Tuesday, September 25, 2012

O Mito do Redentor na Literatura Gnóstica Pré-Cristã

por Milton L. Torres, PhD

Observação: na discussão abaixo, a palavra “mito” não tem o sentido comum de “ficção” ou “lenda”. Trata-se, em vez disso, de um termo técnico, em teologia, para descrever uma unidade mais ou menos discreta que, tomada separadamente, expressa a ocorrência de um evento revelatório e autoritativo.

INTRODUÇÃO

Uma característica predominante da teologia que vinha sendo desenvolvida até a Segunda Guerra Mundial era o fato de se afirmar categoricamente que os “conceitos” presentes no Novo Testamento (doravante NT) não tinham qualquer conexão com o helenismo. As palavras podiam ser gregas, mas seu conteúdo originava-se no hebraico do Antigo Testamento. Desde então, duas grandes descobertas arqueológicas têm contribuído para mudar essa perspectiva: os achados de Qumram e Nag Hammadi.

A descoberta dos Rolos do Mar Morto nas cavernas de Qumram possibilitou a compreensão de que o judaísmo e o gnosticismo eram mais diferenciados do que se supunha a princípio. Por outro lado, os treze códices escritos em copta encontrados em Nag Hammadi, em 1946, nos deram uma melhor compreensão do gnosticismo. Até então todo o conhecimento de que dispúnhamos acerca do gnosticismo era derivado das polêmicas asserções dos padres ortodoxos. No entanto, quando esses códices foram decifrados, pela primeira vez tivemos acesso a uma literatura gnóstica produzida pelos próprios gnósticos.

O sítio de Nag Hammadi localiza-se, no Alto Egito, a cerca de 400 km de Cairo. Os códices datam do séc. IV AD e constam de cerca de 1200 páginas. As obras são evangelhos apócrifos, atos de apóstolos e apocalipses. Mas o que mais auxiliou numa nova interpretação do gnosticismo foram as cartas, os diálogos e os tratados religiosos, os assim chamados “livros secretos do gnosticismo”.

QUEM ERAM OS GNÓSTICOS

Se até os achados de Nag Hammadi o gnosticismo era visto como um movimento de caráter filosófico, agora não restam dúvidas de que seu caráter era essencialmente religioso.

Segundo Lührmann (1989, p. 51),

os gnósticos de forma alguma devem ser concebidos como um grupo periférico do Cristianismo; em vez disso, eram uma variante cristã de uma religião mundial abrangente - o “Gnosticismo” - que existiu antes e com o Cristianismo, partilhando tal condição com toda a comunidade cristã na esfera helenística e grande parte do judaísmo.

Os gnósticos integravam, portanto, um movimento religioso extremamente sincrético que disputava com o Cristianismo incipiente a condição de religião mundial. Dois elementos contribuíram grandemente para sua difusão: a estima de filosofia que lhe era atribuída e o sincretismo que facilitava sua penetração mesmo entre os adeptos de outras religiões.

O dualismo cósmico era de fundamental importância para o gnosticismo. O mundo físico e o espiritual se opõem um ao outro, excluindo-se mutuamente. O mundo material é negativo e foi criado por um deus inferior, o demiurgo, sem a autorização do deus superior. O mundo do verdadeiro deus é o mundo do espírito e da luz.

Na cosmologia gnóstica, o mundo material é compreendido como uma prisão. A masmorra mais profunda de tal prisão é a terra, o mundo dos seres humanos. Sobre a terra há uma série de esferas cósmicas que impedem que o ser humano escape e obtenha a salvação. São sete as esferas cósmicas, correspondendo a sete planetas, cada um deles vigiado e controlado por um “arconte”, uma espécie de anjo ajudador do demiurgo.

É por ser o produto de uma criação inferior que o homem necessita ser redimido dessa condição de escravidão à matéria.

O MITO DO REDENTOR

Para os gnósticos, a redenção significa um retorno da matéria à esfera de luz, e isso só pode ocorrer através da descida de um “redentor”, que coleta as centelhas de luz que se encontram dispersas no caos e as eleva ao mundo superior. Essas centelhas nada mais são do que as almas humanas.

A redenção chega por intermédio do conhecimento, a gnose, através de uma revelação. Essa revelação acerca de deus, do mundo e do destino da humanidade ocorre através de ritos especiais. O redentor assume uma vestimenta corporal exterior a fim de penetrar nos domínios do demiurgo e libertar o homem. Sua função é levar o homem ao conhecimento verdadeiro. A redenção se concretiza quando, por ocasião da morte, os espíritos humanos são libertos e, de posse da gnose salvadora, retornam à esfera iluminada.

A compreensão do modelo gnóstico tem repercussão imediata para o Cristianismo. Se tal modelo é pré-cristão, então tanto a cristologia de São João quanto de a São Paulo devem ser necessariamente interpretadas como contendo um “background” gnóstico. Por isso, segundo Lührmann (1989, p. 52), Reitzenstein afirmou categoricamente que Paulo era gnóstico e Rudolf Bultmann delarou que o Cristianismo primitivo era um fenômeno sincrético.

A CONTROVÉRSIA SOBRE A ANTERIORIDADE DO MITO

O termo “redenção” (apolytrôsis) é pouco atestado na literatura secular. Empregava-se em relação aos prisioneiros de guerra, escravos e criminosos condenados à morte. Büchsel o define como “libertação realizada através do pagamento de um resgate” (KITTEL, 1967, v. 4, p. 352). “Redentor” (lytrôtês) é quem paga um resgate e o uso dessa palavra surgiu duzentos anos antes da era cristã.

Instalou-se, assim, nos meios teológicos, uma controvérsia acerca da anterioridade do “mito do redentor”. Foi o Cristianismo que tomou o mito de empréstimo ao gnosticismo ou, ao contrário, foram os gnósticos que incorporaram o conceito de redenção a partir de um background cristão?

Para tornar a situação ainda mais difícil, o conceito está ausente em São Mateus, São Marcos, São João, nas Epístolas Católicas e no Apocalipse. Seu uso em São Lucas é muito ocasional e mesmo em São Paulo o conceito é muito menos importante do que o de dikaiosynê (“justificação”) ou katallagê (“reconciliação”). Além disso, mesmo na Septuaginta, a tradução do Antigo Testamento para o grego, feita pelos próprios judeus, apolytrôsissó é empregada uma vez (Dan. 4:34), num verso que difere consideravelmente do Texto Massorético.

No entanto, apesar disso, os estudos feitos até aqui indicam que possivelmente o conceito do redentor tenha sido incorporado pelos gnósticos no séc. II ou III da era cristã. G. Quispel (RODRÍGUEZ, 1995, p. 31), por exemplo, afirma que

         Parece haver boa base para se supor que o conceito da redenção e a figura do redentor foram tomados do Cristianismo pelo gnosticismo. Um redentor pré-cristão talvez nunca tenha existido.

A religião greco-romana pré-cristã não faz uso de um redentor ou salvador do tipo gnóstico. Por isso, parece mais provável que os gnósticos tenham seguido o modelo cristão de Jesus.

Contudo, mesmo que o modelo do redentor seja pré-cristão, minha tese é de que isso seria teologicamente irrelevante na compreensão da fé cristã. Para chegar a tal conclusão, eu me baseei em dois aspectos: no conceito teológico de mito e na diferença abissal entre o mito do redentor no gnosticismo e no Cristianismo.

O CONCEITO TEOLÓGICO DE MITO E A SINGULARIDADE DO REDENTOR CRISTÃO

O que é teologicamente importante acerca das Escrituras é um conjunto vasto de unidades mais ou menos discretas que, tomadas separadamente, expressam a ocorrência de um evento revelatório. Esses elementos autoritativos podem ser chamados de “imagens”, “símbolos” ou “mitos”. O aspecto mais geral de tais elementos é o fato de assinalarem a ocorrência do evento revelatório.

A revelação é um evento no qual o homem se renova, no qual ele se torna uma nova criação. Os homens têm expressado sua experiência nesse evento de forma concreta e icônica. As Escrituras são uma coleção de tais expressões. Essas não precisam necessariamente declarar as crenças que produziram a mudança nem descrever a dinâmica da mesma, emboram possam, é claro, fazer as duas coisas.

A análise dessas expressões deve, portanto, se aproximar mais da análise de simbolismos literários do que da análise conceitual. Já que o evento revelatório-salvífico ocorre na história, o expressivo testemunho das Escrituras toma a forma narrativa. Mas o que é religiosamente significante acerca do evento não é nenhum conjunto de fatores acessíveis a um historiador apenas. Assim, as Escrituras não são teologicamente importantes porque contam uma estória, mas porque, ao expressar a ocorrência do evento revelatório-salvífico, elas, de alguma forma, nos ligam àquele evento.

A divina restauração do homem caído é mais bem compreendida como um exercício da criatividade divina e Jesus Cristo é paradigmático dessa criatividade. Um estudo da redenção é um estudo da criação, e ambos são cristocêntricos. A redenção se tornou necessária porque o caos invadiu a criação. E, se o caos invadiu a criação, a criatividade personificada pelo Deus-homem só pode sobrepujar o caos entrando nele. Esse conceito de criatividade é essencialmente cristão e se relaciona diretamente com a forma através da qual a vitória divina nos é apresentada nas Escrituras.

Deve-se especificamente atentar para a mistura estranha de glória e humilhação que caracteriza a criatividade divina, no “mito” cristão, quando esta supera o caos. A redenção é uma continuação da criação. A criatividade transcendente prevalece sobre o caos à medida em que desce à própria presença do caos de modo a capacitar o homem a ascender a uma vida nova e integral.

Se lytrotês é quem paga um resgate, Jesus foi o único Redentor que pagou o resgate com Sua própria vida.

A forma que as Escrituras empregam normalmente para expressar a revelação é a “imagem simbólica”, o mito, isto é, eventos simbolicamente descritos, e não a declaração formal. Mesmo quando nos deparamos com declarações aparentemente formais, elas são mais importantes porque se encontram impregnadas de poder sugestivo por causa das imagens que evocam.

Thornton (1952, p. 15) compara a Bíblia a um álbum em que todas as fotografias expressam um processo criativo cósmico. Porque todas elas expressam aspectos diferentes do mesmo processo, essas imagens se entretecem numa teia complexa que dá ao álbum uma unidade interna. O tema que dá a Bíblia essa unidade é, precisamente, a “redenção”. Além disso, porque cada imagem tem seu valor simbólico enquanto parte dessa teia de relações que inclui outras imagens, o valor simbólico do todo está implícito em qualquer uma das imagens tomada separadamente.

Nos escritos de São Paulo, por exemplo, há a imagem da “reconciliação” e esta apresenta dois lados: um objetivo e outro subjetivo. O aspecto objetivo da reconciliação é aceitação factual do pecador por Deus (declaração cerigmática). O aspecto subjetivo é a cessação da hostilidade do pecador para com Deus (declaração teológica).

CONCLUSÃO

Para Paul Tillich (1963, v. 3, p. 201),

         o assunto da teologia são os símbolos dados pelas experiências revelatórias originais e pelas tradições nelas baseadas. O teólogo deve mostrar que os símbolos cristãos oferecem respostas para as indagações existenciais atualmente formuladas pelos homens.

Justamente por isso, a encarnação da criatividade divina em Jesus Cristo é central posto que Jesus é o único elo entre o “foreground” humano da história e o “background” cósmico nesse processo criativo.

O que ocorreu no Calvário, por exemplo, é, em princípio, o que tem estado acontecendo no foreground histórico desde a queda, isto é, um afastamento da luz em direção ao caos. Destarte, quando a criatividade divina na pessoa do Deus-homem prevalece sobre o caos, entrando nele, ela o supera seguindo uma lei eterna do cosmos, isto é, “é morrendo que se vive”.

Texto originalmente apresentado ao Grupo de Estudos Interdisciplinares Mythos, da Universidade Federal da Bahia, em 1996.

HELMBOLD, A. K. The Nag Hammadi gnostic texts and the Bible. Grand Rapids: Eerdmans, 1967.

KELSEY, David H. The uses of Scripture in recent theology. Philadelphia: Fortress, 1975.

KITTEL, Gerhard (ed.). Theological dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1967. 10 v.

LÜHRMANN, Dieter. An itinerary for New Testament study. London: SCM, 1989.

RODRÍGUEZ, Angel M. Introduccion a la epistola a los Hebreus. Silver Spring: Andrews University, 1995.

TILLICH, Paul. Systematic theology. Chicago: University of Chicago, 1963.

THORNTON, L. S. The dominion of Christ. London: Dacre, 1952.

A Tumba de S. Pedro e a Sucessão Apostólica

por Milton L. Torres, PhD


Quando o Papa Pio XII anunciou, através de um discurso radiofônico, em 1942, a descoberta, debaixo da Basílica de São Pedro, no Vaticano, da tumba de São Pedro, as reações variaram da euforia acerbada ao frio ceticismo. A tumba seria parte de uma extensa necrópole pagã (20 x 65 m) descoberta, em 1939, por acaso, cerca de 9,9 m abaixo da maior igreja do mundo, quando Monsenhor L. Kaas procurava um lugar para a instalação do sarcófago de Pio XI e alterações estavam sendo feitas a fim de se prover espaço para tal finalidade. As escavações tiveram início imediato e duraram quase duas décadas. O discurso de 1942 foi, na verdade, uma precipitação do pontíficie, que acabou tendo de, repetidas vezes, responder às objeções dos arqueólogos não católicos quanto às conclusões às quais chegou o comitê nomeado por ele para tal fim e constituído de B. M. Apollonj-Ghetti, A. Ferrua, E. Josi e E. Kirschbaum. O volumoso relatório das escavações, publicado sob o título de Esplorazioni, não peca, contudo, por falta de escrúpulos, uma vez que inclui uma competente descrição do processo, mas, em contrapartida, tampouco deveria ter dado lugar às estrapolações que se seguiram.

Arqueólogos de ponta, à época, como A. M. Schneider, A. von Gerkan, P. Lemerle, H. Marrou e H. Torp, entre outros, afirmaram que a evidência é inconsistente com a identificação da tumba do apóstolo. Eles rejeitaram, portanto, o relatório oficial (em parte ou em sua totalidade). T. Klauser levantou a objeção de que nunca, de fato, tenha existido qualquer tumba real de São Pedro no Vaticano. De acordo com ele, foi apenas no ano 165 A.D. que os cristãos de Roma se interessaram pela primeira vez em possuir uma tumba do apóstolo. A razão real para tal teria sido a sucessão apostólica, o desejo de dar à Igreja de Roma uma posição privilegiada no Cristianismo ocidental. A despeito dos protestos de H. Torp de que os arqueólogos do Vaticano haviam datado o cemitério sob a basílica de São Pedro cinquenta anos mais cedo do que deviam, a descoberta de outra necrópole debaixo do estacionamento do Vaticano provou que a área já estava sendo usada como cemitério pelo menos no ano 67 A.D., o que se encaixa bem na cronologia da morte do apóstolo. O problema é que, de acordo com o relatório oficial, a estrutura identificada como sendo o assim-chamado troféu (mencionado por Gaio em sua disputa com Proclo) deve ser datada entre os anos 160 e 175 A.D., fazendo com que uma lacuna de cem anos exista entre a morte de Pedro e a construção do monumento. Eusébio, em História eclesiástica 2.25, refere-se à afirmação de Gaio, segundo a qual os túmulos de Pedro e Paulo teriam sido erigidos em Roma. Embora T. Klauser objete às conclusões do relatório oficial, ele admite que o monumento recuperado sob a basílica seja mesmo o troféu de Gaio. Sua posição, contudo, é que o troféu não se encontra sob a tumba de Pedro conforme alegado pelo relatório.

O assim-chamado Liber pontificalis (uma coleção de biografias papais, compilada entre o quarto e o nono séculos) dá um detalhado, mas às vezes confuso, relato da obra feita, na Antiguidade, a pedido do Papa Silvestre e sob a autoridade do Imperador Constantino, na suposta tumba de São Pedro: “a pedido de Silvestre, Constantino Augusto construiu uma basílica para o bendito apóstolo Pedro próxima ao templo de Apolo, encobrindo, assim, o sepulcro do corpo de São Pedro. Ele fechou a tumba mesma em todos os lados com bronze cíprio, tendo-a construído com alvenaria... Adornou, então, o altar acima com colunas de porfírio, e fez uma cruz do ouro mais puro, pesando 150 libras, que colocou acima do bronze que encapsulava o corpo de Pedro.” O texto da inscrição gravada por Constantino e Helena se encontra preservado em uma inscrição (no. 4093 do segundo volume de Inscriptiones christianae urbis Romae septimo saec. Antiquiores). Nada disso foi encontrado junto à estrutura identificada pelo relatório oficial como sendo o troféu de Gaio. O que temos é um graffito grego na assim-chamada “Parede Vermelha” com as letras PETR e outro graffito latino na tumba dos Valérios (Tumba H) com as letras PETRU, a cerca de 30 m de distância da estrutura, acompanhado de duas pinturas, uma sobre a outra: o busto de Cristo (acima) com a legenda “vivo” e o símbolo da fênix, e o busto de Pedro acompanhado de uma epígrafe de cinco linhas de extensão. A. von Gerkan explicitamente discorda do relatório, afirmando que tal estrutura não pode absolutamente alojar uma tumba, mas – quem sabe – um cenotáfio, um memorial sem túmulo construído para comemorar a morte do apóstolo. Mas nem mesmo esta sugestão soluciona o problema uma vez que o termo grego troféu jamais se refere, na literatura, a um cenotáfio. Com efeito, os estudos de J. Bernardi provam, com base em passagens de Eusébio, Gregório de Nisa, Basílio, Gregório Nazianzo e Prudêncio, que o termo se referia, de fato, ao corpo ou às relíquias de um mártir.

Os arqueólogos católicos obviamente não se interessaram pela proposta de A. von Gerkan de que o troféu seja mesmo apenas um cenotáfio, pois implicaria que a Igreja de Roma não teria o corpo de Pedro, mas que apenas teria construído um monumento dedicado ao apóstolo. Com isso, recaiu sobre os católicos o fardo de explicar a lacuna de pelo menos cem anos entre a morte do apóstolo e a edificação do troféu, e a lacuna de outros quase cem anos entre a construção do monumento e a inauguração da basílica dedicada ao apóstolo. jérôme Carcopino propôs uma interpretação da segunda lacuna com uma referência à tradição antiga de que o corpo de Pedro teria sido enterrado, durante certo tempo, na catacumba de São Sebastião, em Roma, a fim de poupar o corpo do apóstolo da perseguição dos pagãos. Os restos do apóstolo teriam sido clandestinamente removidos de seu suposto sepulcro original no Vaticano, em 258 (quando o Imperador Valeriano decretou que os cemitérios cristãos não mais poderiam ser visitados), e trasladados para São Sebastião, onde ficariam até 336 quando, por ocasião do término da construção da basílica de Constantino, teriam retornado ao sepulcro supostamente associado ao troféu. As relíquias do apóstolo teriam, então, permanecido em frente do troféu até o sexto século, quando o Papa Gregório, o Grande, as teria transferido para um local menos conspícuo por causa de seu temor de uma invasão dos godos. Carcopino, no entanto, nem sequer sugere que os ossos encontrados debaixo do nicho do troféu tenham sido os do apóstolo, uma vez que a invasão dos bárbaros saracenos comprometeu a integridade do sepulcro no século nono. Segundo os arqueólogos católicos, as relíquias de Pedro podem ter sido, em vez disso, transferidas, nessa época, para a Igreja de São Paulo, no Palácio Laterano, em Roma, um lugar conhecido como sancta sanctorum. De fato, há referências a essa tradição (aparentemente rival à do sepultamento no Vaticano) desde o séc. XII: as cabeças de Pedro e Paulo teriam sido sepultadas no Laterano enquanto os demais restos dos dois apóstolos teriam recebido sepultamento no Vaticano.

Todas essas especulações pressupõem que o corpo de Pedro tenha sido colocado sob os cuidados dos cristãos, uma vez que a lei romana exigia que os corpos de criminosos fossem atirados às águas do Tibre. Contudo, se o sepultamento do corpo de Pedro foi mesmo permitido, sua sepultura seria protegida pela lei romana por se constituir naquilo que os romanos chamavam de locus religiosus, uma vez que a religião pagã considerava invioláveis os sepulcros. Por isso, E. Schäfer se opõe veemente à teoria da trasladação das relíquias de Pedro em 258. Ele argumenta que não teria havido necessidade para tal transferência uma vez que a tumba de Pedro se localizaria num cemitério pagão e não estaria, portanto, sujeita à proibição do Imperador Valeriano, que havia transformado os cemitérios cristãos em lugares proibidos. Além disso, é bem improvável, em se considerando o alto respeito que os romanos tinham pelos mortos, que estes tenham cometido quaisquer atos de desrespeito aos corpos sepultados nos cemitérios cristãos mesmo durante os períodos de perseguição. A presença de graffiti na catacumba de São Sebastião, na via Ápia, referindo-se a Pedro pode ser bem explicada, em vez disso, como evidência de um culto rival que considerava aquele sítio como local original do sepultamento do apóstolo.

De acordo com um edito do Imperador Valeriano citado na Acta Cypriani, a veneração das relíquias dos mártires já existia, em Roma, por volta de 258 A.D. Assim, pode-se estabelecer, de fato, uma longa tradição associada ao sepultamento de Pedro e Paulo em Roma. O argumento mais forte em favor à existência da tumba de Pedro no Vaticano diz respeito à construção da basílica constantiniana ali. Em vista do fato de que Constantino construiu sua basílica sobre um cemitério pagão, quando este era considerado inviolável pela elite pagã romana, e quando os cristãos já possuíam seus próprios cemitérios, e em vista do fato de que, para construí-la ali, Constantino teve que superar formidáveis dificuldades arquiteturais, o imperador certamente pensava que o apóstolo estava enterrado ali. Tal conclusão é corroborada pelo fato de que, em 349 A.D., o Imperador Constante passou uma lei que proibia severamente o violatio sepulcri (violação de sepulcros), fazendo-a, inclusive, retroativa aos dezesseis anos anteriores. A razão para isso é que, em 333, Constantino havia dado as ordens de destruição da necrópole pagã no Vaticano a fim de ali construir sua basílica, o que gerou uma espoliação generalizada das sepulturas ali existentes.

A conclusão é que são tantas as incógnitas associadas à categórica afirmação do Vaticano de que a tumba de São Pedro jazeria sob a basílica dedicada ao apóstolo que causa estranheza a insistência de Pio XII, à época, de que Pedro estaria enterrado ali. O que parece é que o pontífice fez uso de uma investigação arqueológica de grande interesse para meramente renovar a alegação católica de que a sucessão apostólica confere autoridade ao Vaticano. Seu esforço falhou em duas instâncias: fica a dúvida arqueológica de que o Vaticano tenha sido mesmo o lugar de sepultamento do apóstolo e fica, outrossim, a aparência mal disfarçada de que o Vaticano não tem nada mesmo que lhe confira primazia sobre as demais igrejas. De acordo com os objetores, não seria esta a primeira vez que o Vaticano estaria tomando medidas extremas para garantir moral e legalmente um lugar de destaque entre os cristãos do ocidente, já que, em 760 A.D., durante o papado de Paulo I e com sua provável conivência, foi criada a notória “Doação de Constantino”, um documento forjado pelo Vaticano através do qual o Imperador supostamente teria outorgado ao papa, por ocasião da mudança da capital de Roma para Constantinopla, o controle político de Roma e do ocidente.

Wednesday, September 19, 2012

Minha História de Vida


por Milton L. Torres, PhD



Origens

“Vede, não desprezeis a qualquer destes pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de meu Pai celeste” Mt 18:10 (ARA).

Meu pai abandonou-nos antes de eu completar oito anos. Todas as lembranças que tenho dele pertencem, portanto, aos oito primeiros anos de minha vida. Até pouco tempo, a única fotografia que nos restou desses tempos perdidos na névoa da existência me mostra tímido, tentando esconder-me atrás de outras pessoas. Ao fundo, um cômodo de táboas que hoje sei ter sido minha primeira residência. Não tínhamos banheiro ou água corrente. Não me recordo se havia eletricidade.

Desses oito primeiros anos, não me lembro com detalhes. Sei que, bêbado, meu pai me dava, às vezes, uma arma carregada para que corresse atrás de minha mãe e a assustasse. Sei que, certa vez, obrigou-me a fazer uma longa caminhada, sozinho, a fim de depositar, debaixo de uma ponte, uma galinha morta, que eu carregava para uma de suas feitiçarias. Lembro-me de tê-lo visto espancar minha mãe mais de uma vez. Obrigava-me, vez por outra, a comer carnes pouco convencionais: macacos, tatus, jiboias, gatos. Sei que, antes de meu pai nos deixar, tentei, em vão, fugir de casa. Lembro-me das fobias noturnas, que me deixavam insone, imaginando fantasmas e monstros, primeiros exercícios da minha imaginação. O meu mundo fazia parte de um universo escuro e inseguro, cuja única luminosidade provinha das visitas que fazia à igreja e do contato amigo dos sacerdotes. Minha única esperança era que houvesse um Deus capaz de se compadecer de nosso sofrimento constante, das privações de comida e afeto, das incompreensões e abusos.

Quando meu pai se foi, percebi ser aquela a oportunidade para que construíssemos um lar novo. Assumi, imediatamente, a responsabilidade pela família, saindo com uma caixa de engraxate e com um pacote de doces a fim de complementar o salário mínimo que minha mãe recebia por contar vacinas na Secretaria de Saúde do estado. A despeito de todas as vicissitudes, sentia-me um predestinado, capaz de superar as dificuldades a fim de continuar vivo. Na aurora da vida, em meio a um turbilhão de problemas, Deus me foi um “alto refúgio e proteção no dia da minha angústia” Sal 59:16 (ARA), e nunca deixei de me dar conta disso.


Mudanças

“Não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira” Cant 3:5 (ARA).

A adolescência é sabidamente um período difícil. São alterações demais para que a mente comum consiga escapar às diversas ansiedades geralmente associadas com as mudanças. Mudanças no tom de voz, mudanças na estatura, mudanças na quantidade de pêlos espalhados pelo corpo, mudanças hormonais, mudança do primeiro para o segundo grau, mudanças em relação à atitude para com o sexo oposto, mudança da fisionomia de criança para a fisionomia amorfa de quem não é mais criança mas ainda não chegou à idade adulta. Você já passou por isso e sabe do que estou falando... Tudo isso fica ainda mais complicado quando essas mudanças são acompanhadas de uma “queda”. Você já teve uma “queda” por alguém? Você já se sentiu desesperadamente ignorado e sem forças para mudar a situação? Era exatamente assim que me sentia quando, em plena puberdade, tive uma “queda” por uma menina mais velha. Agora, não me entendam mal. Oito meses representam uma diferença de idade considerável quando se está aos quatorze anos e se começa a gostar de uma menina de quinze!

Outros fatores fizeram com que a dificuldade fosse ainda maior. Tania (escrito sem acento como ela sempre preferiu) era diferente de mim em praticamente todos os sentidos. Era popular, vestia-se bem, tinha uma religião diferente, andava com rapazes mais velhos do que eu, estava mais adiantada na escola e tinha uma condição sócio-econômica consideravelmente superior à minha. Além disso, todas as vezes que se aproximava de mim, deixava-me mais destituído de energia do que o super-homem quando exposto à criptonita. As palavras ficavam confusas, as mãos começavam a suar e o cérebro simplesmente emperrava, obrigando-me a fazer um “reset” tão logo ela se afastava. Se você já passou por uma situação semelhante, acho que você vai gostar das meditações desta semana. Enquanto isso, lembre-se do que está escrito na Bíblia: “se não me fizerdes saber o sonho, uma só sentença será a vossa” (Dn 2:9); ou seja, quando temos um sonho, é preciso contá-lo para que se concretize. No caso dos sonhos de amor, é preciso contá-lo, primeiro, a Deus e, depois, à pessoa com a qual sonhamos.


Falando com os olhos e com a boca

“Esquentou-se-me o coração dentro de mim, enquanto eu meditava se acendeu um fogo; então falei com a minha boca” Sal 39:3 (BRP).

Como é possível falar do inenarrável? Como é possível descrever o indescritível? Como se pode falar de sentimentos cuja profundidade é determinada mesmo pelo fato de serem sentidos pela primeira vez? Como se pode falar de amor a uma jovem? Pode haver uma ocasião ideal para isso? Não os vou enganar. Não sei as repostas para essas perguntas e nem sei se essas perguntas têm respostas padronizadas, aplicadas, sem distinção, a todos os casos. Vou contar-lhes apenas como fiz, mas tampouco sei se isso será suficiente.

Primeiramente devo dizer-lhes que não planejei nada. Queria que aquele momento fosse espontâneo. Não decidi nem a hora e nem o local. Fiquei simplesmente aguardando uma oportunidade, um momento em que ela sorrisse, quem sabe o sol irradiasse seu calor aconchegante ou, se fosse à noite, uma estrela mais brilhante do que as outras nos alegrasse com sua presença. Tudo o que lhes posso dizer é que eu soube quando esse momento havia chegado. Não foi a mais romântica das horas e nem sei se o que aconteceu conspirou imediatamente para a minha felicidade ou simplesmente inaugurou uma era de incertezas, sofrimentos e angústias. No entanto, posso assegurar-lhes que foi um momento extático, embora curto.

Quando se gosta silenciosamente de uma pessoa, fazem-se todos os esforços para que gravitemos em torno dela, assim como as mariposas são atraídas para a luz que as cega e confunde. Esperava-a todos os dias no ponto do ônibus. Não me importava com o fato de que, às vezes, vários ônibus vinham e iam até que ela chegasse. Ao vê-la, procurava fazer uma fisionomia de casualidade, como se fosse a maior das coincidências que sempre voltássemos da escola no mesmo ônibus.

O ônibus quebrou no caminho, perto da casa dela, e, enquanto caminhávamos juntos os poucos blocos que nos separavam da casa que ainda não havia sido capaz de identificar exatamente, tomei-lhe a mão e caminhamos de mãos dadas. Ali, sozinhos, ela consentiu...Eu não precisava de palavras para lhe revelar os meus sentimentos. Descobri, depois, contudo, que o evento havia tido muito mais significado para mim do que para ela, “mas quem poderia conter as palavras?” (Jó 4:2).


Esperança confusa

“Aguardava eu o bem, e eis que me veio o mal; esperava a luz, veio-me a escuridão” Jó 30:26 (ARA)

Andar de mãos dadas com a menina dos meus sonhos foi, para mim, um dos eventos mais significativos da adolescência. Digo “para mim”, pois descobri, logo depois, que esse mesmo evento não havia tido nenhuma repercussão extraordinária para ela. Nós nos víamos, conversávamos, passávamos um bom tempo juntos. Era óbvio que havia, da parte dela, algum interesse por mim. No entanto, quando estávamos com algum dos seus amigos ou com algum dos meus amigos, ela se transfigurava, tornando-se outra pessoa: fria, distante, alheia. Era como se eu, por alguns momentos, deixasse de existir.

Aqueles foram os piores dias, aqueles foram os melhores dias. Quando sozinhos, desfrutava de sua atenção absoluta. Íamos a lugares, conversávamos sobre todos os assuntos, ríamos de nós mesmos e dos outros. Mas, quando na presença de um conhecido, a lua entrava em eclipse até que a sombra partisse. Completamente confuso, eu alternava momentos de esperança e de perplexidade. As únicas razões por que continuava me subtendo a essa interminável alternância de esperança e perplexidade eram, em primeiro lugar, que havia uma frágil certeza de que ela nutria algum tipo de sentimento por mim e, em segundo lugar, porque não havia como não fazê-lo. Agarrava-me como podia ao mastro, mas, ainda assim, fascinava-me o canto da sereia. Sentia-me como um camundongo indefeso com quem se divertia um bichano sem se dar contas de sua alegre perversidade. Naquele tempo, quando eu tinha cabelos longos, perdi as forças sem que ela tivesse que cortá-los. Quem nunca sofreu dos males do amor que atire a primeira pedra!

No entanto, a “minha esperança era a sinceridade dos meus caminhos” Jó 4:6. A verdade é que nunca joguei jogos, nunca lhe fui insincero e nada fiz para reverter a situação que não partisse da sinceridade de um coração espontâneo. A recompensa disso foi o primeiro beijo, na chuva, aos quatorze anos, no mesmo dia em que, por falta de recursos financeiros, tivera arrancado da boca o único dente que hoje me falta. De novo, a redenção não veio em um momento romântico. Ainda assim, aqueles foram os melhores dias.


Traído pelo coração

Texto: “Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo; esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei” Sal 69:20 (ARC).

Quando me disseram ter visto a minha namorada saindo do cinema com um outro rapaz, havia diversas razões para que não cresse nisso. Tania pertencia a uma religião estranha para a qual ir ao cinema era tabu. Não entendia muito acerca dos adventistas, mas sabia que eles não recomendavam que os jovens fossem ao cinema. Em segundo lugar, a despeito dos momentos em que ela ficava espiritualmente distante de mim (que só ocorriam quando estávamos na presença de outras pessoas), ela geralmente me olhava de um jeito que deixava claro que, algum dia, eu saberia por que as coisas precisavam ser assim. Ou seja, eu confiava nela. Além disso, boatos sempre aparecem quando os outros percebem que exalamos uma atmosfera de contentamento.

Fui imediatamente à casa dela e confrontei-a. Tania morava em uma casa ampla com uma varanda agradável e localizada ao fim de uma passarela construída entre dois espaços em que se cultivavam árvores, hortaliças e flores. Antes de passar pelo portão entreaberto em um muro alto, era necessário certificar-me de que o cachorro estava acorrentado, pois o monstro intimidava mesmo as pessoas mais destemidas. Ao percorrer aquele caminho, nunca ficava à vontade, temeroso de que uma sombra negra se materializasse e tivesse que fugir à toda, como já acontecera uma vez.

Confrontei-a e ela não me disse palavra. Ameacei ir embora, caso ela continuasse calada. Ela me respondeu, sem demonstrar emoção: - Feche o portão, ao sair. Fui embora, pois os brios assim o exigiam. Saí apressado e confuso: tanto tempo com ela e ainda não a conhecia. Fiquei oito meses sem vê-la. Evitava todos os lugares onde pudesse encontrá-la. Diziam-me que estava namorando. Diziam-me que estava feliz. Um dia apareceu, sem anunciar, à porta da minha casa. Não falou de arrependimentos ou decepções. Falou-me apenas que sentia minha falta, que nossas canções faziam-na lembrar-se de mim, que me queria de volta. Pela primeira vez, uma nuvem negra me encheu o coração, dizendo-me: - Por que não? Por que não lhe dar uma dose de seu próprio veneno? “O dia da vingança estava no meu coração” (Is 63:4), e esta é uma das poucas coisas de que me envergonho no meu relacionamento com a mulher com quem havia de me casar um dia...


Vingança insípida

“Visto como os filisteus usaram de vingança e executaram vingança de coração com malícia, para destruírem com perpétua inimizade... eis que eu estendo a mão contra os filisteus” Ez 25:15-16 (ARC).

Há dias que deveriam ser simplesmente riscados da história, mesmo de uma história de amor. Eu não havia, ainda, me recuperado do fato de que Tania havia ido ao cinema com outro rapaz. E o que estava pela frente era ainda pior. Magoado, eu buscava uma oportunidade de ficarmos quites, e eu encontrei essa oportunidade. O pior é que já não éramos mais os adolescentes ingênuos que havíamos sido. Depois de recomeçarmos o nosso namoro, ela estava mais madura e afetuosa, e já não mudava de temperamento na presença de outras pessoas. Andava entusiasmada com a formatura do segundo grau e fazia todos os planos para que comparecêssemos, em roupa de gala, ao evento. Apesar de eu ter ainda pela frente mais um ano de estudos antes de poder participar da minha própria formatura, ela me havia escolhido para entrar com ela. Acho que eu seria o acompanhante mais jovem entre todos os que participariam, pelo menos assim pareceu durante os ensaios.

Tania estava radiante e, antes de o programa começar, desfilava, sorridente, entre as amigas mais íntimas. Por um motivo fútil, criei uma situação de desavença e acabei me afastando dela para flertar com uma de suas colegas de classe. A moça correspondeu e passei a dar-lhe toda a atenção, como se fosse, de fato, a única presente no salão. A surpresa, com um misto de decepção, atingiu Tania em cheio. Não mais sorria, andava, pálida, com passos trôpegos, e me olhava com olhos chamejantes, como se quisesse me apagar da memória. O ato de vingança surtiu efeito pior em mim. Agradou-me magoar aquela que havia me machucado tanto. Fiquei rememorando, quase que saboreando, os louros daquela vitória. A partir daquele momento, eu não mais seria a mesma pessoa. Tornara-me um ser confuso, inseguro quanto às aspirações e dividido entre o perdão e a vingança. Eu ainda não conhecia, de verdade, o Senhor que é “bom e pronto a perdoar, e abundante em benignidade para com todos” Sal 86:5 (ARC).


Salvos pelos avós

“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar” Êx 20:8.

A formatura de Tania ocorrera no final de 1979 e nosso relacionamento não se restabelecera completamente depois disso. No entanto, algo se passou no início de 1980 que nos deu um novo alento. Ela, por várias vezes, havia me convidado para que assistisse a uma programação em sua igreja. Mesmo com toda a influência que ela exercia sobre mim, eu tinha tanto preconceito com respeito às igrejas evangélicas que nunca aceitara o convite. A mãe dela já me obrigara a ler o livro O lar adventista como condição para que apoiasse nosso namoro, mas ir a uma igreja evangélica era um outro nível de envolvimento para o qual eu não estava preparado. Apesar disso, quando os avós insistiram para que fosse, com eles, à igreja no primeiro sábado de janeiro, não tive como me esquivar.

O ambiente da Igreja Adventista de Concórdia, em Belo Horizonte, acabou sendo mais agradável do que eu havia previsto. A música tinha um ritmo peculiar, mas agradável, e, além disso, impressionei-me com a eloquência de um homem dando explicações sobre “A redenção no livro de Romanos”, título que pude perceber em um impresso com formato de lição. O culto em si não me agradou muito. Um homem sem muita cultura insistia na importância da mordomia cristã, uma expressão que, naquela época, me soava como uma verdadeira contradição de termos.

Um incidente significativo ocorreu, contudo, quando o avô de Tania me indagou se eu conhecia os dez mandamentos. Comecei a recitá-los para ele até que me interrompeu, dizendo que havia me equivocado em relação ao quarto mandamento. Segundo ele, os cristãos deveriam guardar o sábado e não o domingo. Quando aquele homem semi-analfabeto abriu a Bíblia e começou a mostrar-me que a guarda do sábado era uma importante indicação da qualidade de nosso relacionamento com Deus, interessei-me pelo assunto e passei a frequentar a igreja assiduamente. Isso foi fundamental naquele momento, pois senti-me forte o bastante para recuperar um pouco da auto-estima perdida durante o ato estranho que havia cometido durante a formatura de Tania e, ao mesmo tempo, deu a ela a esperança de que as coisas pudessem melhorar entre nós.


Jeans remendados e cabelos despenteados

“Falarás também a todos os homens hábeis a quem enchi do espírito de sabedoria, que façam vestes para Arão para consagrá-lo, para que me ministre o ofício sacerdotal” Êx 28:3 (ARA).

Fui batizado e admitido à igreja adventista na primavera de 1980, aos dezessete anos. A religiosidade sempre havia sido uma parte importante de minha vida. Os parentes diziam que eu ia ser padre, pois a minha própria presença fazia com que os outros jovens evitassem linguagem descuidada ou brincadeiras inadequadas. Capitão do time de futebol, exercia uma influência positiva sobre os jovens do bairro. Mesmo como membro da igreja adventista, continuava a usar jeans remendados, mantinha a camisa semi-aberta e o cabelo comprido e sem pentear. Assim, cheguei a professor da Escola Sabatina da igreja do Planalto, em Belo Horizonte, sob o olhar de aprovação de Tania, cada vez mais convicta de que nosso relacionamento tinha um futuro.

Ao participar de um concurso de oratória eclesiástica, classifiquei-me para a final, na igreja de Timbiras. Os competidores, elegantemente vestidos, fizeram seu melhor para impressionar os jurados, então dirigidos pelo Pr. Alejandro Bullón. Não recebi prêmio algum, mas, ao sair da igreja, o Pr. Bullón me interceptou e me disse ter se impressionado com meu discurso. Lamentou que eu não estivesse vestido adequadamente e me disse que deveria considerar uma carreira no ministério adventista.

Recebi, certa vez, a visita de um líder da igreja local. Ele me informou que eu não poderia continuar a ser professor da Escola Sabatina uma vez que minhas roupas não se adequavam às expectativas da igreja. Enquanto tentava recuperar-me das más notícias e já havendo tomado a decisão de não ceder à pressão, o líder buscou no carro um embrulho. Tratava-se de elegante terno, incluindo camisa e gravata, tudo novo e cheirando a loja. Disse-me que não me forçaria a conformar-me aos padrões da igreja, mas, caso quisesse, poderia usar o presente e continuar com minhas funções no sábado. Não preciso dizer que, no fim de semana seguinte, fui à igreja de cabelo cortado, penteado e vestido a rigor.


Salvando o natal

“Porque morando eu em Gesur, na Síria, votou o teu servo um voto, dizendo: Se o Senhor outra vez me fizer tornar a Jerusalém, servirei ao Senhor” 2 Sm 15:8 (ARC).

Antes do final de 1980, minha irmã também havia se unido à igreja adventista do Planalto e, por isso, participar dos cultos havia se tornado uma atividade muito mais festiva para nós. De fato, minha irmã estava namorando um jovem carismático e talentoso, de muita influência na igreja. Era o único que conseguia ter acesso a minha mãe e à irmã caçula, que se mantinham fechadas a qualquer aproximação do evangelho. Vânia, a irmã de Tania, namorava o tesoureiro da igreja, um rapaz dinâmico e espiritual, que passava por um momento difícil, pois pesava sobre ele a suspeita (e acusação) de estar se apropriando indevidamente dos fundos da igreja.

Quase todos nós teríamos alguma participação especial no programa de natal e, por isso, o namorado de minha irmã convidara minha mãe e irmã caçula, hoje casada com um pastor adventista, para que viessem assistir à programação. Sua gentileza e contínuos obséquios garantiam que elas nunca lhe negassem um pedido. Minha incapacidade musical me privara da oportunidade de participar do programa, mas Tania, Vânia, Mônica e os namorados cantariam. Tudo pronto para o início do musical, o evento foi interrompido pela chegada de policiais que prenderam e levaram o namorado de Mônica.

Ninguém compreendia o que estava acontecendo e minha mãe exigia, com veemência, que alguém fizesse alguma coisa pelo namorado de minha irmã. Quando se esclareceu que ele era o real culpado pelo consistente desaparecimento de fundos na igreja, minha mãe calmamente anunciou sua decepção com o gênero humano. Aquele havia sido o único adventista no qual ela confiara. O natal acabara para ela e para a igreja. Em meio ao clima de funeral, senti que era o momento de fazer algo para salvar a situação. Anunciei, resolutamente, que, se o Senhor me abençoasse, partiria para o seminário a fim de me tornar pastor adventista. Sem compreender, ainda, as implicações disso, Tania e minha mãe foram contagiadas pelo espírito de júbilo que tomou conta da igreja. O natal estava salvo e as palavras do Pr. Bullón, concretizadas no meu gesto espontâneo, anunciavam que, naquele momento, eu assumira um compromisso sério de servir a Deus.


Rumo ao desconhecido de Deus

“Espera no Senhor, segue o seu caminho, e ele te exaltará para possuíres a terra” Sal 37:4 (ARA)

Da resolução de ir para o seminário até a concretização do ato, pouco tempo se passou. Trabalhava em uma autarquia federal onde desfrutava de prestígio incompatível com minha função subalterna. Começara, ali, como estafeta e havia conquistado a confiança dos demais funcionários pela rapidez e eficiência no desempenho de minhas tarefas. O chefe da autarquia era também o diretor da Coseg, a polícia de elite de Belo Horizonte. Informado de minha decisão, envidou esforços para que permanecesse no trabalho. Chegou a oferecer-me um curso de perito criminal com as despesas pagas e salário durante os estudos. Quando não cedi a sua insistência, concordou em demitir-me para que pudesse usar o dinheiro da indenização a fim de me transferir para Pernambuco.

Antes de partir, informei a Tania que não mais seria possível que ficássemos juntos, uma vez que minha decisão implicava em romper elos e começar uma vida nova. Sendo arrimo de família, minha partida significava que minha mãe e irmãs estariam, mais do que nunca, entregues à misericórdia do Senhor. Ninguém, em minha família ou na de Tania, apoiou ou mesmo concordou com minha decisão, uma vez compreendidas suas implicações. Eu acabara de completar dezoito anos e minha partida me assustava bastante. Exceto por uma viagem ao litoral do Espírito Santo, nunca havia saído de Minas. Dentro do ônibus, pronto para iniciar o trajeto, vendo minha mãe chorar do lado de fora, fiz uma rápida oração a Deus, pedindo-Lhe um sinal de que cumpria Sua vontade. Tomei a Bíblia e a abri, providencialmente, no texto: “eis que eu envio um anjo adiante de ti, para que te guarde pelo caminho e te leve ao lugar que tenho preparado” Êx 23:20 (ARA). Convicto de que aquela era uma resposta de Deus, acenei minhas despedidas enquanto o ônibus se afastava. Ao longo do caminho, escolhi uma estrela brilhante para simbolizar o meu anjo e fixei nela o meu olhar durante o trajeto.

Tania não veio à rodoviária. Ainda que novamente abatida pela decepção, não desistira de mim. Eu não sabia disso, mas nem mesmo centenas de quilômetros seriam suficientes para separar duas pessoas cujos corações estavam entrelaçados à altura da alma e do espírito, das juntas e da medula, dos pensamentos e das intenções.


Sapos fervidos e uma garrafa térmica

“As minhas entranhas fervem e não estão quietas; os dias da aflição me surpreendem” Jó 30:27 (ACF).

Durante meu primeiro ano no seminário, fiquei compenetrado nos estudos. Numa época em que não havia emails e as ligações telefônicas eram economicamente proibitivas, recebia cartas diárias de Tania. Inconformada com minha decisão de romper o namoro, ela se esforçava por me convencer de que eu tomara uma decisão equivocada. No ano seguinte, ela veio estudar no seminário. A partir daí, teve início uma verdadeira rapsódia em que ela buscava reatar o namoro e eu, confuso, ora lhe dava esperanças, ora tirava-lhe todas as perspectivas.

Os meus amigos do seminário, a quem ela conquistou logo com sua simpatia e perseverança, se incomodavam com a instabilidade de nosso relacionamento. Em uma certa noite de sábado fui duro com Tania como poucas vezes havia sido. Ao narrar o relato para o Braguinha, o mais íntimo de meus amigos, demonstrei certa indignação quanto ao modo inseguro como reagia em relação à antiga namorada. Ao contar-lhe as palavras ríspidas que lhe dissera, o Braguinha decidiu vingar-se.

Ajoelhado ao pé da cama, fazia a oração costumeira antes de dormir, quando ouvi um clique metálico e senti um peso frio nas pernas. O Braguinha havia me algemado à cama com o pretexto de dar-me tempo para refletir acerca de minhas inseguranças. Assim fiquei por vinte e quatro horas, sem direito a confortos ou condescendências. As refeições me traziam os outros amigos, divertindo-se com minha vicissitude. Às necessidades, porém, não havia como satisfazer. Em um momento de apuros, lembrei-me da garrafa térmica do Braguinha, que me serviu de urinol. O Braguinha nunca perdeu o amigo. No entanto, deu adeus à garrafa térmica. Naquele tempo ele nada sabia sobre sapos fervidos. Mas, por causa do desconforto, me fez sentir como um. Era como se o Braguinha tivesse atendido à ordem dada por Deus a Ezequiel em relação a Jerusalém, antes da invasão babilônia: “amontoa muita lenha, acende o fogo, ferve bem a carne, e tempera o caldo, e ardam os ossos” Ez 24:10 (ACF). Essa é uma descrição precisa da reflexão que fiz, naquele dia, sobre minha confusão mental, resultante da constatação de que ainda nutria sentimentos em relação a Tania, ao mesmo tempo em que temia que um de nós dois pudesse trazer ainda mais sofrimento e decepção ao outro, o que não me parecia condizente com a minha condição de futuro pastor.


O pedido

“Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor” Cant 2:5 (ARA).

Tania acabou voltando para Belo Horizonte no final de 1983. Em nossa despedida, perguntou-me, segundo ela, pela última vez, se deveria nutrir, ainda, algum tipo de esperança em relação a mim. Minha resposta foi negativa.

Tendo saído para colportar, isto é, para vender livros evangélicos de porta em porta, a fim de conseguir os fundos necessários à minha manutenção na escola no ano seguinte, o último do seminário, retornei a Belo Horizonte, no início de 1984, para o casamento de Vânia, a irmã de Tania. Não nos falamos durante a cerimônia, embora tivesse me incomodado o fato de vê-la com um rapaz da igreja, um jovem e promissor estudante de medicina. Ao chegar em casa, recebi a visita de um colega de colportagem que me disse ter acabado de ver Tania abraçada com o rapaz no ônibus. Segundo ele, se não agisse rapidamente, perdê-la-ia para sempre.

Nesse momento, as palavras ficaram confusas, as mãos começaram a suar e o cérebro simplesmente emperrou, efeitos que, outrora, experimentara tantas vezes na presença de Tania. Fui imediatamente à casa dela, mas descobri que se encontrava na festa de casamento do pai do rapaz. Dois casamentos ocorriam no mesmo dia, e eu corria o risco de perder o meu. Fui até lá e encontrei-os flertando à porta. O rapaz gentilmente se ofereceu para buscar-me algum refresco. Enquanto, ele entrava pela casa, fiz uma única pergunta a Tânia: quer se casar comigo? Ela olhou-me nos olhos e respondeu com uma outra pergunta: quando? Marcamos a data, demo-nos as mãos e saímos imediatamente.

O que me faltara fôra uma decisão. Tania se tornara cada vez mais carinhosa e, desde que nos casamos alguns meses depois, temos desfrutado de um companheirismo sincero em que nos dedicamos intensamente um ao outro. É possível dizer, como nos contos de fadas, que vivemos felizes para sempre. Por favor, não tentem me analisar, não me falem dos caprichos da personalidade masculina: “eu dormia, mas o meu coração velava” Cant 5:2.


Missionários

“Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto” Prov 25:25 (ARA).

Uma das qualidades que mais aprecio em Tania é que posso contar com ela em quaisquer circunstâncias da vida. Ela é uma pessoa que não procura evadir-se aos golpes dos infortúnios, mas enfrenta-os de frente, com coragem e fé, sem esmorecer e sem reclamar. Quando indaguei-lhe sobre sua opinião acerca da obra missionária em terras distantes, ela me respondeu que se dispunha a acompanhar-me aonde quer que fosse.

Contei aos amigos que me candidatara a uma vaga de obreiro bíblico em uma série metropolitana de evangelismo na cidade de Anchorage, no Alasca, mas riram-se de mim como Sara havia rido do anjo. Recebi, em vez da chance em Anchorage, um chamado da Associação do Alasca para ser o pastor da Igreja Adventista de Delta Junction e aceitei-o prontamente. Deixara, no entanto, de lhes mencionar que eu não preenchia dois dos requisitos que exigiam para o cargo: não era solteiro e não sabia dirigir.

Nos poucos dias que tive para fazer os acertos de viagem, consegui obter a carta de habilitação. Em Pernambuco, naquela época, exigia-se que a baliza fosse feita em menos de dois minutos. Como nunca havia dirigido um automóvel, não conseguia, por mais que tentasse, fazer a baliza dentro do tempo previsto. Decidi ir ao exame, de qualquer modo, uma vez que o mesmo já estava agendado. Enquanto esperava a vez, assistia, na televisão, à partida entre Brasil e Alemanha pelos jogos olímpicos de 1988. No exato momento em que o goleiro brasileiro defendeu um pênalti, no final da partida, chamaram o meu nome. A adrenalina me ajudou, esta única vez, a fazer a baliza nos dois minutos.

A parte difícil seria dizer à Associação do Alasca, que visava à economia, que eu era casado e que eles deveriam também enviar-me uma passagem aérea para Tania. Pensei em desistir de tudo, mas um amigo me veio em socorro, afirmando que Deus nunca abençoa pela metade e que, se eu perseverasse, isso não seria um impecilho para servi-Lo. Falei com o Alasca e a outra passagem nos foi enviada. Partimos, então, para uma de nossas maiores aventuras. Deus recompensou-nos os esforços e tivemos um ministério profícuo naquela região, com tantas histórias que estas não caberiam aqui.


A herança do Senhor

“Eis que os filhos são herança do Senhor” Sal 127:3 (ARC).

O frio do Alasca nos fez bem e Tania ficou grávida. No entanto, na sexta-feira da paixão, perdeu o bebê por causa de uma toxoplasmose que adquirira enquanto visitávamos as pessoas, convidando-as para que viessem a nossa igreja. Era comum, naquela região, manter os animais de estimação dentro de casa, o que facilitava a proliferação da doença. Os médicos já haviam me dito, no Brasil, que eu só teria 50% de chances de ser pai. Por isso, não tomei as devidas precauções nas longas noites árticas e Tania ficou grávida pela segunda vez. Havia riscos para o novo bebê, uma vez que Tania ainda tinha resquícios da enfermidade.

Oramos para que Deus nos abençoasse com uma criança sadia e decidimos não fazer nem mesmo uma ultra-sonografia, deixando tudo aos cuidados de Deus. Tania me pediu, contudo, que voltássemos para o Brasil a fim de que tivesse o bebê junto de sua mãe. Tendo conseguido um convite para trabalhar em Salvador, tratamos de viajar para o Brasil quando ela estava prestes a dar à luz. Nossa viagem foi interrompida porque um vulcão entrou em erupção e os vôos foram cancelados por uma semana. Depois disso, ainda tivemos que convencer os médicos e as companhias aéreas a que nos permitissem voar, dada a condição interessante em que Tania se encontrava. Nosso filho Kérix Édrey acabou nascendo, saudável, em São Paulo.

Tanto Kérix quanto Krícis, a menina que nasceu dois anos depois em Belo Horizonte, são a herança que Deus nos legou. E são exatamente aquilo que pedimos ao Senhor: crianças normais. Por isso, não exigimos deles brilhantismo em nenhuma área, não os obrigamos a desenvolver nenhum talento artificial, não lhes impomos nenhum fardo além de sua habilidade. Nós os aceitamos exatamente como são e, assim, os amamos. Essa história que lhes contei é, em certa medida, o relato de minha vida com Deus e com Tania. Essa vida procuro pautar pela ordem bíblica em um de meus versos favoritos: “a ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei” Rm 13:8 (ARC).

(escrito originalmente em 4/10/2009)

Os Lestrigões do Reino de Deus

por Milton L. Torres, PhD

O crescimento piramidal, no Brasil, das igrejas evangélicas que pregam o evangelho da prosperidade não nos causa estranheza. O povo brasileiro é sabidamente religioso, sincrético e afeito à busca do sobrenatural. A piedade e a devoção deste povo confiado e disposto a confiar não devem ser lamentadas. Não se trata de uma credulidade ingênua que nos torna vítimas da manipulação persuasiva de quem quer tirar vantagem dessas boas qualidades que marcam os brasileiros. De fato, eu prefiro mil vezes pertencer a este povo de boa fé a conviver com o cinismo e a desconfiança peculiares a algumas das nações supostamente mais desenvolvidas do que a nossa. Entretanto, é necessário estabelecer limites intelectuais à retórica pretensiosa de quem vende salvação e paz espiritual travestidas em uma fórmula infalível de prosperidade material. É preciso expulsar os cambistas do templo. Para isso, empunho agora o chicote da alegoria.


De acordo com Homero, Ulisses e seus companheiros de viagem aportaram um dia em Telépio, a capital da Lestrigônia. Os lestrigões tinham uma sociedade ativa, diligente, praticamente incansável. Homero conta que, sempre com as portas abertas, de dia e de noite, os pastores entravam e saíam. De fato, o pastor que entrava saudava o pastor que saía, e o pastor que não sucumbia ao sono dobrava, durante a noite, o seu salário. Os lestrigões eram assim mesmo, pastores ávidos, insistentes, sempre atentos à possibilidade de lucro, sempre dispostos a, em mais de uma maneira, devorar as ovelhas.

O rei dos lestrigões se chamava Antífates, o Contra-fama, aquele que gosta de fazer as coisas por debaixo do pano, discreta e clandestinamente, nos bastidores, delitescente! Homero é minucioso ao descrever como o bispo máximo dos lestrigões apreciava os templos de teto alto, as mansões esplêndidas. Dali, com um grito, nos diz Homero, podia soar o alarme dos lestrigões, fazendo com que, assim, os pastores lestrigões acorressem, destemidos, de todas as partes. Dessa forma, o rei dos lestrigões nunca era pego de surpresa, desprevenido.

Segundo Homero, na terra dos lestrigões não havia campos arados, nem hortas, nem pomares, nem jardins, pois os pastores lestrigões não precisavam semear para viver. Eles, de fato, se alimentavam de seus próprios rebanhos. Só o que havia na terra dos lestrigões, além dos pastores lestrigões e de suas ovelhas de velo branco, era fumaça. A fumaça subia da terra, a fumaça subia dos templos, a fumaça subia das bolsas dos pastores lestrigões. Porém, o que Homero não diz, mas nós sabemos, é que onde há fumaça há fogo.

Na história dos lestrigões, Ulisses e seus companheiros de viagem procuraram abrigo no palácio dos lestrigões. Foram recebidos com festa pela linda filha do bispo Antífates. Os interessados a encontraram no que Homero chama de “fonte do urso” e que ele bem poderia ter chamado de “fonte do amigo-urso”, onde ela sempre vinha para se abastecer, pois todos os lestrigões, mesmo as simpáticas obreiras, não cuidam de outra coisa senão ganhar dinheiro e se abastecer. Ela fez questão de levá-los aos templos de teto alto. O bispo estava em reunião com seus asseclas. Mesmo assim, decidiu recebê-los, pois, para os lestrigões, é sempre hora de devorar aqueles que os procuram. Os canibais fisgaram os homens de Ulisses como os pescadores fisgam os peixes. Foi aterrador, gritos de morte, estalos de tábua, maquinetas de cartão de crédito, engolindo e devorando. Eram milhares. De homens eles não tinham nada. Eram gigantescos na exploração, desalmados. Do alto de seus templos-penhascos, arremessavam pedras em quem resistia. Era muita pressão: os homens e seus bens foram dilapidados.

Na história de Ulisses, foi difícil cortar as amarras. Pereceram quase todos. Poucos tiveram a sorte de escapar e se distanciar da terra fatídica dos lestrigões. Se você conseguiu, fique feliz por estar vivo e triste por quem sucumbiu aos lestrigões. Se você nunca visitou os lestrigões, mas se sente curioso toda vez que vê um de seus palácios de teto alto, lembre-se que a curiosidade matou o gato. Segundo Homero, o porto da Lestrigônia tem uma entrada magnífica, mas a fenda da saída é pequeníssima. Evite, portanto, qualquer contato com os lestrigões do reino de Deus.

(escrito originalmente em 2/10/2009)

A Igreja Adventista e a Teoria da Conspiração

por Milton L. Torres, PhD


De acordo com sua página na internet (http://www.ministerio4anjos.com.br), o Ministério 4Anjos é uma entidade sem fins lucrativos, para, “assim como os quatro anjos do livro do apocalipse, proclamar as três mensagens angélicas” relatadas em Ap 14, fazendo objeções principalmente à organização formal das igrejas porque, segundo eles, “normas e manuais eclesiásticos” os impedem de adorar a Deus segundo os ditames de sua consciência. Essa organização tem feito circular um panfleto, sem título, identificado apenas como “Convite especial: verdades bíblicas para o terceiro milênio”, entre os adventistas do sétimo dia.

O panfleto traz pelo menos três acusações sérias contra a administração/liderança da igreja adventista: em primeiro lugar, que a organização adventista publicou recentemente, nos Estados Unidos, um livro a favor da guarda do domingo e contra a guarda do sábado; em segundo lugar, que o fato de as igrejas adventistas abrirem aos domingos para a realização de cultos faz parte de uma conspiração levada adiante pela liderança adventista para trazer o ecumenismo para o seio da igreja; e, finalmente, que a liderança adventista tem retido luz dos membros da igreja ao não publicar alguns artigos de Ellen White e os livros dos pioneiros Waggoner e Jones. De modo geral, essa teoria da conspiração apenas apresenta ecos aos argumentos publicados por Russell R. Standish, em suas obras The greatest of all the prophets (“A maior de todos os profetas”, título elogioso em referência a Ellen White) e Half a century of apostasy: the new theology’s grim harvest (“Meio século de apostasia: a colheita sinistra da nova teologia”), publicadas pela editora Hartland.

Toeria da Conspiração 1: um livro adventista para defender o domingo

Ao receber o panfleto do Ministério 4Anjos, minha primeira atitude foi adquirir o livro. Trata-se da obra Confessions of a nomad (“Confissões de um nômade”), do casal William L. Self e Carolyn Shealy Self. Porém, em momento algum, o panfleto menciona o nome dos autores da obra. Há uma figura da capa do livro, mas a qualidade da impressão não é suficientemente boa para que se possam ler as informações contidas nela. De fato, os autores do panfleto dão a impressão de que foi a Associação Ministerial da IASD que escreveu o livro. Há abaixo da figura uma frase em inglês: “by the Ministerial Association of the CG of SDA!” (“pela Associação Ministerial da AG da IASD”). A legenda em inglês me faz supor que os autores do panfleto nunca tenham tido, de fato, acesso ao livro, mas basearam suas considerações em outro panfleto, provavelmente escrito em inglês, ou na internet.

Quando recebi o livro pelo correio, percebi que não era a mesma edição citada no panfleto, mas a edição originalmente publicada, em 1983, por uma editora não adventista, a Peachtree Publishers, em uma publicação da Convenção Batista. Depois de comparar a própria obra com as citações no panfleto, verifiquei que, apesar da edição e paginação discordantes, eu tinha, de fato, adquirido a mesma obra descrita pelo Ministério 4Anjos. Os autores são, respectivamente, ex-vice-presidente da Convenção Batista do Sul e ex-membro da Comissão Diretiva do Seminário Batista, em São Francisco, nos Estados Unidos. O casal é, além disso, autor de um conhecido livro de aconselhamento matrimonial: A survival kit for marriage (“Um kit de sobrevivência para o casamento”). Depois de duas visitas à região do Monte Sinai, os autores se dizem impressionados pela paisagem do lugar e pela reflexão que empreenderam sobre a vida de Moisés. Este é, com efeito, o nômade apresentado nesse livro devocional. O livro traz um estudo, sob forma de reflexões, da vida de Moisés durante o êxodo. Por isso, em dois momentos aborda a questão do dia de guarda: no episódio do maná e na entrega dos dez mandamentos.

O panfleto do Ministério 4Anjos apresenta apenas citações extraídas das reflexões sobre os dez mandamentos e parece ignorar o que os autores falam a respeito do episódio da queda do maná. Além disso, embora o panfleto apresente apenas excertos, passa a impressão de que está fornecendo o texto integral. No entanto, o pior defeito da argumentação é que o tradutor dos fragmentos citados, embora gramaticalmente correto, parece não saber trafegar, de forma precisa, no campo semântico do assunto. Os autores do livro são, obviamente, guardadores do domingo. Apesar disso, quando eles empregam a palavra Sabbath, eles não estão se referindo ao “sábado”. Talvez, por essa razão, o panfleto não faça referência às passagens que lidam com a recolha do maná, pois nessas passagens fica clara a neutralidade do termo Sabbath. A palavra Sabbath no livro significa simplesmente “dia de guarda”. O casal Self não está desqualificando a guarda do sétimo dia da semana. Ele está contrastando a guarda do dia de repouso pelos judeus e a guarda do dia de repouso pelos cristãos. Por isso, é possível, para eles, contar a seguinte experiência em relação ao episódio do maná (p. 63):

Durante a corrida do ouro, duas caravanas de carroças partiram para o oeste. Seu destino eram as minas de ouro da Califórnia. A primeira caravana decidiu avançar rapidamente e chegar lá primeiro. A segunda caravana decidiu tirar um dia da semana para descansarem e aliviarem os cavalos, e para irem à igreja a fim de louvar a Deus. Bem, a primeira caravana se esforçou pela dianteira e chegou ao Mississippi antes da outra caravana. Ficaram animados. Começaram a ir mais depressa. Depois de algumas semanas nesse ritmo, porém, as pessoas começaram a discutir entre si. Então, as carroças começaram a quebrar, e os cavalos tiveram problemas. Todas as coisas e todas as pessoas ficaram quebradas. Não é preciso dizer que a segunda caravana chegou às minas de ouro antes da primeira. A caravana que tirou o sábado (Sabbath) para adorar e descansar suportou muito mais os rigores daquela jornada difícil. Eram pessoas que tinham o culto a Deus na alma. E você? Você já se permitiu ter os gozos de um sábado? Você já desfrutou da experiência revitalizadora do culto?

Como se percebe, os autores do livro usam a palavra sábado (Sabbath) em um sentido positivo e não negativo. Quando o casal Self faz a comparação entre o sábado e o domingo (citada pelo panfleto), ele está, de fato, comparando como os judeus guardavam o sábado e como os cristãos o fazem, sem necessariamente se referir a que dia devemos guardar. Apesar disso, embora a obra não seja tão ofensiva para uma pessoa que fale inglês e entenda que a palavra Sabbath não se refere, em inglês, apenas ao sétimo dia da semana, ela foi suficientemente problemática para ter merecido diversas reclamações na internet. Ao dizer Happy Sabbath (“Feliz dia de repouso”), um batista se refere ao domingo e um adventista ao sábado. Infelizmente, na língua inglesa, a palavra Sabbath adquiriu, ao longo dos anos, o sentido também de dia de descanso. Por isso, em inglês, o nome dos adventistas se tornou “adventistas do sétimo dia” e não “adventistas do sábado (Sabbath)”, que teria gerado verdadeira confusão. Eu sei que isso pode ser uma surpresa para aqueles que não falam inglês, mas a palavra Sabbath significa, naquela língua, tanto sábado quanto domingo. Por essa razão, quando damos estudos bíblicos aos americanos, a primeira coisa que precisamos fazer é lhes provar que o Sabbath é o sétimo dia e não o primeiro dia da semana.

Por isso, posso dizer, sem hesitação, que, longe de pretender defender o domingo como dia de guarda, a venda do livro me parece pretender conclamar os adventistas à guarda mais conscienciosa do verdadeiro Sabbath, o sétimo dia. Além disso, devemos compreender que a sociedade americana é muito mais aberta do que a brasileira às diferenças de opinião. Os adventistas daquele país têm, em sua maioria, a maturidade necessária para ler um livro que enfatiza a necessidade da escrupulosa observância do dia de repouso e se beneficiar dele, ainda que tenha sido escrito por aqueles que guardam o domingo.

Por outro lado, é fato que o livro provocou certo mal-estar mesmo entre os adventistas dos Estados Unidos: por que publicar um livro batista sobre uma viagem ao Sinai se dois adventistas bastante conhecidos (William A. Fagel, do “Fé para Hoje”, e Leona Running, professora emérita de grego da Universidade Andrews) escreveram livros sobre o mesmo assunto? Falando a respeito do livro do casal Self, o Pr. James Cress, secretário da Associação Ministerial da Associação Geral, se pronunciou que a publicação do livro havia sido encomendada pelos próprios autores que haviam feito um contrato com a Pacific Press para publicar cinco de suas obras: Confissões de um nômade, Survival kit for the stranded (“Kit de sobrevivência para os desviados”), Learning to pray (“Aprendendo a orar”), Before I thee wed (“Antes de me casar com você”) e Kit de sobrevivência para o casamento. Aparentemente, certa amizade havia se desenvolvido entre a editora e os autores porque, em primeiro lugar, em sua obra Kit de sobrevivência para o casamento, o casal Self inclui material semelhante àquele apresentado por Ellen White na Ciência do bom viver e, em segundo lugar, porque o casal já apresentou diversas palestras para os ministros adventistas dos Estados Unidos. O Pr. Cress também informa que a contracapa do livro identifica os autores como sendo batistas, o que deveria bastar para que as pessoas lessem o livro com reservas.

Apesar dessas considerações, no dia 18 de setembro de 2000, a Associação Ministerial decidiu remover os livros das prateleiras do SELS e ofereceu reembolsar a todos que quisessem devolver o livro. A consternação de alguns adventistas não diminuiu mesmo diante desse fato, pois eles esperavam uma desculpa formal da organização. Beneficiando-se dessa situação, os proponentes da teoria da conspiração reivindicaram o acontecimento como uma prova de sua suposição de que existe atualmente uma conspiração da liderança adventista para a adoção do ecumenismo. Em defesa da Associação Ministerial, pode-se dizer que as demandas do trabalho pastoral e administrativo às vezes nos impedem de dar a devida atenção mesmo àqueles assuntos que a merecem. A Associação Ministerial deveria ter previsto, primeiramente, as reações à publicação do livro; em segundo lugar, no contrato deveria rezar uma cláusula que artigos ofensivos à fé adventista fossem extirpados do livro; e, finalmente, os livros deveriam ter sido recolhidos ao primeiro sinal de problema e não quando a situação já havia quase saído de controle. Ainda assim, atestamos categoricamente que não há qualquer intenção da igreja ou de sua administração em sacrificar os princípios da Palavra de Deus com vistas à convivência mais tranquila com membros e pastores de outra denominação, muito menos em prol do ecumenismo.

Teoria da Conspiração 2: cultos evangelísticos no domingo

O culto evangelístico aos domingos não constitui prática radical. Sua realização tem raízes em sólida teologia. Jesus e os discípulos não limitaram seu ministério ao sábado ou ao templo (At 2:46; 5:42; 20:7). Algumas das principais oportunidades que Jesus teve para o ministério ocorreram em momentos comuns do dia-a-dia e em lugares onde Ele tinha acesso às pessoas. Por outro lado, adorar no domingo ou em qualquer outro dia da semana não torna qualquer um desses dias o dia de guarda dos cristãos, claramente identificado nas Escrituras como sendo o dia de sábado (Êx 20:8-11).

Hoje em dia, as reuniões evangelísticas aos domingos não são uma prática comum nos Estados Unidos, embora haja alguns casos na Califórnia e Nevada. Diante do declínio no número de batismos, algumas igrejas norte-americanas (como, por exemplo, em Riverside e Las Vegas) sentiram, a partir da década de 80, o ímpeto de seguir o exemplo das igrejas da América Latina e de outras partes do mundo na realização de cultos evangelísticos aos domingos. As reuniões com propósitos evangelísticos aos domingos, nos países latino-americanos, constituem uma prática consagrada pela história da Igreja nesses países. No entanto, tem havido, nos Estados Unidos, alguma rejeição dos membros americanos à possibilidade de culto aos domingos. Isso tem contribuído para que mais uma suposta “prova” seja acrescentada às obras daqueles que acreditam na teoria da conspiração.

Ellen White dá apoio incondicional aos cultos aos domingos. Ela escreve, no livro Testimonies (v. 9, p. 233), a seguinte declaração (repetida no livro Serviço cristão, p. 164):

O domingo pode ser usado para o desempenho de várias linhas de trabalho que muito realizarão pelo Senhor. Nesse dia, podem-se realizar reuniões ao ar livre ou em cabanas. A obra de visitação de casa em casa também pode ser realizada. Aqueles que escrevem podem dedicar esse dia a escreverem seus artigos. Quando for possível, que cultos religiosos sejam realizados aos domingos. Façam essas reuniões intensamente interessantes. Cantem hinos de reavivamento genuíno e falem com poder e certeza do amor do Salvador. Falem do assunto da temperança e da verdadeira experiência religiosa.

Aqueles que se escandalizam com os esforços empreendidos por nossos obreiros em conviver, de forma harmoniosa, com membros de outras denominações, fariam bem em estudar a história dos nossos pioneiros. Certa ocasião, Ellen White narrou que eles alugaram uma de nossas igrejas para os membros de uma igreja presbiteriana realizarem seus cultos aos domingos pois seu templo havia sido destruído por um acidente. Segundo Ellen White, isso causou enorme inconveniente aos nossos irmãos, mas eles se sentiram confortados pela gratidão que receberam dos presbiterianos (Selected messages, v. 3, p. 322). Se a mera realização de cultos aos domingos fosse uma prática pecaminosa, Ellen White jamais teria concordado em ceder nosso templo para sua realização.

De fato, os cultos evangelísticos aos domingos fazem parte da herança adventista. Quando Ellen White visitou a Escandinávia, ela especialmente elogiou os esforços dos irmãos daquela região em alugar auditórios, mesmo diante de alto custo, para a realização dos cultos de domingo (Historical sketches of the foreign missions of the Seventh-day Adventists, p. 183). Na Suíça, Ellen White participou dos cultos evangelísticos que eram comumente realizados aos domingos pelos primeiros adventistas que se converteram naquele país (Review & Herald, 20-07-1886). Ela não demonstrou nenhuma insatisfação com essa prática. Ellen White teve, inclusive, a oportunidade de pregar em uma reunião evangelística realizada em Roma, a poucos quilômetros do Vaticano, a sede da Igreja Católica (Review & Herald, 03-09-1889). Além disso, quando Ellen White viajou para a Austrália, como não havia cultos aos sábados no navio, ela não se sentiu constrangida em se unir aos pastores metodistas que viajavam no mesmo navio e participar dos cultos que eram ali oferecidos aos domingos (Review & Herald, 09-02-1892). Conforme nos informa Arthur L. White (Ellen G. White: the Australian years, v. 4, p. 106), na Austrália, diante do fato de que os irmãos não haviam conseguido um lugar apropriado para o culto evangelístico de domingo, Ellen White sugeriu que este fosse realizado a céu aberto. Ellen White também pregava nos cultos realizados aos domingos mesmo na América do Norte. Um exemplo disso aconteceu quando ela foi convidada a pregar em Melrose e Buffalo (Review & Herald, 16-12-1909).

O panfleto do Ministério 4Anjos desdenha da razão apresentada pelos adventistas de que os cultos aos domingos deveriam ser realizados para benefício daqueles que ainda não pertencem a nossa igreja. No entanto, foi a própria Ellen White quem deu essa explicação àqueles que, em sua época, objetavam a que os adventistas realizassem cultos aos domingos. Segundo ela, “nós deveríamos ter lugares de reunião para que, aos domingos, aqueles que se sentem inclinados a ouvir a verdade, possam vir a nossos cultos” (Manuscript releases, v. 20, p. 165). Como se percebe, a realização de cultos evangelísticos aos domingos sempre foi uma prática dos adventistas do sétimo dia. Deixar de realizá-los seria um sinal de apostasia.

Teoria da Conspiração 3: a retenção de luz

A terceira acusação que o panfleto do Ministério 4Anjos faz à organização adventista é de que esta tenha deliberadamente retido luz de seus membros ao não publicar, em português, todas as obras de Ellen White e as importantes obras de Waggoner e Jones. Aqueles que publicam um panfleto de onze páginas talvez ignorem quão dispendioso é o processo de tradução e publicação de obras estrangeiras.

A Casa Publicadora Adventista (CPB), editora oficial da IASD, tem dado importantíssima contribuição para a igreja ao gradativamente traduzir e publicar as obras de Ellen White. Ao longo dos anos, várias dessas obras têm sido disponibilizadas ao público adventista e aos amigos da igreja: Ainda existe esperança, Atos dos apóstolos (1957), A batalha final (1989), Beneficência social (1964), Caminho a Cristo (Vereda de Cristo, Vida abundante ou Paz na tempestade), A ciência do bom viver (1947), O colportor evangelista (1953), Como conviver com os outros, Como lidar com as emoções, Como surgiu o pecado, Conselhos a professores, pais e estudantes (1947), Conselhos aos idosos (2003), Conselhos sobre a Escola Sabatina (1940), Conselhos sobre educação (1976), Conselhos sobre mordomia, Conselhos sobre o regime alimentar, Conselhos sobre saúde (1971), Cristo em Seu santuário (1969), Cristo triunfante (meditações matinais de 2002), O Desejado de todas as nações (1943), Educação (1937), Este dia com Deus (meditações matinais de 1980), Evangelismo (1959), Eventos finais (1993), Exaltai-O (meditações matinais de 1992), Fé e obras, A fé pela qual eu vivo (meditações matinais de 1959), Filhos e filhas de Deus (meditações matinais de 1956), Foi por você, Fundamentos da educação cristã (1976), O grande conflito (1923), História da redenção, A igreja remanescente (1974), Jesus, meu modelo (meditações matinais de 2009), Jóias do pensamento, O lar adventista, O lar sem sombras, Liderança cristã (1988), Nos lugares Celestiais (meditações matinais de 1968), O maior discurso de Cristo (1953), Maranata: o Senhor vem! (meditações matinais de 1977), A maravilhosa graça de Deus (meditações matinais de 1974), Medicina e salvação (1973), O melhor da vida (versão simplificada de A ciência do bom viver), Mensagens aos Jovens, Mensagens Escolhidas (1966-1987), Mente, caráter e personalidade (1989), Minha consagração hoje (meditações matinais de 1953), Música: sua influência na vida do cristão, Nossa alta vocação (meditações matinais de 1962), No deserto da tentação, O obra daquele outro anjo (1974), Obreiros evangélicos, Olhando para o alto (meditações matinais de 1983), Orientação da criança, Parábolas de Jesus (1954), Para conhecê-Lo (meditações matinais de 1965), Patriarcas e profetas (1929), A paixão de Cristo, Primeiros escritos (1967), Profetas e reis (1961), E recebereis poder (meditações matinais de 1999), Refletindo a Cristo (meditações matinais de 1986), Santificação, Ser mãe, o que é?, Serviço cristão, Só para jovens, Temperança (1969), Testemunhos para a Igreja (1954-2004), Testemunhos para ministros e obreiros evangélicos, Testemunhos seletos, Testemunhos sobre conduta sexual, adultério e divórcio (2002), A verdade sobre os anjos (1998), Vida e ensinos (1934), Vida no campo, Vidas que falam (meditações matinais de 1971), Visões do céu. Esta longa lista é um testemunho eloquente de que a CPB tem se esforçado para disponibilizar os escritos de Ellen White a todos aqueles que por eles se interessem. Além disso, há um site, na internet, que dá acesso a praticamente todos os escritos originais de Ellen White, em inglês: http://www.egwtext.whiteestate.org/.

Quanto aos escritos de E. J. Waggoner e A. T. Jones, não resta dúvida de que se trata de obras produzidas por dois importantes pioneiros da IASD. Ambos foram, durante algum tempo, os editores dos periódicos adventistas Signs of the Times (Waggoner e Jones), Review & Herald (Jones) e American Sentinel (Jones), havendo preparado vários de seus artigos. Em 1888, Waggoner e Jones apresentaram uma memorável série de sermões sobre justificação pela fé na assembléia da Associação Geral, em Mineápolis. As obras de Waggoner incluem The glad tidings (“As boas novas”, 1900), The everlasting covenant (“O concerto eterno”, 1896), The gospel in creation (“O evangelho na criação”, 1895), The gospel in Galatians (“O evangelho em gálatas”, 1887), Sermons on Romans (“Sermões sobre romanos”, 1891), Christ and His righteousness (“Cristo e Sua justiça”, 1889) e Prophetic lights (“Luzes proféticas”). Essas obras foram publicadas pelas editoras da IASD em inglês e algumas delas se encontram disponíveis na internet.

É estranho que o Ministério 4Anjos acuse a igreja de ocultar essas publicações do grande público, mas deixe de se referir a inúmeras outras obras publicadas pelos demais pioneiros da denominação e que tampouco foram traduzidas para a língua portuguesa. John N. Andrews, um dos mais destacados pregadores dos primórdios da IASD nos legou obras como Three messages of Revelation 14 (“Três mensagens de Apocalipse 14”, 1877), The sanctuary and twenty-three hundred days (“O santuário e os 2300 dias”, 1872), Sermon on the two covenants (“Sermão sobre os dois concertos”, 1875), The complete testimony of the fathers of the first three centuries concerning the Sabbath and first day (“O testemunho completo dos pais dos primeiros três séculos concernente ao sábado e ao primeiro dia”, 1873), The Sunday seventh-day theory: an examination of the teachings of Mede, Jennings, Akers, and Fuller (“A teoria de que o domingo é o sétimo dia: um exame dos ensinos de Mede, Jennings, Akers e Fuller”, 1884), The judgment, its events and their order (“Os juízos, seus eventos e sua ordem”, 1890) e The Sabbath and the law (1890?). Essas obras de John N. Andrews colocam-se como intimamente ligadas à história da IASD e às suas mais fundamentais doutrinas. Elas não ocupam, de modo algum, um lugar secundário em relação aos escritos de Waggoner e Jones. O mesmo pode ser dito com respeito aos livros de Joseph Bates: The opening heavens (“Os céus se abrindo”, 1846), The seventh-day Sabbath (“O sábado do sétimo dia”, 1846), A word to the little flock (“Uma palavra ao pequeno rebanho”, escrita em conjunto com Tiago e Ellen White, em 1847), A vindication of the seventh-day Sabbath and the commandments of God (“Uma vindicação do sábado do sétimo dia e dos mandamentos de Deus”, 1848), A seal of the living God (“O selo do Deus vivo”, 1849) e An explanation of the typical and anti-typical sanctuary (“Uma explicação do santuário típico e antitípico”, 1850). No entanto, a maioria desses livros ainda não se encontra traduzida para a língua portuguesa. O fato é que os pioneiros adventistas eram homens inteligentes e capazes que nos legaram uma ampla obra de suporte às crenças adventistas. Como traduzir e publicar tantas obras com os poucos recursos de que ainda dispomos? Devemos louvar a intenção do Ministério 4Anjos de ajudar com a tradução de pequenos trechos de Waggoner e Jones. Por outro lado, não podemos aceitar a crítica de que a IASD tenha propositalmente se eximido de publicar essas obras. Além disso, traduzir as obras de dois pioneiros que tinham posições antitrinitarianas (também defendidas pelo Ministério 4Anjos) e negligenciar as obras de inúmeros outros que não as tinham é que parece ser uma conspiração.

Conclusão

Um exame cuidadoso das três graves acusações feitas pelo Ministério 4Anjos à administração/liderança da igreja adventista (de que esta publicou um livro a favor da guarda do domingo, de que cultos evangelísticos aos domingos fazem parte de uma conspiração para trazer o ecumenismo para o seio da igreja e de que a liderança adventista tem retido luz dos membros da igreja) mostra que essas acusações não se comprovam. Elas assumem um caráter de zelo excessivo semelhante àquele praticado pelos fariseus, que se preocupavam mais com a letra da lei do que com o Espírito que o evangelho requer.

O Ministério 4Anjos vê limitações nos esforços empreendidos pela igreja adventista para cumprir sua comissão evangélica. De sua parte, a igreja reconhece a impossibilidade de que exerçamos um ministério perfeito senão simplesmente pelo fato de que existimos em um mundo ainda marcado pelas incapacitantes deficiências que o reino do pecado produziu. Por outro lado, a igreja adventista declara sua boa-fé no tratamento das importantes questões pertinentes ao bem-estar e à segurança espiritual de seus membros. Além disso, temos ciência de que seremos julgados por Aquele cuja percepção é mais penetrante do que o restrito olhar de seres humanos falhos e defeituosos. Confiados na misericórdia de Deus, convidamos os que agora se felicitam por encontrar dificuldades no caminho trilhado pela igreja adventista a que, em vez disso, venham nos ajudar, com diligência e dependência recíproca, a preparar as veredas para o retorno de nosso Senhor.

(escrito originalmente em 20/5/2009)