a unção dos enfermos e as preces em seu favor (CORNIER, [199-]).
Na tradição cristã, a unção dos doentes foi uma herança dos antigos judeus. A Bíblia hebraica fala que, além disso, o óleo era empregado no preparo do corpo para o sepultamento, na coroação dos reis e na unção dos cativos antes de sua libertação (2 Cr 28:15). A unção com propósitos medicinais encontra-se estabelecida firmemente na epístola de Tiago (5:14), que recomenda que os enfermos solicitem unção e orações. O título de “Messias”, ou “Ungido”, recebido por Jesus, talvez se deva também à expectativa de que o grande líder religioso de Israel pudesse curar os enfermos (CORNIER, [199-], p. 37-38). Os relatos evangélicos, de fato, apresentam a Jesus curando por meio do toque e da palavra. Os discípulos de Jesus seguiram seu exemplo e levaram a cura a muitos enfermos (Mr 6:13), continuando essa prática mesmo após a morte de seu mestre (GUSMER, 1984, p. 6-8). Não existem narrativas canônicas que apresentem a Jesus ungindo os enfermos, mas Mateus nos informa que uma mulher de Betânia ungiu a Jesus em um banquete que precedeu a sua morte. Tudo o que sabemos acerca da unção no início do cristianismo parece ser oriundo dos relatos evangélicos e das orações dos primeiros pastores (ou padres) que ficaram registradas nos livros que escreveram, a mais antiga delas tendo sido escrita por Hipólito de Roma, por volta do ano 215 (POSCHMANN, 1964, p. 237). De acordo com Cornier ([199-], p. 41), essas orações tinham natureza anamnética (isto é, faziam lembrar as unções descritas na Bíblia) e epiclética (isto é, evocavam a atuação do Espírito Santo sobre o óleo e sobre o enfermo). Interpretando essas orações antigas, Martos (1991, p. 322) afirma que elas eram geralmente acompanhadas de um beijo dado ao enfermo, conhecido como “o beijo da paz”.
Como se percebe, o cuidado espiritual é, há muito tempo, uma necessidade sentida pelos enfermos. Do contrário, não haveria uma tradição religiosa tão firmemente estabelecida a esse respeito. Ignorar essa tradição ou essa necessidade é subestimar a eficácia de uma sabedoria milenar. O fisioterapeuta cristão não é menos responsável pelo cuidado espiritual de seus pacientes do que o ministro que atende a eles. A experiência humana tem testemunhado a existência de uma ligação inquebrantável entre a enfermidade e a religiosidade. É nos momentos de fragilidade que o ser humano se volta em busca da experiência espiritual capaz de conectá-lo a um poder superior. A doença, pode-se dizer, serve de propedêutica para o falar com Deus. Além disso, essa mesma tradição milenar nos fala de rituais, de óleos, de toques e beijos. Ela nos ensina que o contato físico é parte imprescindível do cuidar. Como a tarefa curativa do fisioterapeuta envolve o contato físico em uma dimensão que o médico e alguns outros profissionais da saúde jamais teriam condições de compreender, o fisioterapeuta se torna admiravelmente capaz de prover, além do cuidado físico, o apoio espiritual que o deve acompanhar.
Falando a um capelão, um experiente profissional da saúde no Canadá dá o seguinte testemunho sobre como há lugar para o apoio espiritual no ambiente hospitalar: “nossos pacientes precisam de muito apoio. Eu vejo um verdadeiro pavor nos olhos das pessoas. Como reagir a isso? Tocando e cuidando: eles têm a necessidade de alguém com a capacidade de lhes abrir as portas, e lhes tocar as feridas. Você pode tocar essas feridas e servir de espelho para que eles mesmos resolvam suas ansiedades” (PLOUFFE, 1999, p. 148).
Os discursos médicos e os discursos religiosos têm freqüentemente competido na construção do corpo e nos conceitos correlatos de saúde, doença e cura (OPP, 2000). Ao longo da história mais recente, enquanto os profissionais de saúde muitas vezes buscam desacreditar a recuperação oriunda principalmente da experiência espiritual, os religiosos muitas vezes desconfiam dos avanços da medicina convencional. No entanto, não é necessário que seja assim. Numa época em que o holismo e a tolerância são enfatizados mais do que nunca, é hora de deixar as diferenças e o discurso vazio a fim de que os profissionais do cuidado espiritual e os profissionais do cuidado físico possam se unir no propósito comum que têm de cuidar daqueles que padecem sofrimento. Por causa de seu compromisso com o bem-estar integral daqueles de quem cuidam, os fisioterapeutas, sejam eles cristãos ou não, mas especialmente aqueles com inclinações espirituais, podem servir de mediadores entre as dimensões físicas e espirituais no processo da cura. O respeito aos ritos religiosos que o paciente prefere e o contato amistoso com capelães, sacerdotes e ministros podem parecer detalhes de menor importância, mas contribuirão significativamente para uma maior eficácia dos fisioterapeutas em sua peleja diária e incansável contra a morbidade.

Referências

CORNIER, Stella. Anointing of the sick by a lay person: extending the sacramental role of anointing the sick to the lay person. [199-]. 78 f. Dissertação (Mestrado em Teologia) – St. Stephen’s College, Edmonton

GUSMER, Charles. And you visited me: sacramental ministry to the sick and the dying. New York: Pueblo, 1984.

MARTOS, Joseph. Doors to the sacred. Tarrytown: Triumph, 1991.

OPP, James W. Religion, medicine, and the body: Protestant faith healing in Canada, 1880-1930. 2000. 414 f. Tese (Doutorado em História) – Carleton University, Ottawa.

PLOUFFE, Rhea T. Terminal disease and the experience of God: a qualitative study of the transitional space. 1999. 254 f. Tese (Doutorado em Ministério) – St. Stephen’s College, Edmonton.

POSCHMANN, Bernard. The penance and the anointing of the sick. New York: Herder & Herder, 1964.

publicado originalmente na Revista Fisiounivir, Cachoeira, BA, p. 6-7, 20 jun. 2008.

Acesso para o Blog da Tania

Eis o link para o blog da Tania: http://taniamltorres.wordpress.com/.

Resenha do Livro Reading the Bible Again for the First Time

BORG, Marcus J. Reading the Bible again for the first time: taking the Bible seriously but not literally. San Francisco: Harper, 2001. 321 p.

por Milton L. Torres

O livro de Marcus Borg, professor de religião e cultura na Universidade Estadual do Óregon, propõe uma forma de ler a Bíblia de novo, mas como se fosse pela primeira vez. Sua preocupação fundamental é com o conflito religioso e cultural resultante de uma visão literal da Bíblia e seu foco principal é uma abordagem histórico-metafórica oriunda de dois contextos: a academia e a congregação religiosa. O autor se identifica, primeiramente, como acadêmico, depois como luterano convertido à Igreja Episcopal e, finalmente, como crente na validade de todas as tradições cristãs estabelecidas. Com base nisso, ele apresenta as bases para uma abordagem histórico-metafórica da Bíblia e as aplica ao Antigo e ao Novo Testamento.
No primeiro capítulo, “Reading lenses: seeing the Bible again” (“Lentes de leitura: vendo a Bíblia de novo”, p. 3-36), Borg explica por que é preciso ler a Bíblia de novo. Segundo ele, o antigo modo de ler a Bíblia se tornou irrelevante, uma vez que a modernidade o demoliu. Infelizmente, segundo ele, muitas pessoas continuam a defender essa forma ultrapassada de entender a Bíblia como se essa fosse a única forma válida. Borg chega a identificar os partidos envolvidos nesse conflito hermenêutico: os fundamentalistas e os liberais. Seriam três os principais pontos de discórdia: o evolucionismo, o homossexualismo e a busca do Jesus histórico. Para o autor, os fundamentalistas dos tempos atuais surgiram a partir de uma reação à cultura moderna, reivindicando a ênfase dos reformadores na autoridade da Bíblia. No entanto, Borg explica sua gênese a partir de eventos muito anteriores: a popularização das Escrituras após a invenção da imprensa, a fragmentação do cristianismo em diversas denominações, a substituição do literalismo natural pelo naturalismo consciente e o conseqüente aparecimento de um literalismo mitigado. A despeito dos protestos dos fundamentalistas, Borg considera o fundamentalista como sendo literalista, doutrinário, moralista, patriarcal, exclusivista, alienante e não tradicional. O fundamentalismo não seria tradicional porque é historicamente condicionado. Segundo o autor, o fundamentalismo se provou ineficaz diante dos grandes movimentos culturais de nossa época: o pluralismo religioso, a globalização, o relativismo cultural, a modernidade e a pós-modernidade. O impacto da modernidade, com seu cientificismo, sua ontologização da epistemologia, seu materialismo, seu ceticismo em relação à espiritualidade e sua obsessão pela factualidade, encurralou os fundamentalistas entre duas posições completamente estéreis: o literalismo e o reducionismo. Já o impacto da pós-modernidade fez com que a modernidade fosse rejeitada como apenas mais uma cosmovisão, mas, ao mesmo tempo, trouxe consigo uma valorização da experiência pessoal que acabou com a compreensão de que a verdade depende da literalidade.
No capítulo 2, “Reading lenses: the Bible and God” (“Lentes de leitura: a Bíblia e Deus”, p. 21-36), o autor defende que há três formas de se ver a Bíblia: como produto divino, como uma reação humana ao contato com Deus e como produto humano diante da inexistência de Deus. Para justificar sua idéia de que a segunda opção é a melhor, Borg procura provar, inicialmente, que a Bíblia não é um livro divino. Segundo ele, isso se percebe porque as estórias da criação são simbólicas, as leis bíblicas são regras ordinárias de conduta, há descrições de um Deus caprichoso e intolerante no Antigo Testamento e há preconceitos expressos na Bíblia que expressam uma suposta inferioridade feminina. O autor tenta provar, então, que a Bíblia é tampouco um livro simultaneamente humano e divino. Segundo ele, essa é uma dicotomia desnecessária e hermeneuticamente impossível, que acaba por conferir autoridade às nossas partes favoritas da Bíblia. Além disso, há, na Bíblia, uma absoluta preponderância da perspectiva humana, conforme a evidência interna atesta. Apesar disso, Borg não rejeita um caráter sagrado para as Escrituras. Segundo ele, esse caráter sagrado resulta do processo de canonização e é independente da origem da Bíblia. A Bíblia seria, então, sagrada porque a comunidade da fé lhe atribui importância vital e porque, por causa disso, ela lhe serve como lentes para contemplar o mundo. Seu caráter sagrado lhe atribui, por sua vez, autoridade dialógica. Isso significa que, em vez de ser uma regra absoluta de conduta, a Bíblia se torna uma fonte de relevância, uma força moldadora, um parâmetro de definição. A Bíblia se torna, portanto, uma espécie de sacramento por meio do qual é possível obter graça e por meio do qual se pode receber o Espírito Santo. Para provar essa afirmação, Borg usa a analogia da eucaristia. Segundo ele, a origem humana do pão e do vinho não os impede de se tornar veículos da graça de Deus. Então, como é a Bíblia a Palavra de Deus? Em sentido metafórico, em sentido sacramental, em seu status e função, não em sua origem. A Bíblia é o dedo que aponta para a lua e não a própria lua (p. 34).
O capítulo 3, “Reading lenses: history and metaphor” (“Lentes de leitura: a história e a metáfora”, p. 37-53) serve para explicar, com base nas premissas estabelecidas no capítulo anterior, como funciona o método histórico-metafórico (MHM) de interpretação da Bíblia. Trata-se de um método com ênfase histórico-metafórica, preocupado com o contexto e voltado para uma abordagem crítica e sócio-antropológica. O autor reconhece, porém, algumas limitações do método. Se controlado por uma cosmovisão moderna, pode levar ao ceticismo e a uma preocupação exclusiva com o passado. Além disso, o método tem uma natureza técnica que pode intimidar os menos cultos. A ênfase metafórica do método defende a não literalidade do texto bíblico e propõe uma atenção cuidadosa às suas nuanças e multivocidade. Por essa razão, pretende-se uma teologia narrativa, auxiliada pela crítica literária e profundamente psicológica. O importante não é crer, mas ver (p. 41). Ou seja, ninguém é chamado a crer em uma metáfora, mas a ver por intermédio dela. O autor justifica seu projeto hermenêutico com base na antigüidade da crença na natureza metafórica da Bíblia, defendida desde Orígenes, e com base no status da Bíblia como clássico da literatura. A abordagem metafórica precisa, porém, de mecanismos de controle como, por exemplo, a complementação por parte de uma abordagem histórica. Segundo Borg, a Bíblia apresenta três tipos de narrativas: as narrativas exclusivamente históricas, as narrativas que metaforizam a história e as narrativas exclusivamente metafóricas. Para se identificar o tipo de narrativa empregado em um texto, é necessário que se observa a evidência histórica e os limites do espetacular. Isto é, só são aceitos como factuais os milagres que fazem parte do modus operandi do sagrado. Segundo Borg, Jesus curava mesmo as pessoas (fato histórico), mas nunca andou sobre as águas. O andar sobre as águas foi simplesmente uma metáfora dos evangelhos. Para o autor, muitas pessoas atravessam três fases em sua forma de encarar a Bíblia. A ingenuidade pré-crítica seria a fase em que as pessoas dão crédito total às figuras de autoridade em sua religião e aceitam, sem questionamentos, sua interpretação do texto bíblico. Nessa fase não há fé, apenas ingenuidade. Uma segunda fase faz desenvolver o pensamento crítico e cria-se certa obsessão pela factualidade, gerando uma corrosão da religião, pois a pessoa se vê impedida de exercer a fé naquilo que ela crê ser impossível. Finalmente, a terceira fase é a da ingenuidade pós-crítica, que não é a mesma coisa que a ingenuidade pré-crítica, pois transcende a factualidade por meio da percepção da verdade existente nas narrativas metafóricas. O autor lamenta, no entanto, que nem todos conseguem fazer a transição para essa fase de maturidade espiritual.
O capítulo 4, “Reading the creation stories again” (“Lendo, de novo, as estórias da criação”, p. 57-84) abre a segunda parte do livro, dedicada à aplicação do MHM ao texto do Antigo Testamento. Borg, primeiramente, explica por que considera que a expressão Bíblia Hebraica é mais adequada do que a expressão Antigo Testamento. Segundo ele, ela demonstra respeito ao judaísmo e nega que o Novo Testamento tenha substituído o Antigo Testamento. Depois de rejeitar a cronologia de Usher (p. 59), o autor afirma que Abraão e Sara foram os primeiros personagens históricos da Bíblia (p. 62). Depois de analisar a teoria das fontes sacerdotal (P) e javista (J) para o relato da criação, Borg apresenta suas explicações para a inclusão de dois relatos metafóricos da criação no livro de Gênesis: a necessidade de dar uma elucidação pré-científica das origens humanas e propor uma cosmovisão que inclua convicções acerca da natureza de Deus e do homem. A leitura da fonte sacerdotal (Gn 1:1-2:3) dá ênfase ao sábado e é um reflexo de uma cosmologia primitiva. Trata-se de uma forma litúrgica, talvez um hino com antífonas ou uma doxologia. Como texto poético, é, portanto, metafórico. Na leitura javista (Gn 2:4ss), Adão não é um nome próprio, pois nenhum outro personagem bíblico tem esse nome. Essa compreensão metafórica dos relatos da criação vê o mito como uma forma de descrever a realidade. Ela difere da teoria da origem histórica, que vê a criação como singularidade histórica (a exemplo da teoria do Big Bang) e o universo criado como distinto de Deus (a exemplo do teísmo histórico), e da teoria da dependência ontológica, que vê o universo como sendo formado pelas emanações de Deus (a exemplo do panenteísmo). A realidade descrita pelo MHM, quando este é aplicado aos relatos da criação, é uma realidade em que tudo o que existe é bom, mas nem tudo o que acontece é. Esses relatos consistem de um esforço do autor bíblico para valorizar o mundo natural e para demonstrar que o homem mortal e caído está destinado à grandeza.
O capítulo 5, “Reading the Pentateuch again” (“Lendo, de novo, o Pentateuco”, p. 85-109) apresenta o Pentateuco como a cristalização de uma antiga tradição acerca da origem dos judeus, atribuindo status sagrado ao código mosaico. Para Borg, embora ambientado no séc. XIII a.C., o Pentateuco teria sido escrito entre 500 e 400 a.C., com a temática da promessa de Deus e seu cumprimento diante da esterilidade das matriarcas judias, diante das adversidades da vida, diante do cativeiro egípcio, diante da necessidade de uma legislação nacional e diante da infidelidade do povo. Borg apresenta, ainda, o princípio da consistência divina, proposto por John Dominic Crossan, de acordo com o qual Deus age, em nossos dias, da mesma forma como agia no passado. Sendo assim, pode-se dizer que Deus se interessa pela história e nela intervém, mas não da forma exata como o Pentateuco relata. Ou seja, Deus faz milagres, mas não do tipo descrito na travessia do mar Vermelho. A leitura metafórica do Pentateuco permite que Borg interprete o Egito como símbolo de todos os sistemas de dominação que existem ou já existiram no mundo, responsáveis pela exploração econômica (por meio de latifúndios e impostos injustos), pela opressão política e por usar a religião como forma de legitimação dessas práticas. O Pentateuco se torna, assim, um protesto e uma promessa de libertação em relação a essa dominação por meio da criação de uma sociedade igualitária, da revelação do ideal de Deus para com a humanidade e da revelação que Deus cumpre suas promessas.
O capítulo 6, “Reading the prophets again” (“Lendo, de novo, os profetas”, p. 111-144) aplica o MHM aos livros proféticos, divididos em profetas anteriores e posteriores à secessão do reino. Estes últimos dividem-se em profetas menores e maiores, a depender do tamanho físico de seu texto. Para Borg, há nesses livro uma fórmula de predição e cumprimento que serve para historicizar a profecia, geralmente apenas o eco de um conhecimento escriturístico anterior. Para tal, os autores lançam mão de comentários, embelezamentos e passagens fora do contexto, o exemplo mais conspícuo disso sendo o uso neotestamentário da profecia de Is 7:10-17, aplicada por Mateus ao nascimento virginal de Cristo. Borg propõe que uma leitura mais madura dos profetas precisa se libertar dessa fórmula de predição e cumprimento e se ater à mensagem contextualizada dos mesmos. Para exemplificar isso, ele cita o caso do livro de Amós, que longe de se constituir em um livro de prognósticos é, mais que isso, uma obra de ferina denúncia contra os inimigos de Israel, contra o próprio povo de Israel, contra os ricos, contra sua forma de adoração e contra a injustiça social. Ou seja, em vez de nos fixarmos na dimensão escatológica do livro, deveríamos tentar compreender sua dimensão histórica estabelecida por formas literárias afins a um processo legal de quebra de contrato. Para alcançar seus objetivos, os profetas recorrem a uma estrutura de indiciamento e ameaça, lançando mão de atos proféticos (como a atribuição de nomes proféticos aos filhos, no caso de Oséias e Isaías) e atos dramáticos (como os de Jeremias e Ezequiel). Sendo assim, há várias maneiras de ler os livros proféticos. O ateu funcional vê os profetas como profundamente políticos e incidentalmente religiosos, com a sua paixão pela justiça e sua preocupação com o destino histórico simplesmente legitimando sua mensagem. Por isso, os considera como ficções literárias. O cristão esclarecido deve, no entanto, encarar a mensagem profética como fundamentada na experiência do sagrado. Ou seja, o profeta é uma pessoa e não um microfone (p. 125). A coragem do profeta vinha de sua experiência com Deus, mas ele seguia a tradição literária de sua época. Dessa forma, podemos dizer que os profetas tinham uma intimidade com Deus que os sensibilizava à situação de sua época, marcada por sistemas políticos de opressão social que incluíam a exploração do povo por parte das elites, um conflito entre a teologia real proposta pelo establishment e a teologia profética daqueles que se levantavam contra o status quo. Os profetas procuram, acima de tudo, incutir esperança. Então, por que nos é tão difícil apreciar sua mensagem dessa forma? Segundo Borg, temos uma tendência de projetar nossas angústias para o futuro. Isso é fruto da união do cristianismo com a cultura ocidental e de nossa incompreensão do valor da justiça social. Os profetas não pregavam uma justiça criminal destinada a punir os criminosos nem uma justiça civil que exigia que todos fossem tratados de forma igual. Eles pregavam a justiça social e atacavam as próprias bases da sociedade da época.
O capítulo 7, “Reading Israel’s wisdom again” (“Lendo, de novo, os livros sapienciais de Israel”, p. 145-182) aplica o MHM à literatura de sabedoria. A antiga literatura sapiencial de Israel era aquela com foco na vida quotidiana e voltada para temas práticos. Extremamente rica e diversa, apresentava uma temática abrangente e uma linguagem provocativa. Embora fizesse parte da seção escriturística conhecida como Escritos e fosse tradicionalmente associada a Salomão, essa literatura é difícil de datar, pois não faz referências a eventos históricos. O consenso dos estudiosos é que pertence ao período pós-exílico. Além dos livros canônicos de Provérbios (500 a.C.), Jó (600 ou 500 a.C.) e Eclesiastes (300 a.C.), a literatura sapiencial inclui, ainda, os livros de Eclesiástico (200 a.C.) e Sabedoria de Salomão (100 a.C.). Seu tom é inteiramente diferente do Pentateuco e dos livros proféticos, dando mais atenção ao indivíduo e à família. De acordo com Borg, os livros sapienciais não pretendem ter o status de verdade revelada e, por isso, apresentam uma natureza dialética e dialógica. Para ele, o livro de Provérbios contém duas grandes coleções: de poemas sapienciais (1-9) e de provérbios individuais (10-30). Na primeira parte, apresenta-se o “caminho” como a metáfora central da vida e se propõe uma escolha entre dois caminhos. A sabedoria personificada é introduzida como a primogênita da criação, como o símbolo do bom caminho e como um antecedente para uma imagem feminina de Deus. Em contraste, a mulher adúltera é apresentada como personificação antagônica à sabedoria, tornando-se o símbolo do mau caminho. Nessa seção, há total ausência do tema do além-túmulo. Na segunda parte, os provérbios individuais apresentam ilustrações práticas dos dois caminhos. A visão androcêntrica e homogênea de tais provérbios representa a boa esposa como tipo de sabedoria e a prosperidade como resultado direto da mesma. A pobreza é o resultado da preguiça e só se necessita de senso comum para que se alcance a felicidade. Trata-se de uma cosmovisão centrada no desempenho que põe ênfase na ordem do universo e que apresenta as dificuldades da vida como conseqüência do comportamento inadequado. O livro de Eclesiastes e Jó têm abordagens inteiramente diferentes, apresentando o que se pode chamar de sabedoria subversiva. Em Eclesiastes, a metáfora central é a da vida como um ato de se perseguir o vento. O livro rejeita a idéia de que o senso comum é a solução para os problemas da vida e apresenta uma nítida percepção das desigualdades sociais. O livro é marcado pelo tema da morte: sua inevitabilidade e aleatoriedade. Três justificativas são apresentadas para essa abordagem radicalmente crítica do senso comum ou da sabedoria convencional: ensino pelo contraste, pessimismo e depressão ou respeito pelo mistério da vida. Borg opta pela última dessas explicações, afirmando que, em Eclesiastes, a morte é uma lição didática para a vida. O livro de Jó, o qual Borg parece apreciar imensamente, é dividido, por ele, em prólogo (em prosa), diálogo poético entre Jó e seus acusadores (em três ciclos) e o epílogo que narra o encontro de Jó com Deus e constitui o clímax do livro. Em Jó se patenteia a completa inadequação do senso comum como fonte de sabedoria para a vida prática. Por essas razões, Borg considera que os livros sapienciais apresentam, de forma admirável, os conflitos existenciais: o conflito entre a religião de primeira e de segunda mão, o conflito entre o senso comum (sabedoria convencional) e a sabedoria alternativa (subversiva e misteriosa), os conflitos entre a teologia do Egito e a do êxodo, e os conflitos entre a teologia real e institucional e a teologia profética. Para Borg, os livros sapienciais antecipam, de modo adequado, as tensões existentes nas páginas do Novo Testamento.
O capítulo 8, “Reading the gospels again” (“Lendo, de novo, os evangelhos”, p. 185-225) abre a terceira parte do livro, dedicada à aplicação do MHM aos textos neotestamentários. Borg inicia este capítulo estabelecendo a importância da Bíblia Hebraica para o cristianismo. Segundo ele, a Bíblia Hebraica oferece aos cristãos a possibilidade de continuidade com uma respeitável tradição religiosa, uma linguagem imaginativa para os temas sagrados e uma sólida identidade. No entanto, Borg lamenta a gradual separação que acabou ocorrendo entre judeus e cristãos. Ele atribui tal fato a três razões principais: a recusa dos conversos gentios de aderir às estritas práticas judaicas, o desejo judaico de excluir os gentios e a crescente percepção romana das diferenças entre os dois grupos. Essa transição foi possibilitada por incidentes como a guerra dos macabeus (164 a.C.), a dominação romana (a partir de 63 a.C.), a diáspora causadora de um verdadeiro êxodo rural e os movimentos revolucionários que deram aos romanos uma desculpa para destruir Jerusalém. Os evangelhos se tornaram, em função disso, os relatos fundacionais do cristianismo. Como biografias públicas em uma longa tradicional oral, os evangelhos possibilitam leituras que buscam seu esboço de um Jesus histórico e percepções cristãs em função do Jesus canônico. Para ele, porém, o perigo de se confundir o Jesus histórico com o Jesus canônico pode levar à perda de credibilidade dos evangelhos, à incompreensão das metáforas por eles oferecidas e à perda de sua relevância para o presente. A confusão do Jesus histórico com o canônico, para Borg, passa por alto a experiência do sagrado, a justiça social profética, a crítica à sabedoria convencional (senso comum) e a ênfase evangélica na comunidade. Por isso, Borg propõe uma nova abordagem para os evangelhos que se volte para suas metáforas dentro de um contexto histórico, que os compreenda como construções temáticas e que tenha por base os temas desenvolvidos a partir das cenas inaugurais de cada evangelho. Assim, em Marcos, uma cena inaugural que salienta a iminência do reino de Deus põe ênfase no arrependimento como uma volta do exílio. Isto é, a salvação consiste de um caminho. Em Mateus, a cena inaugural com o sermão do monte apresenta a Jesus como um novo Moisés. De novo, a salvação é um caminho, desta vez representada pelo êxodo do Egito. A cena inaugural de Lucas coloca a Jesus na sinagoga de Jerusalém. Assim se dá a apresentação de um profeta profundamente engajado socialmente e ungido pelo Espírito Santo. Essa ênfase no espírito persiste no livro de Atos, onde ocorre, no Pentecoste, a reversão do mito da torre de Babel. Finalmente, o milagre das bodas, a cena inaugural do ministério de Jesus em João, sugere como esse evangelho difere dos sinóticos. Trata-se de diferenças de cronologia, geografia, mensagem e estilo de ensino. Borg demonstra não ter dificuldades em captar as metáforas dos evangelhos. O andar de Jesus por sobre as águas mostra que Jesus acalma as tempestades da vida (metáfora intrínseca) e que, por isso, tem autoridade para conduzir a Igreja (metáfora histórica). A multiplicação dos pães mostra que Jesus se importa com o que as pessoas comem e é, ao mesmo tempo, o pão que sacia a fome espiritual (metáfora intrínseca) e que ele provê alimento para nossa travessia do deserto (metáfora histórica). A cura dos cegos mostra que Jesus é luz (metáfora intrínseca) e que essa luz subverte as trevas (metáfora histórica). A declaração de que Jesus é “o caminho, a verdade e a vida”, comumente usada como texto clássico para a exclusividade do cristianismo, mostra que o caminho da vida passa pela morte (metáfora intrínseca) e que a salvação é, de fato, um processo de transformação semelhante ao da morte e ressurreição (metáfora histórica). Ou seja, o caminho não é uma salvação por sílabas Je-sus, mas um relacionamento pessoal e profundo com a pessoa de Jesus. Borg chega às seguintes conclusões em relação aos evangelhos: eles falam coisas extraordinárias de Jesus, eles são as narrativas mais importantes para o cristianismo e são profundamente verdadeiros.
O capítulo 9, “Reading Paul again” (“Lendo Paulo de novo”, p. 227-263) apresenta, inicialmente, cinco razões por que os estudiosos criticam os escritos paulinos: sua suposta perversão do evangelho, sua moral puritana, seu sexismo, seu preconceito contra os homossexuais e sua complexidade. Por outro lado os estudiosos, segundo Borg, também os admiram por três razões básicas: seu próprio condicionamento histórico, a coerência das cartas legítimas e o fato de suas metáforas estarem em inteira continuidade com as de Jesus. Borg sugere quatro fontes para o estudo de Paulo: as sete cartas legítimas, as três cartas escritas em seu nome, as três epístolas pastorais e o livro de Atos. Borg atribui extraordinária importância ao relato da conversão de Paulo na estrada de Damasco, narrado três vezes em Atos, mas afirma que, antes da conversão, Paulo recebeu uma boa educação em Tarso, cidade que, de acordo com Estrabão e Filostrato, era um centro de cultura helenista, famosa por sua filosofia e seu modo de vida frívolo. Além disso, Borg salienta a experiência do apóstolo como discípulo de Gamaliel, fariseu e fabricante de tendas. No entanto, para ele, nada se compara à experiência de Damasco, responsável pela criação do misticismo paulino. As experiências extáticas do apóstolo incluiriam, ainda, sua anábase celestial (2 Co 12:2-4), sua espiritualidade quotidiana, marcada por visões e revelação (2 Co 12:7) e sua contemplação da glória (2 Co 3:18). Depois de apresentar uma breve introdução às viagens de Paulo, Borg passa a analisar suas estratégias missionárias: visitas às sinagogas, reuniões em pequenos grupos (principalmente com gentios), criação de pequenas congregações em insulae (prédios de apartamentos) e villae (casas rurais), itinerância e acompanhamento pastoral por meio de cartas que deveriam ser lidas em voz alta e que não se propunham a fazer uma apresentação formal da doutrina cristã, mas tratar de temas exigidos pelas circunstâncias de cada igreja. Para Borg, os focos da mensagem de Paulo foram: a pessoa de Jesus, sua própria conversão, a inclusividade do evangelho e a iminência escatológica. Ao aplicar constantemente o termo Kyrios (“Senhor”) a Jesus, Paulo estava fazendo declarações anti-escravagistas, anti-pagãs e anti-imperiais. Borg também resolve a tensão teológica entre as metáforas da justificação pela fé e do estar “em Cristo” explicando-a como fruto da dialética paulina. Ou seja, Paulo contrasta a vida “em Adão” (sob o domínio do pecado) com a vida “em Cristo” (a nova criação de 2 Co 5:17-18), apresentando a metáfora da morte e ressurreição, por ocasião do batismo, como uma ilustração da transição da vida em Adão para a vida em Cristo. Trata-se, ainda, de uma transição da heteronomia e da autonomia para a teonomia. Como resultado disso, cria-se uma nova identidade no seio de uma comunidade espiritual e surgem solidariedade e igualdade social. Da mesma forma, a dialética paulina estabelece um contraste entre fé e obras com a metáfora da justificação pela fé, uma questão particular em Gálatas entre Paulo e os judaizantes, mas uma questão geral na epístola aos Romanos. Borg acredita que o tema da justificação pela fé é pouco compreendido e, por isso, tenta explicá-lo de forma clara. Para ele, (i) a justificação pela fé não nos isenta da observância da lei, (ii) não deve ser confundida com perdão, (iii) não é elemento decisivo para a salvação, (iv) não é um sistema de exigências e (v) é um relacionamento com Cristo. Ou seja, ser justificado pela fé é estar “em Cristo”. Finalmente, o capítulo fecha com uma exposição acerca da importância da expressão “Cristo crucificado” nos escritos paulinos. Para Borg, essa expressão (i) equivale a uma condenação do sistema imperial, (ii) equivale à rejeição da sabedoria convencional (senso comum), (iii) tem o valor de revelação do amor de Deus e (iv) é um símbolo da transformação que envolve a morte para o eu e mesmo a morte física.
O último capítulo, “Reading Revelation again” (“Lendo o Apocalipse de novo”, p. 265-296) trata inicialmente das principais correntes interpretativas do livro do Apocalipse: a milenarista, que enfatiza a iminente volta de Jesus, tendo sido popularizada por Hal Lindsey, a historicista e a preterista. Borg também traça a história da canonização do livro, que foi rejeitado, durante muito tempo, pela antiga igreja grega, por Eusébio de Cesaréia, por Cirilo de Alexandria, pelo cânon bizantino e pelos reformadores, especialmente Lutero e Calvino. Depois de apresentar uma introdução ao livro (autoria, data, estilo literário, etc) e um pequeno resumo de seu conteúdo, Borg declara (p. 293, n. 15) que, embora creia que João tenha tido visões oriundas de Deus, ele acredita que essas visões foram apresentadas literariamente e só incidentalmente correspondem à experiência real de João. Borg passa, então, a criticar a corrente futurista de interpretação do Apocalipse, que o apresenta como um criptograma do futuro, especialmente idéias como aquelas que defendem que a criação do Estado de Israel, em 1948, e o surgimento da China comunista são o cumprimento das profecias do Apocalipse. Borg defende uma interpretação historicista e preterista para o livro, argumentando que a evidência interna favorece a esse tipo de leitura. Ou seja, o principal objetivo do livro é identificar a antiga cidade de Roma como um poder opressor. Isso é alcançado, de forma brilhante, pela gematria de 666, pela identificação de Babilônia como poder que procura destruir Jerusalém (Babilônia o fez em 586 a.C. e Roma o fez em 70 A.D.) e pela identificação explícita de Roma em Ap 17:9, 18. Segundo Borg, a mensagem do Apocalipse se aplica ao futuro imediato de João e somente secundariamente ao nosso futuro. Seu propósito é consolatório. Ou seja, o Apocalipse falhou como visão política, mas não como visão religiosa, pois foi relevante para as pessoas da época de João e continua relevante na nossa época, pois fala às angústias comuns no coração humano. Segundo ele (p. 279), o Apocalipse sugere que a volta de Jesus é uma metáfora. O mais importante, portanto, é que, contra o pano de fundo de um conflito cósmico (bem compreendido pelos gregos e romanos por causa de sua familiaridade com o mito da luta entre Apolo e o dragão), o Apocalipse declare que Jesus é o Senhor. O Apocalipse mostra, além disso, que o problema de Roma não se limitava à perseguição religiosa. O Apocalipse é uma denúncia contra todos os sistemas que se sustentam por meio da opressão política e econômica legitimada pela religião. A Nova Jerusalém surge, nesse contexto, como uma utopia passível de se realizar, o sonho de Deus. É, por essa razão, que João não a situa no céu, mas na própria terra. Para Borg, isso significa que, em vez de nos alienarmos com sonhos de uma terra além da realidade e do tempo, deveríamos buscar, sob a orientação de Deus, a construção dessa utopia em nossa própria terra e em nosso próprio tempo. Para ele, as maiores virtudes do Apocalipse seriam (i) seu senso de justiça, (ii) sua condenação dos sistemas de opressão, (iii) seu tom profético e impressivo e (iv) seu poder de transcender a história. O epílogo do livro (p. 297-302) apresenta as conclusões de Borg sobre a Palavra de Deus: (i) a Bíblia fala com diferentes vozes: a voz de homens em busca de Deus, a voz do Espírito, as vozes no conflito entre a religião institucional e as denúncias contra ela, e as vozes no conflito entre a sabedoria convencional que defende o status quo e a sabedoria alternativa que o desafia; (ii) a leitura da Bíblia nos traz bênção: a experiência do sagrado, a convicção de que essa experiência nos faz melhores, e a convicção de que deus é justo e compassivo; (iii) a Bíblia nos faz um chamado para “grandes relacionamentos” (p. 301) com Deus e com o próximo (Mt 22:37-40); e (iv) a Bíblia nos conclama a viver em comunidade e a respeitar as tradições dessa comunidade. Para Borg (p. 302), na experiência religiosa, o papel da Bíblia é secundário apenas ao papel do Espírito Santo.

publicado originalmente em: GONDIM, Luiz Carlos L. . Por uma leitura mais globalizada e menos literal da Bíblia? Formadores: Vivências e Estudos, Cachoeira, v. 2, p. 262-273, 2008.

Resenha do Livro Quality with Soul

BENNE, Robert. Quality with soul: how six premier colleges and universities keep faith with their religious traditions. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2001.

por Milton L. Torres

A obra de Benne adota um ponto-de-vista otimista ao responder negativamente a uma indagação proposta, em 1998, por James Burtchaell: – este é o tempo do fim... do fim das faculdades e universidades cristãs? É verdade que as maiores e mais antigas universidades particulares anglófonas (como Harvard, Yale e Princeton) foram fundadas por iniciativa de religiosos e agora encontram-se inteiramente secularizadas, mas o autor recorre ao exemplo de seis universidades ou faculdades de primeira linha, nos Estados Unidos, que resistem às pressões para a secularização (Calvin College, Wheaton College, Universidade Baylor, Universidade Notre Dame, St. Olaf College e Universidade Valparaíso) para indicar que ainda é possível a manutenção da filosofia cristã de educação nas intituições de ensino superior. O autor repete, com veemência, a advertência feita por Mark Schwehn, em 1993, de que as artes liberais dependem do cultivo e da prática de certas virtudes (honestidade, humildade, diligência) que as sustentam e de que o enfraquecimento da religião seria, portanto, uma ameaça à própria educação.
Segundo Benne, três são as principais razões para a crescente secularização das universidades americanas: medo do rótulo de sectarismo, substituição dos princípios do Cristianismo pelas virtudes ético-cívicas e exclusão dos valores religiosos em favor dos ideais democráticos. Outras razões incluem fatores externos como as pressões do mercado educacional, o treinamento secularizante do corpo docente por causa do ateísmo metodológico dos cursos de pós-graduação e as pressões relativizantes da pós-modernidade, bem como fatores internos tais como a incapacidade teológica da instituição para estabelecer sua identidade e missão, e um sistema deficiente de prestação de contas à denominação. Para o autor, as tentativas de reação contra o secularismo por parte de várias instituições confessionais falharam em três âmbitos. Na esfera teológica, o combate à secularização com base na filosofia de Paul Tillich não foi eficaz porque, embora a teologia liberal deseje inicialmente revisar o Cristianismo clássico para torná-lo crível e persuasivo, acaba por suplantar o Cristianismo em favor de uma visão de mundo que lhe é rival. No âmbito acadêmico, a divisão da universidade em duas esferas, uma particular, sagrada e subjetiva e a outra pública, secular e objetiva, acabou por trazer descrédito ao modelo cristão de explicação da realidade. E, no âmbito da política de ação, protestos hostis tenderam a multiplicar inimigos sem conseguir promover os princípios do Cristianismo.
O estudo que Benne fez das seis instituições americanas bem sucedidas em manter seu caráter cristão (protestante, luterano ou católico) sugere que o caminho de volta só é possível se a vontade política de reversão ao modelo cristão permear os três componentes da tradição cristã que são relevantes na esfera pública: sua visão, seu ethos e as pessoas que dão consistência à visão e ao ethos, devendo envolver (a) uma liderança resoluta que inclua a Diretoria e um serviço de capelania de qualidade, (b) um planejamento minucioso com alvos realistas, (c) o envolvimento ativo do corpo docente por meio de um programa consolidado de integração fé e ensino, (d) medidas estratégicas que convençam a comunidade acadêmica do benefício da diversidade de vozes e do pluralismo intencional, isto é, da vantagem de se ouvir a perspectiva cristã na discussão dos mais variados temas, (e) de investimentos reais nessa direção, sejam estes feitos por meio de subvenções da denominação, doações de patronos com condições ou oriundos do orçamento da instituição, (f) o amplo uso de recursos musicais, (g) a valorização de figuras exemplares que sirvam de modelos para os jovens, (h) a obediência aos regulamentos internos como critério para a admissão de alunos e, mais importante, (i) a adoção da filosofia in loco parentis, isto é, professores, preceptores, administradores e funcionários precisam estar dispostos a agir e assumir responsabilidades como se fossem os pais dos alunos.
O livro, apesar de sua linguagem e postura intensamente conservadoras, consegue defender, sem antipatizar-se com as posições discordantes, a tese de que as instituições de ensino superior de origem cristã têm o direito de insistir que a voz do Cristianismo se faça ouvir, nelas, não importando o grau de secularização a que tenham sido submetidas. Daí sua referência à declaração de G. K. Chesterton: “uma tradição é uma democracia na qual os mortos votam.” O autor consegue evitar um tom intolerante e sua proposta é a adoção de um pluralismo intencional em que uma massa crítica de pessoas intensamente engajadas na promoção dos ideais cristãs promova a sustentação da instituição, abrindo, assim, espaço para simpatizantes do Cristianismo e para os que são indiferentes a ele. Sua tese quanto à política de contratação docente e admissão discente é de que se aqueles que são indiferentes à fé cristã forem superados na razão de dois por um, sua influência não será danosa para a faculdade e, ao contrário, contribuirão com uma perspectiva divergente mas passível de integração, o pluralismo intencional que enriquece e evita o incesto institucional. Benne consegue, portanto, ser provocativo em suas propostas e conservador em sua teologia, apresentando uma audaciosa proposta de reversão da secularização ora experimentada por inúmeras universidades e faculdades ditas cristãs.

Sunday, November 23, 2008

Resenha do Livro A Prática da Pedagogia Adventista

UNGLAUB, Eliel. A prática da pedagogia adventista em sala de aula: tornando a teoria uma realidade eficaz no ambiente escolar. Engenheiro Coelho: Paradigma, 2005. 142 p.

por Milton L. Torres

O livro de Unglaub é uma tentativa de aproximar teoria e prática dentro do escopo filosófico e metodológico da educação adventista. Ao buscar tal aproximação, Unglaub depende principalmente da teorização proposta recentemente pelo opúsculo Pedagogia adventista e, por isso, demonstra muitas das forças e fraquezas daquela obra. A vantagem da proposta de Unglaub é que esta tem uma predileção pelos aspectos práticos da obra educacional e, por essa razão, pode se tornar útil para muitos educadores que labutam na rede adventista de ensino, especialmente aqueles com pouca experiência.
Entre as deficiências do livro, talvez a que seja a mais grave seja a excessiva abrangência de suas sugestões. Unglaub tenta, de uma só vez, prover subsídios para atividades escolares que variam do jardim da infância (p. 74) à pós-graduação (p. 89). Essa é uma tarefa virtualmente impossível dada a dimensão modesta do livro. Daí advém a natureza freqüentemente superficial de sua abordagem. O livro também poderia ter contado com uma revisão mais cuidadosa, nele podendo ser ilustrados diversos tipos de equívocos gramaticais, desde descuidos de regência nominal, mau uso dos pronomes relativos e incorreções de concordância até barbarismos ortográficos, principalmente os de acentuação. A abordagem geral do livro tem pouco espaço para a sociologia e Unglaub parece, às vezes, falar de uma educação ideal que não se demonstra consciente de severas limitações amiúde enfrentadas pelos professores, mesmo em escolas adventistas, como, por exemplo, a existência de classes excessivamente grandes e a imposição de uma impiedosa carga horária sobre professores que se esforçam para dar conta de tal sobrecarga. Às vezes, tem-se a impressão de que o autor cometeu traducionismos. Assim, a seqüência “pense, faça, dupla, compartilhe” (p. 56) soa muito estranha, sendo que a palavra “dupla” pode, talvez, ser uma tradução equivocada da palavra pair (“formar duplas”) que provavelmente conste de sua fonte em inglês. Além disso, quando o autor tenta estabelecer a importância da pedagogia de projetos, a maioria de suas sugestões para projetos educativos carece de originalidade e, talvez por essas sugestões terem sido colhidas de projetos desenvolvidos por alunos da graduação, também pecam pela pouca interdisciplinaridade e a diminuta ênfase na integração de fé e ensino. Aliás, o livro conta com um bom capítulo escrito pelo Prof. Renato Stencel justamente sobre o tema da integração fé e ensino.
Entre as inúmeras virtudes do livro de Unglaub, destaca-se a compreensão sempre benéfica de que a metodologia pedagógica não é uma panacéia capaz de curar todas as dificuldades enfrentadas pelo professor em sala de aula (p. 129). Unglaub demonstra ser um educador experiente e com uma visão otimista da capacidade docente para o crescimento e a interação com os alunos (p. 128). Sua compreensão de verdade é bastante equilibrada (p. 99) e sempre aberta às diferenças de opinião. Seu esforço para recuperar, para a educação adventista, a importância do teatro e da dramatização pedagógica é louvável. Depois de várias décadas de preconceito e estigma no ambiente adventista, revigorou-me estudar um autor que acredita nessa forma de fazer educativo e, mais do que isso, várias vezes se refere à dramatização como importante recurso pedagógico (p. 69, 70, 88, entre outras). As tabelas que ilustram o livro são úteis quando sintetizam e sistematizam o pensamento do autor ou de suas fontes, mas, às vezes, tendem à superficialização do conteúdo tratado.
Apesar da dependência às vezes excessiva e desnecessária do livro Pedagogia adventista (afinal de contas, esta obra ainda está viva em nossa memória e disponível em nossas escolas), o livro de Unglaub me parece romper com um aspecto que considero desagradável naquela obra, a tendência de identificar os ideais da educação adventista com a estrutura do pensamento hebraico. Ora, se os hebreus nem sempre seguiram os ideais divinos quanto ao monoteísmo, à monogamia e à teocracia, por que supor que o tenham seguido nos aspectos educacionais? Afirmo que o modelo pedagógico a ser seguido pelos educadores adventistas é o de Jesus Cristo e este transcende qualquer cultura. Diferentemente daquela obra, nenhuma vez Unglaub se perde em elogios à cultura hebraica, mantendo seus olhos decididamente voltados para a sala de aula das instituições adventistas. Além disso, o autor entra em diálogo com um número considerável de teóricos adventistas e não-adventistas. Os educadores adventistas devem, portanto, acolher essa obra como mais uma boa tentativa de crescer em direção ao alvo da imitação, em sala de aula, dos métodos de Jesus.

Saturday, November 22, 2008

Resenha do Livro Pedagogia Adventista

CONFEDERAÇÃO DAS UNIÕES BRASILEIRAS DA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. Pedagogia adventista. Tatuí, SP: CPB, 2004.

por Milton L. Torres

A publicação do opúsculo Pedagogia adventista veio em boa hora. Afinal de contas, perguntas tais como aquelas formuladas por Carmen Souza parecem pertinentes: por que os adventistas do sétimo dia têm tanta dificuldade em definir qual a proposta da Educação Adventista quando conhecem tão bem sua própria filosofia?[1] Assim, quando a Comissão do Livro Didático da Divisão Sul Americana da I.A.S.D. constatou, em 2003, a necessidade de uma sistematização da proposta pedagógica adventista, estudos foram iniciados para que fosse propiciada uma maior identidade da rede educacional mantida pela Igreja e que pudesse orientar sua produção de livros didáticos. O livro, ancorado nos escritos de Ellen White, busca a articulação da história da educação cristã com elementos da filosofia e teologia adventistas, bem como sua prática pedagógica. O livro consegue traçar os contornos de uma pedagogia adventista, e, como escorço, é bem sucedido. Contudo, alguns detalhes podem prejudicar sua futura utilidade como elemento moldador de posturas educacionais por parte dos administradores e colaboradores da Educação Adventista, bem como de seus educadores e dos responsáveis por desenvolver seu programa de didáticos e paradidáticos.
A comissão que assina o livro faz corresponder os princípios da educação hebraico-oriental com princípios divinos desejáveis para a prática pedagógica das escolas adventistas de nossos dias. A comissão vê mesmo no surgimento da Educação Adventista “o propósito de resgatar a cultura hebraico-oriental, fechando assim o parêntese de ruptura que surgiu na história do cristianismo desde seus primórdios até o século 19” (p. 35). Essa declaração me incomoda em muitas níveis. A teologia adventista não me parece pressupor que o ideal educacional de Deus tenha sido desenvolvido através da educação hebraico-oriental. É claro que o relato bíblico sugere que Deus fez uso dos recursos educacionais de que dispunha nos tempos do Antigo Testamento, mas parece claro também que estes não constituíam sua instrumentalidade preferida. Ele fez uso do que dispunha. Talvez se a expressão “cultura hebraico-oriental” fosse modificada em favor de algo como “cultura bíblica” ou “cultura do Antigo Testamento”, a declaração causasse menos estranheza. Contudo, ainda assim, teria dificuldades em entender como seria possível que um sistema educacional confessional pudesse ter como objetivo o resgate de algum tipo de cultura em detrimento da formação ideal de seus educandos. A educação deve respeitar as diferentes culturas, mas deve transcendê-las. Além disso, a declaração ufanista de um “parêntese de ruptura” dificilmente corresponde à visão adventista de um Deus que sempre teve um remanescente que lhe foi fiel. Mesmo que ignorássemos as contribuições dos gregos, dos romanos e dos filósofos escolásticos, será que se justificaria falar de uma lacuna educacional impreenchível através de um período de tempo tão longo?
Essa postura de admiração e respeito à cultura hebraica contrasta com uma atitude bastante desfavorável à paidéia grega. A expressão Educação Grega é usada a revelia, sempre destituída de qualificação precisa. Os autores têm uma concepção monolítica daquela educação como se fosse possível fazer compreender os séculos de educação grega sob rótulo único. Sua declaração, por exemplo, de que “a pedagogia grega era caracterizada pelo ensino aristocrata, especializado, detido apenas por algumas classes sociais privilegiadas” (p. 24) só pode ser considerada verdadeira se aplicada a um período bastante restrito da tradição grega, mesmo porque a definição de “aristocrata” não é inteiramente unívoca nos escritos da Antigüidade Clássica. Sagradas instituições atenienses como a democracia e o ostracismo deixam claro que, na maior parte de sua história, a Educação Grega não era aristocrática. O desfavor com que os autores referem-se à inferioridade da Educação Grega em relação à cultura hebraico-oriental parece ser, amiúde, oriunda de seu desconhecimento acerca da história da paidéia, que permeia praticamente toda e qualquer teoria educacional até hoje proposta. Evidência disso é que as características atribuídas à educação hebraico-oriental para provar sua suposta superioridade são, muitas vezes, características também peculiares à Educação Grega (como, por exemplo, a harmonização entre a prática e a teoria). E quando não o são, dificilmente representam uma posição de vantagem. Como é possível, por exemplo, que os autores exaltem a superioridade da Educação Hebraica pelo motivo de que esta, ao contrário da Educação Grega, não contemplasse o conceito de abstrato (p. 25)?
Um outro aspecto a depor contra a integridade da obra Pedagogia adventista é sua aversão à teorização e contextualização da pedagogia adventista nas discussões ora correntes nos meios educacionais. O livro assume um deletério caráter eclético nas poucas vezes em que faz algum excurso pelos terrenos da teoria pedagógica, e o tom geral do texto acaba sendo etnocêntrico e heterofóbico. Essa aversão ao outro pode criar certo distanciamento fazendo com que pedagogos de outras persuasões não se interessem pelo livro, o que, sem dúvida, diminuiria sua utilidade, especialmente quando um considerável número de docentes não-adventistas labuta hoje nas Instituições de Ensino Superior mantidas pela Igreja. A verdade é que vivemos no século XXI e se não estamos dispostos a abordar as questões que nossos pares não-adventistas estão procurando responder, pode ser que acabemos por sugerir que eles tampouco devam interessar-se pelas questões educacionais que hoje preocupam os adventistas do sétimo dia. E mais ainda, uma vez que a obra pode vir a nortear as práticas pedagógicas de administradores e formadores da política educacional adventista no que esta diz respeito à adoção de didáticos e paradidáticos, pode ser que estes se vejam incentivados a descartar igualmente o saber científico que não traga o imprimatur estabelecido por essa limitada concepção da prática pedagógica dos adventistas.
Isso quer dizer que o livro é destituído de méritos? De forma alguma. A sensibilidade de seus idealizadores quanto à necessidade de uma discussão acerca dos rumos da pedagogia adventista é indiscutivelmente apropriada. Sua coragem de dar o primeiro passo nessa direção, louvável. Mas o que se sugere, aqui, é que o opúsculo seja exatamente isso: um primeiro passo na direção de uma discussão mais ampla da problemática que aborda.

Publicado originalmente por Milton L. Torres em Escola Adventista, Engenheiro Coelho, SP, v. 15, n. 9, p. 34-35, 2005.

[1] Carmen Souza, Uma proposta pedagógica para a Educação Adventista, Acta Científica, n. 42, 2004, p. 4.

Friday, November 14, 2008

Aluno não significa “sem luz”

por Milton L. Torres

De tantos em tantos anos alguém desafia a sabedoria dos antigos ao promover questionáveis campanhas contra a integridade do significado de palavras já consagradas pelo uso. Há pouco tempo, os profissionais da área de saúde rejeitaram o termo “autópsia” sob suspeita de que a palavra seria uma má formação, uma vez que, na opinião dos pretensos sábios da modernidade, o vocábulo “autópsia” faria referência a um auto-exame incompatível com a natureza do processo de dissecação de um cadáver. Nada podia estar mais distante da verdade. A palavra “autópsia”, de uso consagrado pelos mais respeitados médicos gregos da antigüidade, significa “exame com os próprios olhos”. Empregada por Galeno e Dioscórides, nos primeiros séculos da era cristã, só não foi usada antes por Hipócrates porque este preferia não se incluir entre os anatomistas, valorizando mais a observação do comportamento e as experiências dietéticas do que a etiologia fundamentada na dissecação dos órgãos internos, conforme se percebe na recente e excelente edição dos Textos hipocráticos, promovida pela Editora Fiocruz, sob os auspícios de Henrique F. Cairus e Wilson A. Ribeiro Jr. Além disso, mesmo que “autópsia” significasse apenas “auto-exame”, que melhor momento teríamos para visualizar a fragilidade do ser humano, a nossa própria debilidade, senão enquanto nos vemos a nós mesmos refletidos na figura inerte, mas maravilhosa, de um corpo humano? Se fosse médico, preferiria muito mais imaginar-me respeitosamente desvendando a natureza do homem a contentar-me com o exame de um corpo coisificado.

Da mesma forma, tem circulado nos meios cultos a infeliz idéia de que o termo “aluno” signifique “sem luz”. De novo é necessário adentrar, com cautela, o terreno da antigüidade greco-romana que, invariavelmente, se prova mais competente e digno de crédito do que a falsa erudição que se exibe em muitos círculos. A palavra “aluno” vem do verbo latino “alo”, que significa “nutrir”. O termo tem valor de particípio e significa, simplesmente, “aquele que foi nutrido”. Etimologicamente, a palavra se liga ao substantivo “alma”, que significa “nutriz”, de acordo com a idéia comum de que a alma alimenta o corpo. É, por isso, que a universidade é chamada, com freqüência, de alma mater, isto é, “a mãe que nutre”. A falsa etimologia que analisa a palavra “aluno” como composta de “a” (prefixo de negação) e “lux” (“luz”) não leva em consideração que o prefixo de negação “a”, comumente chamado de “alfa privativo”, só ocorre em palavras de origem grega. Portanto, a explicação não passa de um hibridismo lamentavelmente inculto.

Na época romana, o alumnus era uma criança (principalmente do sexo feminino) que, abandonada pela própria família, recebia os cuidados de uma família que se dispunha a recebê-la em seu seio. Porém, muitos meninos abandonados tornavam-se meros servos ou gladiadores. Ser um alumnus não era, por isso, o mesmo que ser um filho adotivo, pois o status daquele era o de semi-adoção, conforme fica claro no tratamento dado a esse fenômeno social no livro The kindness of strangers: the abandonment of children in Western Europe from late antiquity to the Renaissance, de John Boswell. Apesar da perversa situação demonstrada, ali, por Boswell, pode-se dizer que a adoção do termo “aluno” no âmbito educacional teve uma intenção nobre. O professor deveria ver o aluno com os olhos carinhosos do mentor que havia sido colocado in loco parentis, isto é, “no lugar do pai”. Não nos deveria surpreender, contudo, essa ligação entre o contexto educacional com uma situação social desfavorável, afinal de contas, a própria palavra “pedagogo” indicava status servil na antigüidade, sendo o antigo pedagogo meramente o escravo que acompanhava o estudante à escola.

Bem, meu objetivo, aqui, é simples e categoricamente afirmar que a palavra “aluno” não significa “sem luz” e que abandoná-la por tal motivo pode apenas indicar que os modismos que procuram destruir as convicções pedagógicas daqueles que são acusados de serem educadores “tradicionais” remetem apenas a uma nova modalidade de educador, leviano e falaz, mas destituído da substância da cultura.