Friday, October 05, 2012

Adventistas no Vestibular

por Milton L. Torres, PhD


Minha filha está passando pelo processo de seleção para o vestibular. Ela não somente fez a prova do ENEM como também se submeteu ao vestibular de várias universidades no Brasil. Em mais de uma situação, ela teve que ficar confinada durante todo o sábado para fazer a prova até tarde da noite. Durante o ENEM, minha esposa e eu visitamos as salas onde os alunos adventistas estavam confinados, em Artur Nogueira (SP), e oramos mais de uma vez com os candidatos. Apresentava-me como o pastor de plantão e os organizadores me deram acesso às diversas salas. Minha esposa aproveitava e ia junto. A situação mais interessante ocorreu quando minha filha ficou confinada sozinha, o dia todo, em Belo Horizonte, desde as 8h da manhã, para fazer, depois do sábado, a prova de seleção para a Faculdade de Medicina de Barbacena. Por volta das onze da noite, a única coisa que a incomodava era o ronco dos fiscais, adormecidos em seus postos. No dia da batalha pelo morro do Alemão, no Rio de Janeiro, ela também estava naquela cidade enfrentando mais um vestibular. Em todos os lugares onde fez a prova, contou com o apoio logístico de pastores adventistas que, não somente a buscavam no aeroporto, mas também a levavam para as provas. A igreja adventista é realmente uma família. Em alguns casos, ela me confidenciou que meus colegas pastores cuidaram dela como se cuidassem da própria filha.

Para animá-la nos momentos de dificuldade, fiz a seguinte paráfrase do salmo 23:

SALMO DO VESTIBULANDO

O Senhor é meu professor; não serei reprovado. Dá-me segurança na hora dos testes, guia-me intelectualmente às boas notas, renova a minha disposição. Orienta-me na hora das dúvidas porque Se interessa pelo meu desempenho.

Ainda que o vestibular só tivesse questões de matemática, não erraria questão alguma, porque o Senhor está comigo; é Ele quem me sopra as fórmulas e a interpretação.

Preenche para mim o gabarito na presença dos meus concorrentes.

Enche a minha cabeça de ideias, a minha redação se destaca.

Certamente que a calma e a determinação estarão sempre comigo e farei o curso da minha escolha.

Minha filha ainda não passou no vestibular. Entretanto, com o apoio que ela tem recebido da igreja, de sua família e de seu Deus, achamos que isso será só uma questão de tempo...

Engenheiro Coelho, 21/12/2010

Minha Primeira Regra de Interpretação da Bíblia

por Milton L. Torres, PhD



Os que estudam a Bíblia de forma profissional compreendem que a interpretação coerente de uma determinada passagem pressupõe a obediência às assim-chamadas regras hermenêuticas. Como ciência da interpretação, a hermenêutica constitui uma valiosa ferramenta, especialmente quando tentamos propor soluções plausíveis para nódulos interpretativos em textos que se distanciam de nós no tempo e no espaço. Trata-se, portanto, de uma técnica levada a sério pelos diferentes tipos de intérpretes.

No caso específico das Escrituras, gostaria de propor uma regra hermenêutica que tem sido de fundamental importância para meu relacionamento com o texto sagrado e que tem norteado a minha forma de entender e fazer teologia. Essa regra pode até já ter sido mencionada por outros estudiosos da Bíblia, afinal nada novo ocorre debaixo do sol. Aliás, o autor de Eclesiastes é bastante sensível quanto ao que se passa “debaixo do sol”. Depois de dizer que “nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1:9) e que “o homem não consegue compreender a obra que se faz debaixo do sol” (Ec 8:17), o autor emprega a expressão “debaixo do sol” em outros 27 versículos de Eclesiastes, sendo que, em alguns casos, a emprega duas vezes no mesmo versículo (8:15; 9:9). Portanto, é possível (de fato, muito provável) que você já tenha ouvido a regra que vou mencionar. Ainda assim, é preciso insistir que essa deveria ser a primeira regra de interpretação das Escrituras.

Os autores bíblicos empregam, com frequência, o predicado nominal para fazer suas descrições da Divindade. O predicado nominal compreende uma estrutura sintática formada por um verbo de ligação e, geralmente, um adjetivo. É precisamente isso que ocorre quando as Escrituras declaram que Deus “é zeloso” (Dt 4:24; 6:15), “é único” (Dt 6:4; Mr 19:29; Rm 3:30; Gl 3:20, Ti 2:19), “é fiel” (Dt 7:9; 1 Co 10:13; 2 Co 1:18), “é justo e reto” (Dt 32:4), “é misericordioso e compassivo” (2 Cr 30:9; Sl 116:5), “é grande” (Jó 36:5, 26), “é bom” (Sl 73:1), “é tremendo” (Sl 89:7), “é misericordioso” (Sl 116:5), “é verdadeiro” (Jo 3:33) e “é poderoso” (Rm 11:23). Linguisticamente, essas expressões apresentam aspectos do caráter de Deus e não pretendem se referir a Sua mais íntima essência.

Às vezes, porém, o predicado nominal é formado por verbo de ligação seguido de um ou mais substantivos qualificados por artigo indefinido, pronome possessivo, adjetivo ou locução adjetiva. Isso ocorre, por exemplo, em expressões como “Deus é a minha fortaleza” (2 Sm 22:33; Hc 3:19), “é o meu escudo” (Sl 7:10), “é um justo juiz” (Sl 7:11; 75:7), “é o nosso refúgio e fortaleza” (Sl 46:1; 62:8), “é o Rei de toda a terra” (Sl 47:7), “é o meu ajudador” (Sl 54:4), “é meu alto refúgio” (Sl 59:9, 17), “é a nossa salvação” (Sl 68:19), “é o nosso libertador” (Sl 68:20), “é minha herança” (Sl 73:26), “é sol e escudo” (84:11), “é minha salvação, minha força e meu cântico” (Is 12:2; 49:5); “é uma rocha eterna” (Is 26:4) e “é fogo consumidor” (Hb 12:29). Esse tipo de estrutura sintática aponta mais para o relacionamento de Deus com os seres humanos, explicitando em qual de Suas muitas capacidades Deus atua sobre os diferentes indivíduos ou grupos de indivíduos em determinadas situações.

Mais raramente, porém, o predicado nominal se constrói de tal forma que o substantivo aparece sem qualquer qualificação. Na verdade, isso acontece quatro vezes nas Escrituras. Nessas raras ocasiões, parece, de fato, que temos um vislumbre da própria essência da pessoa divina. Quando isso ocorre, o que se diz sobre Deus nos remete a uma compreensão mais precisa de Sua própria natureza: “é fidelidade” (Dt 32:4), “é espírito” (Jo 4:24), “é luz” (1 Jo 1:5) e “é amor” (1 Jo 4:8, 16). Por isso, uma dada interpretação das Escrituras não pode ser coerente se não reconcilia seu ponto de vista com o resultado cumulativo de apresentar a Deus como sendo fidelidade, espírito, luz e amor.

A título de exemplificação, façamos uma experiência com a passagem tratada pela lição da escola sabatina na semana passada (20 a 27 de novembro de 2010). Trata-se da história de como Davi permitiu que os dois filhos de Rispa e os cinco filhos da irmã de Mical fossem enforcados pelos gibeonitas para lhes prover satisfação pela violação inadvertida de um antigo acordo entre os israelitas e os descendentes daquele povo (2 Sm 21:1-14). A terra de Israel estava padecendo de uma prolongada seca porque Deus percebera a impiedade dos israelitas por causa da violação daquele pacto. Muitos gibeonitas haviam sido assassinados pelos israelitas quando Saul, agora falecido, fizera um ataque às forças dos amorreus, com quem estes entretinham relações de parentesco. O que o texto bíblico afirma expressamente é que, incomodado pela duração prolongada da seca, Davi buscou de Deus uma explicação para a fome que se alastrava sobre o povo. A Bíblia não nos dá qualquer informação sobre a forma como Deus deu a resposta a Davi. O que sabemos é que o incidente com os gibeonitas foi dado como causa dos atuais padecimentos de Israel.

Como resultado disso, os gibeonitas exigiram, como reparação, a morte de sete dos filhos de Saul. Escolhidos por Davi, os sete rapazes foram enforcados “diante do Senhor” (2 Sm 21:9). O desfecho da história pode levar os leitores a supor que Deus tenha exigido uma espécie de sacrifício humano para que Sua ira fosse aplacada. Entretanto, em lugar algum a Bíblia faz essa declaração. Ao verbalizarem seu pedido ao rei, os gibeonitas declaram que prentendiam enforcar os rapazes “ao Senhor” (2 Sm 21:6). Porém, é preciso lembrar que os gibeonitas eram, em certo sentido, uma nação meio pagã aparentada com os amorreus. Não há razão para supormos que seu desejo expressasse a vontade de Deus para o desfecho do caso.

Se optarmos por aplicar a regra hermenêutica que proponho de reconciliar essa passagem das Escrituras com o que a Bíblia declara expressamente acerca do caráter de Deus, não será mais possível considerar que Deus, de fato, pretendia que o sangue dos rapazes fosse derramado a fim de que isso fosse considerado uma reparação à violação da aliança entre israelitas e gibeonitas. É verdade que Deus leva a sério o pacto que estabeleceu com o povo de Israel; no entanto, não há nenhuma sugestão, na forma como a história é narrada, de que a aliança entre os dois povos pudesse ser contemplada como um tipo do pacto entre Deus e Seu povo. A tipologia não é um procedimento hermenêutico de aplicação automática. Para que a tipologia funcione, é necessário que o texto em questão guarde relações explícitas com a história da salvação.

Deus é fidelidade, espírito, luz e amor. A exigência meramente sintomática de uma reparação de sangue para um crime de sangue assume contornos de vingança pessoal ou “vendetta” tribal. Isso é incompatível com o caráter que as Escrituras atribuem a Deus. Parece que, no relato de 2 Samuel, o rei Davi sucumbiu ao desatino de indagar a uma tribo semipagã o que seus membros considerariam como reparação adequada para a violação da aliança que se firmara com eles. Sua resposta foi tão sanguinária quanto a ação criminosa empreendida por Saul; no entanto, compreensiva à luz das práticas pagãs das nações daquela época. Por isso, minha proposta é a de que Deus tenha tolerado a execução dos rapazes como forma apropriada de uma nação pagã exigir compensação pela infidelidade do povo de Deus. O que Deus permitiu que acontecesse nos dá muito mais informações acerca das práticas do ambiente pagão em que, de certa forma, os israelitas estavam inseridos do que acerca de Sua vontade ou forma preferencial de lidar com a situação. Deus não exigiria o enforcamento dos rapazes como parte de Sua vontade explícita para os israelitas, mas Ele o tolerou porque entendeu ser essa uma forma suficientemente persuasiva para indicar que, no contexto pagão que rodeava os israelitas, a violação de um pacto de não agressão tinha consequências graves. Uma evidência disso é que não foi o enforcamento dos rapazes que pôs fim à seca que desolava a terra de Israel. É apenas quando Rispa, a mãe de dois dos jovens enforcados, expressa sua ternura e desconsolo diante da situação, que se transcende o impasse. Sua atenção ao sepultamento dos jovens executados enternece o coração dos israelitas. É quando o coração desses guerreiros calejados fica tocado pelo desespero da viúva de Saul que o Deus de amor, luz e fidelidade pode deixar que o afeto carinhoso que provém de Suas entranhas chegue aos israelitas sob a forma da chuva que lhes rega a terra e lhes abranda a alma.

Se Nietzsche compreendeu corretamente alguma das teses do cristianismo, podemos invocar sua explicação para o surgimento da doutrina da redenção. No capítulo 30 de sua obra O anticristo, o filósofo afirma que essa doutrina advém de dois fatos da pregação de Jesus: em primeiro lugar, o Salvador tinha uma repugnância instintiva contra a realidade; e, em segundo lugar, o amor é a única e última possibilidade de vida de acordo com os evangelhos. Um apologeta do cristianismo não poderia ter declarado seus insights sobre essa questão de forma mais exata e convincente. Jesus não aceitava a realidade da vida pecaminosa e, por isso, contestava a validade de apenas existirmos em uma sociedade corrompida por todas as espécies de vício e maldade. Além disso, é o amor que o define como pessoa humana e como o divino filho de Deus. Qualquer leitura das Escrituras que atente contra essa compreensão faz violência contra a natureza de Jesus. Um antipático inimigo do cristianismo, descrente e empedernido, foi capaz de perceber isso. Não posso deixar de esboçar um gesto de surpresa quando percebo que os próprios cristãos somos tão lentos para compreender que, sem o amor, até mesmo a solidez de nossas convicções doutrinárias vira um eco remoto que, aos poucos, perde todo o sentido...

A Importância de um Nome

por Milton L. Torres, PhD




Em Romeu e Julieta, Shakespeare perguntou: “Qual é a importância de um nome?” E ele mesmo respondeu: “Uma rosa teria o mesmo cheiro, mesmo que tivesse outro nome”. No entanto, todos nós cedemos aos apelos de nomes como Gucci, Prada, Louis Vuitton e Rolex. Não importa o que Shakespeare disse, o que importa é o benefício líquido e certo de ostentarmos essas marcas.

Foi o acordo ortográfico de 1943 que eliminou o h de várias palavras comumente usadas na língua portuguesa. Esta letra só foi mantida no início de palavras cuja etimologia o justificasse, nos dígrafos ch, lh e nh, nos compostos com hífen e em interjeições. Parece que os brasileiros ficaram felizes com a mudança, pois houve dois outros acordos posteriores (1971 e 1990) e a letra jamais retornou ao lugar de onde foi tirada.

Com o acordo ortográfico, veio a resistência dos cartórios em registrar antropônimos (isto é, nomes de pessoa) que não se enquadrassem na novo ortografia. Assim, o h após outras consoantes foi lentamente sendo eliminado do repertório de nomes à disposição dos brasileiros. Obviamente, o h permaneceu no caso de quem já tinha nome com h nessas condições. Os topônimos (isto é, nomes de lugares) não tiveram a mesma sorte. Eles foram imediatamente adequados à nova regra ortográfica. Theresópolis, no Rio de Janeiro, passou a ser Teresópolis (sem h!). Theóphilo Ottoni, em Minas Gerais, tornou-se Teófilo Otoni (sem h!). Apesar da mudança, os habitantes dessas cidades não parecem demonstrar qualquer trauma em relação à perda de letra de tão bom pedigree. De fato, os habitantes de Teófilo Otoni teriam toda a razão de ficar de luto por um bom tempo, pois, com a reforma ortográfica, o nome de sua cidade perdeu três letras no total.

O recente caso da suposta mudança de nome da capital da China pertence a uma categoria completamente diferente de problema. De fato, não houve mudança. O nome da capital da China tem sido Beijing por um longo tempo. No entanto, o mundo ocidental pronunciava o nome dessa importante cidade como Peking. Desde 1949, quando o governo chinês adotou uma forma oficial de transliteração, esforços foram envidados para corrigir a distorção. Porém, isso só foi conseguido recentemente por causa da crescente importância econômica daquele país. Muitos chineses nem sabem que o resto do mundo pronunciava o nome de sua capital de forma equivocada.

O agora notório movimento para alterar o nome da cidade de Artur Nogueira para a ortografia anterior ao acordo de 1943, assume contornos saudosistas uma vez que essa é uma discussão absolutamente estéril do ponto de vista das contribuições que um esforço dessa natureza poderia proporcionar a sua população. Grafar o nome Arthur com “th” poderia ter conotações negativas para a imagem da cidade. Em primeiro lugar, poderia sugerir imperialismo cultural e distanciamento da realidade brasileira, já que, nos Estados Unidos, é assim que se grafa esse nome. Em segundo lugar, poderia sugerir atraso cultural, evocando um retorno ao tempo em que também se escrevia farmácia com “ph”. Finalmente, poderia sugerir que os responsáveis pelas políticas públicas da cidade estão mais preocupados com questiúnculas do que ocupados com os problemas que verdadeiramente atormentam a população da cidade e que, por isso, merecem sua urgente atenção.

O que a rosa de Shakespeare sugere é que não é a ortografia que conta, mas a força de um nome associado ao prestígio que ele evoca, sendo capaz de nos cativar de forma absolutamente irresistível. Gostamos de uma marca não por causa da forma como ela é escrita, mas por causa da qualidade que aprendemos a associar a seus produtos. Talvez o que os habitantes de Artur Nogueira queiram mudar não seja a ortografia do nome de sua cidade, mas o nível de competência associado com a imagem que a cidade tem na mídia, no comércio e na indústria. Aliás, Artur Nogueira não tem qualquer razão para demonstrar baixa autoestima em relação a seu nome. A enérgica simpatia de gente que trabalha com empenho durante o dia, mas que também tira tempo para visualizar seus sonhos e aspirações, já garante que o perfume da rosa de Shakespeare faça parte da essência e do coração de seu povo. A que mais se pode aspirar, além disso?

Publicado originalmente no jornal Nogueirense (agosto de 2010)

A Sexualidade dos Romanos

por Milton L. Torres, PhD




A epístola de São Paulo aos romanos abre com uma eloquente condenação das práticas sexuais daquela época. Segundo o apóstolo, a idolatria generalizada que era praticada nas diversas partes do Império Romano, fez com que Deus entregasse os homens de então “à imundície para desonrarem seus corpos entre si” (cf. Rm 1:24). Paulo prossegue na descrição do que classifica como “paixões infames” (v. 26): “suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas, por outro contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição de seu erro” (vs. 26-27). Não obstante a descrição minuciosa que Paulo faz do quadro da sexualidade humana no Império Romano durante o período neotestamentário, certos estudiosos têm rejeitado a avaliação moral que o apóstolo faz de tal sexualidade, afirmando que ela é imprópria por não levar em consideração que os gregos e os romanos existiram numa época anterior à criação do conceito de sexualidade (HALPERING; WINKLER; ZEITLIN, 1990). A partir tanto da tradição anglo-americana da antropologia cultural quanto da tradição francesa das sciences humaines, Halpering, Winkler e Zeitlin exploram a iconografia, a política, a ética, a poesia e as práticas médicas que tornaram o sexo na Grécia Antiga não um paraíso da liberação mas um local exótico dificilmente reconhecível aos visitantes do mundo moderno.

Além do fato de que uma análise da perspectiva que os classicistas têm desenvolvido sobre o conceito foucaultiano de sexualidade pode contribuir para uma melhor compreensão de por que a abordagem paulina da sexualidade romana tem sofrido ataques recentes por parte de teólogos liberais, uma outra razão há que justifica um estudo mais aprofundado do tema: sua novidade. Com efeito, a sexualidade é um tema novo para a discussão acadêmica entre os estudiosos da antiguidade clássica tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. De acordo com Skinner (1997, p. 6), isso explica o fervor e o entusiasmo com que os classicistas entraram recentemente no debate. Nesse debate os estudiosos têm buscado uma resposta para a importante indagação: o conceito de sexualidade é uma invenção moderna ou não? Os classicistas formularam a pergunta de uma forma peculiar: pode-se falar de uma época em que não existia sexualidade? Há, de fato, uma época-anterior-à-sexualidade?

O objetivo deste artigo é, portanto, verificar se é possível falar de uma época-anterior-à-sexualidade e, portanto, considerar se a interpretação tradicional segundo a qual Paulo condenou as práticas sexuais dos romanos de sua época deve ser abandonada pelos teólogos em favor de uma outra, mais liberal e menos dogmática, que abriria, inclusive, a possibilidade de uma maior tolerância para práticas sexuais menos heterodoxas por parte dos cristãos do séc. XXI. A ética sexual de Paulo, conforme apresentada no prólogo de sua epístola aos romanos, seria, então, uma questão de ótica? Estaria Paulo simplesmente condenando aquilo que não conheceria e, portanto, sendo injusto com o ambiente cultural do Império Romano insensível e indiferente a quais comportamentos seriam apropriados e quais seriam condenáveis uma vez que os romanos viveriam na ingenuidade de uma era anterior à existência da noção de sexualidade? A resposta tentativa a essa indagação é, provavelmente, que isso não seria possível porque mesmo em sua época os próprios romanos já teriam uma compreensão detalhada daquilo que era considerado sexualmente adequado e aquilo que deveria ser rejeitado como teratogênico. Este estudo pretende provar isso através do levantamento das práticas sexuais descritas pelos próprias romanos, mostrando como estes tinham a noção nítida do que era comportamento socialmente aceito e o que era teratogênico.

Roma Antes da Sexualidade



A teoria totalizante da história da sexualidade proposta por Foucault sugere que a sexualidade é uma invenção moderna, uma forma de interpretar a experiência (e, portanto, um modo de a experimentar) que é apropriada a uma sociedade altamente diferenciada, industrializada e modernizada. De fato, a famosa obra de Foucault apresenta uma ambiciosa hipótese acerca tanto da sexualidade antiga quanto da sexualidade dos tempos modernos (LARMOUR; MILLER; PLATTER, 1997). No entanto, embora sua abordagem seja muito esclarecedora com respeito a uma compreensão das relações entre a sexualidade e o poder, sua tese implica em uma posição tão radical concernente à sexualidade que ela se torna difícil de suster. Este é o lado construtivo do debate classicista entre construtivistas e essencialistas (HABINEK, 1998, p. 25). A perspectiva essencialista, defendida por John Boswell, postula, por exemplo, que os romanos aceitavam a homossexualidade com entusiasmo (RICHLIN, 1993, p. 528; SKINNER, 2005). Foucault acredita que, com o advento de um regime victoriano, a sexualidade foi restringida e que, a partir dessa época, o sexo se tornou um objeto de administração, gerenciamento e governo, assim pressupondo que houve, na antiguidade, uma época-anterior-à-sexualidade.

Foucault chegou a esse posicionamento após passar por duas fases em seu estudo da sexualidade. Ele dedicou a primeira fase de suas pesquisas ao período que abrange os séculos entre a morte de Cristo e o início da Idade Média. A segunda fase foi dedicada a uma análise dos textos greco-romanos e cristãos. Seguindo de perto as conclusões de Foucault, Winkler (1990, p. 17-44; 64-70) e Halperin (1990, p. 24-27), por exemplo, insistem que não havia um conceito fixo de tipos sexuais na antiguidade. Para Halperin (1990, p. 24), a sexualidade é uma invenção moderna. Richlin (1993, p. 528) disse muito bem que “o motivo que subjaz aos escritos de Halperin, e que também subjaz parcialmente aos de Winkler, é ativo: romper todas as restrições impostas à sexualidade pela própria cultura, declarando que não são inevitáveis, mas fabricadas histórica e socialmente. Sua preocupação faz eco à declaração de Don Milligan segundo a qual muitos construtivistas sociais pensam que “já que os seres humanos construíram a sexualidade, então ela pode ser desconstruída” (apud HABINEK, 1990, p. 24).

Não obstante, apesar do esforçoes de Foucault para eliminar o conceito de sexualidade do mundo antigo, há algumas razões para uma rejeição de sua tese. Isso ocorre em duas linhas de pensamento. Em primeiro lugar, aquilo que Foucault considera como o elemento fundamental da sexualidade, está também presente em Roma. Em segundo lugar, há alguns elementos que, embora negligenciados por Foucault, parecem evidenciar que a sexualidade desempenhava um importante papel na antiga Roma – tal papel é análogo ao que ela desempenha na própria sociedade atual.



Evidência Contrária a uma Roma Antes da Sexualidade



A ausência de uma terminologia da sexualidade e de conceitos que correspondam diretamente aos atuais, não pressupõe uma ausência de uma terminologia sexual ou mesmo de conceitos sexuais na antiga Roma. Winkler et al. compreendem a sexualidade como uma linguagem social usada para definir, descrever, interpretar e lidar com toda sorte de negociação – em suma, uma nova categoria. Eles aceitam a abordagem Foucaultiana que compreende a sexualidade como um discurso. Mas se, de fato, a sexualidade é uma forma de discurso, por outro lado, há também uma metalinguagem que descreve e define a sexualidade.

A linguagem dos romanos estava impregnada com o elemento sexual (assim como a dos dias atuais). Eles mesmos eram capazes de descrever, com facilidade, o comportamento sexual que adotavam (ou que deveriam adotar) e eram ainda capazes de empregar metáforas sexuais para descrever outros aspectos da vida quotidiana. Assim, Marcial, por exemplo, aconselha que é impróprio à esposa oferecer sexo anal ao marido (12.96). Em sua esquematização rigidamente falocêntrica, os romanos empregavam três verbos distintos para a ação normativa de penetração em um orifício corporal pelo pênis. Segundo Parker (p. 48), Marcial 2.47 explicita as três ações sexuais ativas possíveis a um varão: futuere (o ato em que o homem insere o pênis na vagina de uma mulher), pedicare (inserção do pênis em um orifício anal) e irrumare (inserção do pênis na boca de uma pessoa).

Expressões tais como os profanatum (“boca profanada”), usada por Quintiliano em uma provável referência ao estupro oral; clunem agitant (“balançam o rabo”), usada em Juvenal para sugerir a homossexualidade passiva; e publica via, usada por Plauto (Curcúlio 35-38) em referência àqueles passíveis de sofrer estupro legal; demonstram que os romanos, sem dúvida alguma, falavam acerca do sexo. Semelhantemente, as pessoas da época também expressavam sua opinião sobre a sexualidade de outrem como a pichação nos banheiros públicos atesta. Richlin (1993, p. 549) cita a seguinte frase, cuja tradução de teor excessivamente indecente não convém aqui:



Cosmus Equitaes magnus cinaedus et fellator est suris apertis (CIL 4.1825).



Um outro aspecto patente da linguagem sexual romana é que ela dá conta da existência de comportamento sexuais que se desviam do padrão comum: cunnilinctor (uma referência ao homem usado sexualmente por uma mulher), cinaedus ou pathicus (referências usuais ao homossexual passivo), fellator (designação do homem que é a parte passiva durante o sexo oral), virago, tribas ou moecha (designação da mulher lásbica). Os romanos não apenas falam de sua própria sexualidade como são também capazes de identificar as formas que consideram teratogênicas.

Se, então, os romanos estavam cientes quanto aos diferentes aspectos de sua sexualidade, como podemos nós negá-la? Melhor que falar acerca de uma Roma-antes-da-sexualidade, é dizer que a sexualidade romana era organizada – ou talvez percebida – de formas diferentes dos padrões que estão presentes na sociedade moderna. A identidade sexual, por exemplo, estava tão bem estabelecida entre os romanos que Richlin (1993, p. 531) pode afirmar com segurança: “as definições corriqueiras da identidade sexual dos romanos permaneceram consistentes por um período superior a quatrocentos anos (de 200 aC a 200 AD), desde o final da República até o Alto Império. Roma apresentava um mapeamento da sexualidade que Skinner (1997, p. 4) crê era uma parte de uma visão pan-Mediterrânea mais ampla, mas que, não obstante, incluía certas modificações. Contudo, os protocolos romanos “de gênero e de sexo eram suficientemente distintos dos protocolos da Grécia clássica e helenista para merecerem o tratamento da sexualidade romana como um sistema independente” (SKINNER, 1997, p. 8).



A Presença de uma Administração Foucaultiana da Sexualidade em Roma



Foucault e seus seguidores vinculam o princípio da sexualidade a sua organização como uma instituição social, um princípio rotulador universal que situa e controla indivíduos (HALPERIN; WINKLER; ZEITLIN, 1990). Se isso é, de fato, uma definição correta de sexualidade, então pode-se argumentar que a sexualidade já estava visivelmente presente em Roma. A sociedade Romana dispunha de tantas restrições ao comportamento sexual de um indivíduo quanto a moderna sociedade ocidental (e talvez ainda mais). Vários fatores sugerem isso.

Em primeiro lugar, pode-se afirmar, com confiança, que a sociedade de Roma dispunha de costumes bem estabelecidos diretamente relacionados às práticas sociais. Amy Richlin menciona alguns desses costumes em seu artigo contra a visão foucaultiana. Uma noiva deveria cortar o cabelo dos amantes do homem com o qual se casara recentemente a fim de encerrar sua atratividade sobre ele (cf. Marcial 3.58.31; 12.97.4; 12.49.1; Petrônio, Satyricon 27.1, 29.3, 34.4, 63.3, 70.8, 97.2). De fato, o termo latino pueri faz referência aos rapazotes que orbitavam ao redor de um varão maduro e que, muitas vezes, o satisfaziam sexualmente. Em outra circunstância, uma prostituta experiente era chamada para participar do ritual de iniciação no qual o menino se tornava homem (vir). Aí, uma inspeção física da genitália do rapaz era recomendada antes que o menino pudesse ser considerado maior de idade. Da mesma forma, havia conotações patentemente sexuais na cerimônia denominada depositio barba, a primeira vez em que o rapaz cortava a barba (assim encerrando sua própria atratividade pederástica).

Destarte, a sociedade romana dispunha de artifícios populares que serviam para regular a sexualidade. Uma cultura de temas sexuais é onipresente na metrópole. Assim, as famílias preocupavam-se com a castidade de seus rapazes (cf. Plínio, Epistula 3.3.4; 7.24.3). Havia certo preconceito contra o uso de roupas efeminadas e espalhafatosas (Guélio 1.5; 6.12; Sêneca, Epistula 114), ou roupas de certas cores, especialmente verde claro ou azul celeste (Marcial 3.82.5; Juvenal 2.97). Atitudes aparentemente inofensivas eram estereotipadas como evidência de homossexualidade passiva: coçar a cabeça com o dedo (Juvenal 9.133; Sêneca Epistula 52.12; Luciano, Rhetoron Didaskalos 11; Plutarco, Pompeu 48.7); mãos nos quadris (Juvenal 6.O.24); depilação e dança (Macróbio Saturnalia 3.14.4-8), cacoetes e impedimentos de linguagem (Marcial 10.65.10; Pérsio 1.17-18, 35; Quintiliano 2.5.10-12; Juvenal 2.111). A homossexualidade passiva era tratada como doença e, contra ela, toda sorte de simpatia era receitada (Plínio, Historia naturalis 28.106; Juvenal 2.15-22, 50, 78-81). Palidez excessiva era considerada como sintoma de se ter participado em sexo oral e, portanto, não se devia beijar ou partilhar os talheres de uma pessoa pálida (cf. RICHLIN, 1993, p. 550-552).

Além disso, a sociedade romana contava com uma retórica da condenação sexual. Suetônio cita a declaração de Cúrio de que César era “o marido de toda mulher e a mulher de todo marido.” Ele também descreve as preferências sexuais de outros romanos eminentes: Cláudio, Augusto, Galba, Nero, Calígula, Nerva, Domiciano, etc. De forma semelhante, Cícero acusa Clódio de homossexualismo passivo adulto (Har. Resp. 42). Uma retórica da sexualidade era muito importante em Roma uma vez que o sexo “se relacionava intimamente com as questões de legitimidade, de alianças entre clãs e dos privilégios masculinos” (HABINEK, 1998, p. 27).

A sociedade da época contava com rituais religiosos a fim de regular o comportamento sexual, como é o caso de se convocar um haruspex (um experiente intérprete de presságios como relâmpagos, pássaros, etc.) para expurgar a impureza sexual de uma pessoa (cf. Juvenal 2.121). A verdade é que a literatura romana era um meio de se moldar uma certa perspectiva social do sexo que, por sua vez, era um meio de se moldar a literatura romana. A versão ovidiana da carreira amorosa de Safo, por exemplo, implica que “o homoerotismo feminino” seria “uma conduta perversa radicalmente em conflito com a natureza” (SKINNER, 1997, p. 21).

A sociedade romana chegou a exercer um controle oficial sobre o comportamento sexual. Chegou-se a criar uma legislação específica concernente à conduta sexual, como, por exemplo, a Lei Escantínia (que regulamentava a penetração sexual) e a Lei Júlia (que fez do adultério um crime e regulamentou o assassínio da mulher e de seu amante em flagrante delicto). Isso é ainda mais relevante se compreendermos que a legislação romana era marcadamente baseada no costume. Os primeiros legisladores romanos foram os pontífices, que eram a autoridade máxima de uma lei não escrita. A primeira mudança drástica ocorreu depois do conflito entre patrícios e plebeus quando os plebeus exigiram a codificação de leis. Daí surgiram as chamadas Doze Tábuas, mas a lei sagrada continua sob a alçada dos pontífices e não se mistura com a lei civil, pois os romanos não se dispunham a alterar aquilo que consideravam como tendo sido estabelecido pelos deuses. O costume influencia na interpretação da lei; a lei pode não se referir a ele, mas, em última instância, é o costume que funciona como elemento norteador (WATSON, 1995).

Além disso, pretores e censores exerciam uma cuidadosa vigilância com respeito ao comportamento sexual. Aqueles que eram considerados infames eram susceptíveis de incorrer em penas severas: restrição quanto aos cargos públicos por ele ocupados, remoção do album iudicum (a lista de homens que podiam ser indicados para a função de jurado em um processo jurídico), expulsão do exército e da corte. Os infames podiam, ainda por cima, se tornar intestabiles, perdendo o direito de testemunhar em um processo de testamento ou, até mesmo, de fazer o seu próprio testamento. David Cohen (apud HABINEK, 1998, p. 28-29) argumenta que “a legislação moral augustana” foi nada mais do que uma “apropriação massiça e deliberada, por parte do estado, de uma nova esfera regulamentar: o casamento, o divórcio e a sexualidade.” Tal legislação teve o efeito de retirar a conduta sexual do contexto familiar e a transferir para a esfera pública.

A conclusão inevitável é de que os romanos não existiram antes da criação da sexualidade. De fato, “um homem, em sua vida pública, estava sob constante ataque” (PARKER). As restrições sociais sobre o sexo (conquanto diferentes) operavam naquela época conforme operam hoje.



Qual é o Sentido Mais Saliente da “Sexualidade”?



A sexualidade romana era multifacetada. É, por essa razão, melhor falarmos em termos de sexualidades romanas, como o fazem Hallet e Skinner (1997). Entretanto, uma característica permanece como válida para todos os seus aspectos: a sexualidade é socialmente relevante. Esse é talvez a marca mais conspícua da sexualidade humana e é justamente isso que aproxima todas as nossas sexualidades. Só cabem duas alternativas, aqui: ou dizemos que não havia uma Roma-antes-da-sexualidade ou, então, teremos que encontrar uma nova definicão para a sexualidade na sociedade atual. A sexualidade romana e a moderna sexualidade ocidental são duas facetas de um mesmo fenômeno socialmente construído e inexoravelmente determinado por forças sociais e biológicas. Com efeito, a principal objeção à abordagem foucaultiana, aqui, não é que a sexualidade seja socialmente construída, mas que tal construção social possa ser deliberada e conscientemente conduzida.



Conclusão: Houve, Então, uma Roma Depois da Sexualidade?



A sexualidade não é um fenômeno homogêneo nem uniforme. A sexualidade não permanece a mesma por um período longo – e às vezes nem mesmo em um período curto. Isso explica por que ela é percebida de modos distintos por pessoas diferentes. Isso acontece, às vezes, mesmo dentro de culturas aparentemente semelhantes. Um exemplo disso ocorreu com os rabinos do período greco-romano. Os rabinos da Palestina tinham perspectivas que se assemelhavam mais às da elite greco-romana do que às dos rabinos babilônicos (SATLOW, 1998, p. 135-144). Habinek (1998, p. 27-28) mostra, por exemplo, que enquanto Catulo entendia o sexo como parte de uma rede de relações políticas, econômicas, regionais e afetivas, Ovídio tinha uma visão inteiramente diferente. Psicologias individuais distintas e contextos sociais diferentes explicam essa divergência.

A sexualidade humana sempre esteve em fluxo. As mudanças observadas na conduta sexual do homem através dos séculos levam alguns estudiosos a supor que houve um tempo em que a sexualidade não existia. Chega-se a prever que haverá um tempo em que a sexualidade deixará de existir. A sugestão, aqui, é que a explicação que Miligan dá para sua deficiência de perceber a operação da sexualidade no mundo antigo também serve para dar conta da razão por que muitos não conseguem perceber o papel a ser desempenhado pela sexualidade em sociedades futuras. Redes de forças sociais têm sido responsáveis pela articulação da sexualidade em diferentes sociedades e não há razão para que se suponha que tais redes tornar-se-ão obsoletas. A sexualidade humana será diferente em sociedades futuras, mas persistirá.

Por outro lado, pode-se dizer que houve uma Roma-depois-da-sexualidade? Isto é, houve um tempo quando os romanos se tornaram cientes de sua sexualidade e, portanto, engendraram tal conceito em sua sociedade? Qual teria sido o agente responsável pela criação de tal conceito? a legislação moral de Augusto? os discursos moralizantes de Cícero e Catão? Impossível de dizer! Esses esforços e tentativas de tornar um tipo de moralidade a norma para o cidadão comum não foram, de fato, rupturas com a tradição. Não se trata da invenção da sexualidade, mas apenas de sua manipulação a fim de se privilegiar uma certa ideologia e torná-la prevalente. Quanto à questão que indaga se os romanos criaram a sexualidade, pode-se dizer que não a criaram, mas que lhe acresceram gostos e preferências. Os romanos não criaram a sexualidade – o que eles criaram foi a sexualidade romana.

HABINEK, Thomas. The invention of sexuality in the world-city of Rome. In: HABINEK, Thomas; SCHIESARO, Alessandro. The Roman cultural revolution, 1998.

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Artigo publicado originalmente em: TORRES, Milton L. A sexualidade romana até os tempos do Novo Testamento, Revista Teológica, Cachoeira, BA, v. 4, n. 2, p. 22-29, 2000.

Vegetarianismo e Poesia

por Milton L. Torres



Vinicius de Moraes foi um homem de posições pouco convencionais. Casou-se uma dezena de vezes e viveu a vida com intensidade. Além disso, atribuía ao sábado a causa de todas as infelicidades humanas. Assisti recentemente a uma palestra do Prof. Davi da Silva Oliveira, professor de literatura no curso de Letras do UNASP, em que ele recitou o poema "O dia da criação", de Vinicius. Os versos, baseados na declaração "macho e fêmea os criou" (de Gn 1:27), afirmam reiteradas vezes que todos os males do mundo ocorrem por causa do sábado. Segundo o raciocínio do poeta, se Deus tivesse descansado na sexta-feira (sem criar, portanto, o gênero humano), nosso planeta estaria livre das principais incoerências que o acometem...

Contraditoriamente, a sensibilidade poético-musical raramente impedia que o poeta, ocasionalmente, manifestasse seu lado mais animalesco. A boemia o acompanhava alhures e algures, e criava nele a vanglória de se render impunemente à sensualidade, apetite, hedonismo, enfim, aos prazeres da carne. Carlos Drummond de Andrade chegou a dizer que Vinicius foi o único poeta brasileiro que ousou viver inteiramente sob o signo da paixão. Vinicius tinha uma notória antipatia pelo vegetarianismo. Por isso, publicou o poema "Não comerei da alface a verde pétala", no livro Para viver um grande amor:


Não comerei da alface a verde pétala

Nem da cenoura as hóstias desbotadas

Deixarei as pastagens às manadas

E a quem maior aprouver fazer dieta.


Cajus hei de chupar, mangas-espadas

Talvez pouco elegantes para um poeta

Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta

Que acredita no cromo das saladas.


Não nasci ruminante como os bois

Nem como os coelhos, roedor; nasci

Omnívoro: dêem-me feijão com arroz


E um bife, e um queijo forte, e parati

E eu morrerei feliz, do coração

De ter vivido sem comer em vão.


Com o soneto, o poeta tentava criar a ilusão de que estava acima do bem e do mal. Pretendia ter uma natureza imune às dificuldades dos demais mortais. O biógrafo José Castello, autor da obra Vinicius de Moraes: o poeta da paixão, diz que Vinicius foi um homem que viveu para se ultrapassar e para se desmentir. Para se entregar totalmente e fugir, depois, em definitivo. Para jogar com as ilusões e com a credulidade, por saber que a vida é apenas mais um tipo de ficção. No entanto, quando o poeta envelheceu e viu a saúde debilitada. Teve que se contentar em comer legumes na água e sal como qualquer outro velho.

Minha reação ao desdém de Vinicius pela folha de alface é a paródia de seu soneto, que compus em dezembro de 1990, na cidade de Salvador, e que intitulei “Eu comerei da alface a verde pétala”:


Eu comerei da alface a verde pétala

E da cenoura aljôfar prateado

Deixarei a violência ao embotado

E a quem mais aprouver fazer-se fera.


Cajus hei de chupar, mangas-espadas

Talvez pouco elegantes para um esteta

Mas são banquete opimo do poeta

Que acredita no cromo das saladas.


Se nasci carnívoro como um tigre

Um pensamento, alguma coisa houve

Estou diferente, sinto-me livre!


Eu viverei, comendo apenas couve

Mas hei de ser firme, hei de ser forte

Não cevarei jamais vida na morte.





A Dimensão Escatológica dos Pequenos Grupos

por Milton L. Torres, PhD


Muito se tem escrito acerca dos pequenos grupos desde que a Igreja Adventista se conscientizou de que a prática comum, em outras denominações evangélicas, de valorizar o evangelismo relacional e a provisão de cuidado em um ambiente socialmente acolhedor (PRIME, 2007) estava em harmonia com as orientações dadas por Ellen White aos pioneiros adventistas: “a formação de pequenos grupos como base do esforço cristão, é um plano que foi apresentado diante de mim por Aquele que não pode enganar-se” (WHITE, 1985, v. 3, p. 84). No entanto, embora o título de uma das obras mais populares (JOHNSON, 2000) acerca dos pequenos grupos, no meio adventista, faça referência ao tempo do fim, essa obra mais trata de como devem ser os pequenos grupos e quais são os seus fundamentos do que acerca das dimensões escatológicas dos pequenos grupos. Por isso, ainda é preciso que reflitamos sobre a relação entre os pequenos grupos e a escatologia adventista.

Há riscos intrínsecos à empreitada de tratar da escatologia. Aliás, tal perigo aparece de forma embrionária na própria etimologia do termo “escatologia”, aplicado, em português, a duas vertentes bastante distintas do estudo dos textos antigos e de suas implicações para a compreensão do passado, do presente e do futuro. Dependendo da origem etimológica da palavra, ela pode se referir tanto ao estudo das antigas comédias gregas, dizendo respeito especialmente às propensões dos comediógrafos antigos de recorrerem, com frequência, a anedotas sobre situações que envolviam os excrementos de seus personagens (o substantivo neutro da terceira declinação skôr, skatos significa, em grego, “fezes”), quanto às doutrinas pertinentes aos últimos acontecimentos a ocorrerem na terra, segundo as convenções do antigo gênero apocalíptico (o adjetivo triforme eschatos, eschatê, eschaton significa, em grego, “último”). Como se percebe, quando tentamos fazer incursões em uma dimensão tão ardilosa quanto a escatologia, podemos ter o mérito de fazer precisas observações sobre o futuro do mundo e da igreja ou, inversamente, podemos incorrer na temeridade de construir castelos de areia, casas de palha ou, o que é pior, pilhas de esterco. Aos castelos de areia, qualquer vento de doutrina pode derrubar; às casas de palha, qualquer lobo em pele de cordeiro pode soprar; e as pilhas de esterco só atraem as moscas varejeiras. Ou seja, a escatologia pode decepcionar por não ter sustentação adequada ou, por outro lado, por não ser vigorosa e imaginativa o bastante para nos atrair a atenção e nos fazer refletir acerca do futuro que nos aguarda.

Em junho de 2009, eu estava traduzindo as palestras do Pr. David Cox, no Clube Estoril, em Campo Grande (MS), quando esse distinto especialista adventista em pequenos grupos e autor de um de nossos primeiros livros sobre o assunto (COX, 2000) indagou às quase mil e duzentas pessoas que compareceram ao evento se Deus necessitava dos pequenos grupos para concluir a obra de pregação do evangelho. Diante de uma retumbante resposta positiva do auditório, Cox os decepcionou momentaneamente ao afirmar que Deus não necessitava de nada nem ninguém para realizar seus desígnios. Os líderes e supervisores de pequenos grupos que estavam ali presentes perceberam, então, que a obra que realizam é um privilégio que lhes é franqueado por Deus e não o barco salva-vidas que há de, unicamente, conduzir a igreja até o seu triunfo final. Por outro lado, Cox deixou clara sua crença de que os pequenos grupos fazem parte do plano de Deus para a consumação escatológica do presente século.

Jolivê Chaves (2008, p. 29-34) fala de “tempos favoráveis” aos pequenos grupos. Devo confessar que é uma tentação mostrar, neste capítulo, exatamente isso: que os pequenos grupos se encaixam perfeitamente numa estratégia efetiva de evangelismo, capaz de alcançar essa tão indecifrável mentalidade pós-moderna. Os pequenos grupos proporcionam um admirável ambiente para a expressão de um dos valores mais prezados pelos pós-modernos: o valor da autonomia, contribuindo para a compreensão de que a cada um compete uma obra e fomentando a liberdade necessária para a realização da mesma (RIBEIRO; ANDRADE, 2008, p. 91-100); ao mesmo tempo, esvazia o contexto cristão de uma das ameaças mais temidas de nossa época: a do abuso de autoridade. Meu esforço para resistir a essa disposição advém, principalmente, do reconhecimento de que essa verdade já foi suficientemente estabelecida entre os adventistas (CUTRIM, 2007, p. 91-108). Nossa compreensão dessa vantagem indiscutível dos pequenos grupos já informa nosso discurso sobre crescimento de igreja e impregna nossa prática eclesiástica (RODE; RODE, 2007, p. 59-69).

Recentemente, o psicólogo adventista Mario Pereyra chamou a atenção para três aspectos da dimensão psicológica da escatologia adventista. Citando um texto do Novo Testamento: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre as nações em perplexidade por causa do bramido do mar e das ondas; haverá homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo; pois os poderes dos céus serão abalados. Então se verá o Filho do homem vindo numa nuvem, com poder e grande glória” (Lucas 21:25-27), Pereyra (2006) afirma que Jesus usa três frases que descrevem sinais diferentes, mas relacionados, para se referir ao tempo do fim. A expressão “angústia das nações”, indicando uma ansiedade coletiva; “o rugido do mar e das ondas”, com referência a um estado confuso de perplexidade; e “homens desmaiando de medo e na expectativa do que virá ao mundo”, advertindo de um desfalecimento humano. Segundo ele, “esses sinais ligados com a vida parecem predizer aspectos globais de conduta e estilo de vida, que envolvem saúde mental”. Em uma descrição gráfica, Lya Luft (2009, p. 26) fala desse estado de confusão e desse arrefecimento da vontade de viver: “convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado”.

Em verdade, a ansiedade relacionada à salvação e às incertezas do futuro representa um elemento que afeta não apenas a cultura mundial como um todo, mas também a apreciação adventista do estilo de vida abraçado pelos membros da igreja. É necessário que haja um ambiente acolhedor e propício para que os adventistas possam dar vazão a seus temores, inseguranças e perplexidades. Segundo Émile Durkheim (2003, p. vi), considerado um dos pais da sociologia moderna, “é um postulado essencial da sociologia que uma instituição humana não pode repousar sobre o erro e a mentira, caso contrário não pode durar”. Dessa forma, podemos entender que a crise hoje vivida pela instituição do casamento deriva do fato de que o relacionamento conjugal está cedendo às pressões imediatistas e relativistas de nossa época, tornando-se apenas uma fachada. Por outro lado, a vitalidade da Igreja como instituição social resulta principalmente de sua habilidade de dar sustentação legítima a relacionamentos sinceros e duradouros, embasados em características humanas tão importantes quanto a esperança, a consolação e o espírito de comunidade.

É natural que as pessoas demonstrem ansiedade quando confrontadas com perigos reais e iminentes. As Escrituras, de fato, fazem referência a momentos, mais adiante na história humana, que podem ser descritos (por falta de uma expressão mais politicamente correta), no mínimo, como “tensos”. Em razão disso, os pequenos grupos adquirem certa importância terapêutica. Segundo Ellen White (1995a, p. 274), “os pequenos grupos que se reúnem para estudar a Bíblia desenvolvem músculos espirituais”. Que os tempos tolerantes da pós-modernidade não nos enganem. As perseguições religiosas ocorreram no passado recente da humanidade e, dadas as condições voláteis do fenômeno religioso, voltarão a ocorrer no futuro. No caso dos países em que, mesmo hoje, não há liberdade religiosa, os pequenos grupos já desempenham o papel fundamental de prover um espaço dinâmico para a expressão da fé adventista e do sentimento de solidariedade que geralmente a acompanha.

A perseguição religiosa tem sido um temor histórico dos adventistas. Assim, Ellen G. White via nos pequenos grupos e no isolamento social intencional uma sólida proteção contra a perseguição mais exacerbada. Ela declara:

Vi os santos deixarem as cidades, e vilas, reunirem-se em grupos e viverem nos lugares mais solitários da Terra. Anjos lhes proviam alimento e água, enquanto os ímpios estavam a sofrer fome e sede. Vi então os principais homens da Terra consultando entre si, e Satanás e seus anjos ocupados em redor deles. Vi um impresso, espalhado nas diferentes partes da Terra, dando ordens para que se concedesse ao povo liberdade para, depois de certo tempo, matar os santos, a menos que estes renunciassem a sua fé estranha, abandonassem o sábado e guardassem o primeiro dia da semana” (WHITE, 1995b, p. 282).

A “fé estranha” dos adventistas não permite que sejamos incluídos entre os conformistas de nossa época. Em vez disso, anunciamos um evangelho de transformação radical que conclama as pessoas a abandonarem o materialismo, a passividade social, a sensualidade, o consumismo voraz, o imediatismo, o culto anoréxico à aparência e outros comportamentos icônicos de uma sociedade que ostenta o slogan da morte de Deus. Por essa razão, devemos esperar oposição intransigente por parte de muitos, especialmente daqueles cuja cosmovisão já se pode dizer incompatível com as elevadas realidades espirituais do evangelho. Polanyi (1958, p. 380) dá uma boa descrição dessa forma equivocada de ver o mundo:

A lei nada mais é do que o que os tribunais decidirem; a arte, nada mais do que um emoliente dos nervos; a moralidade, nada mais do que uma convenção; a tradição, nada mais do que inércia; Deus, nada mais do que uma necessidade psicológica. Assim, o homem domina um mundo no qual o próprio homem não mais existe. Ao abrir mão de suas obrigações, também abriu mão de sua voz e esperança. Foi deixado para trás e não tem sequer significado para si mesmo.

De fato, a predição bíblica é que, nos últimos dias, os homens se tornarão cada vez mais perversos e “irão de mal a pior, enganando e sendo enganados” (2 Tm 3:13). Basta que analisemos, com um pouco mais de atenção, as configurações sociais a que os processos de globalização nos têm levado para que percebamos a realidade dessa declaração. O neoliberalismo hegemônico tem produzido desemprego generalizado, um mercado predatório no qual poucos conseguem se estabelecer, profundas desigualdades sociais, a valorização de bens supérfluos que podem ser consumidos pelos mais abastados em detrimento da produção de alimentos, violência espontânea e aumento no número de pessoas com dependência química ou deprimidas. Como lidar com essas insuportáveis pressões do mundo que nos rodeia Esses são os sinais dos tempos. Para enfrentá-los, é necessário que desenvolvamos uma rede confiável de apoio, à qual possamos recorrer nos momentos de crise. Enquanto é verdade que as pessoas estejam hoje mais preocupadas em salvar a pele do que em salvar a alma, podemos criar e manter um núcleo de pessoas espirituais e dedicadas à preservação da fé e da esperança, sensíveis às necessidades individuais do povo de Deus e do ser humano de modo geral, diante da hostilidade do meio social em que existimos.

Além da segurança escatológica provida pelo ambiente protetor dos pequenos grupos, estes ainda contribuem com a dinâmica ideal para que possamos funcionar como comunidade e, ao mesmo tempo, cumpramos os desígnios de Deus para o seu povo no tempo do fim. A Bíblia deixa isso claro quando a parábola do banquete de casamento (Mt 22:1-14) identifica quais são aqueles que estão realmente esperando pela segunda vinda de Cristo: aquelas pessoas que aprenderam a não se preocupar exclusivamente com assuntos de interesse pessoal, sua família, seu trabalho e seu lazer. Da mesma forma, a parábola das virgens (Mt 25:1-13) enfatiza que é impossível saber a hora exata da volta de Jesus e, por isso, os cristãos precisam viver em uma constante expectativa. Nesse sentido, a parábola dos talentos (Mt 25:14-30) nos ensina que o modo correto de esperar pelo retorno de Jesus é usando os talentos, de forma desinteressada, em benefício do semelhante (DAILY, 1994, p. 169-180). Finalmente, a parábola dos bodes e das ovelhas (Mt 25:31-46) enfatiza que a obra de esperar pelo Salvador é caracterizada, principalmente, por uma atitude de humildade. Uma igreja organizada em pequenos grupos tem muito mais chances de prover os meios ideais e as condições necessárias para que a espera da volta de Jesus seja uma experiência enriquecedora que construa relacionamentos e aproxime as pessoas. A proximidade proporcionada pela criação de uma comunidade comprometida com os princípios do reino de Deus é um bem cuja importância não pode ser subestimada. A sensação de expectativa e o desejo premente de experimentarmos o amor de Deus em sua plenitude contribuem para uma convivência harmoniosa e significativa.

De acordo com Manning (2007, p. 83), a “religião restrita e separatista é um lugar isolado, um Éden coberto de mato, uma igreja na qual as pessoas vivem em uma alienação espiritual que as distancia de seus melhores talentos humanos”. Os pequenos grupos constituem, exatamente, um antídoto para esse tipo de religião. Parafraseando Eugene Peterson (2005, p. 17), eu diria que os pequenos grupos não existem para entreter; nem para divertir; nem para a cultura; não são a chave que destranca segredos do futuro, mas existem para demonstrar que a intimidade com Deus e uns com os outros é essencial. Nesse contexto, Manning (2007, p. 157) relata a história do homem que vivia dentro de um contêiner, na Austrália, para fugir da vida. Quando o contêiner foi perfurado por balas, que também atingiram seu morador, orifícios se abriram pelos quais este foi capaz de observar a vida comum das pessoas ao seu redor. Isso o recuperou para a vida em sociedade: as feridas são, de fato, necessárias. Nesta época, às vésperas do cumprimento escatológico das profecias bíblicas, necessitamos de uma experiência trinitária. Precisamos constatar que não estamos sozinhos “na estrada de tijolos amarelos”. Ser discípulo é compreender que paixão significa sofrimento e, assim, ter um vislumbre da vulnerabilidade de Deus, que chegou a todos os extremos movido pelo desejo de nos salvar para a vida em comunidade.

Os pequenos grupos podem, dessa forma, cooperar com as forças espirituais do bem para o triunfo da vontade de Deus nos derradeiros momentos da história deste mundo. Ellen White (1967, p. 92) nos dá o seguinte conselho:

Que pequenos grupos se reúnam à noite, ao meio-dia ou cedo pela manhã para estudar a Bíblia. Que eles experimentem um período de oração para que sejam fortalecidos, iluminados e santificados pelo Espírito Santo. Se você abrir as portas de seu lar para recebê-los, grandes bênçãos lhe serão concedidas. Anjos de Deus estarão presentes na reunião. Será como se você se alimentasse das folhas da árvore da vida.

A dimensão escatológica dos pequenos grupos recobre, portanto, os campos de batalha em que se trava a luta contra as trevas deste século: a comunidade, a igreja, o lar e o coração das pessoas. A sua solução para os dilemas do ser humano, embora simples, jaz no cerne da própria realidade das coisas espirituais: se não pudermos viver em íntima comunhão nesta vida, neste lugar e neste momento, aprendendo a nos suportar mutuamente (Cl 3:13), nossos sonhos escatológicos e nosso desejo esperançoso por um futuro que não mais esteja às avessas não passarão de gracejos cruéis, devaneios insubstanciais e miragens vazias.

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Publicado originalmente em: GODINHO, Paulo (Coord.). Aprofundando a caminhada: programa de formação de líderes. Niterói: Juizforana, 2010. p. 14-17.

Declaração de Bens

por Hélio Fraga




O pai moderno, muitas vezes perplexo, aflito, angustiado, passa a vida inteira correndo atrás do futuro e se esquecendo do agora. Na luta para edificar este futuro, ele renuncia ao presente. Por isso, é um homem ocupado, sem tempo para os filhos, envolvido em mil atividades — tudo com o objetivo de garantir o seu amanhã.

É com que prazer e orgulho, a cada ano, ele preenche sua declaração de bens para o Imposto de Renda. Cada nova linha acrescida foi produto de muito esforço, muito trabalho. Lote, casa, apartamento, sítio — tudo isso custou dias, semanas, meses de luta. Mas ele está sedimentando o futuro da sua família. Se ele parte um dia, por qualquer motivo, já cumpriu sua missão e não vai deixar ninguém desamparado.

E para ir escrevendo cada vez mais linhas na sua relação de bens, ele não se contenta com um emprego só — é preciso ter dois ou três; vender parte das férias, em vez de descansar junto à famíl ia; levar serviço para fazer em casa, em vez de ficar com os filhos; e é um tal de viajar, almoçar fora, discutir negócios, marcar reuniões, preencher a agenda — afinal, ele é um executivo dinâmico, faz parte do mundo competitivo, não pode fraquejar.

No entanto, esse homem se esquece de que a verdadeira declaração de bens, o valor mais alto, aquele que efetivamente conta, está em outra página do formulário do Imposto de Renda — mais precisamente, naquelas modestas linhas, quase es­condidas, onde se lê “relação dos dependentes”. Aqueles que dependem dele, os filhos que ele colo­cou no mundo, e a quem deve dedicar o melhor de seu tempo.

Os filhos são novos demais, não estão interes­sados em lotes, casas, salas para alugar, aumento da renda bruta — nada disso. Eles só querem um pai com quem possam conviver, dialogar, brincar. Os anos vão passando, os meninos vão crescendo, e o pai nem percebe, porque se entregou de tal forma ao trabalho - vulgo construção do futuro - que não viveu com eles, não participou de suas pequenas alegrias, não os levou ou buscou no co­légio, nunca foi a uma festa infantil, não teve tem­po para assistir à coroação da menina — pois um executivo não deve desviar sua atenção para essas bobagens. São coisas de desocupados.

Há filhos órfãos de pais vivos, porque estão “entregues” - o pai para um lado, a mãe para c outro, e a família desintegrada, sem amor, sem diálogo, sem convivência. E é esta convivência que solidifica a fraternidade entre os irmãos, abre seu coração, elimina problemas, resolve as coisas na base do entendimento.

Há irmãos crescendo como verdadeiros estra­nhos, porque correm de um lado para o outro o dia inteiro — ginástica, natação, judô, balé, aula de música, curso de Inglês, terapia, lição de piano, etc. — e só se encontram de passagem em casa, um chegando, o outro saindo. Não vivem juntos, não saem juntos, não conversam — e, para ver os pais, quase é preciso marcar hora.



* * *



Depois de uma dramática experiência pessoal e familiar vivida, a única mensagem que tenho para dar — e que tem sido repetida exaustivamente em paróquias, encontros familiares, movimentos e entidades — é esta: não há tempo melhor aplicado do que aquele destinado aos filhos.

Dos 18 anos de casado, passei 15 anos correndo e trabalhando, absorvido por muitas tarefas, envolvido em várias ocupações, totalmente entregue a um objetivo único e prioritário: construir o futuro para três filhos e minha mulher. Isso me custou longos afastamentos de casa, viagens, estágios, cursos, plantões no jornal, madrugadas no estúdio da televisão, uma vida sempre agitada, atarefada, tormentosa, e apaixonante na dedicação à profissão escolhida — que foi, na verdade, mais importante do que minha família.

E agora, aqui estou eu, de mãos cheias e de coração aberto, diante de todos vocês, que me conhecem muito bem. Aqui está o resultado de tanto esforço: construí o futuro, penosamente, e não sei o que fazer com ele, depois da perda do Luiz Otávio.

De que valem casa, carros, sala, lote, e tudo o mais que foi possível juntar nesses anos todos de esforço, se ele não está mais aqui para aproveitar isso com a gente?

Se o resultado de 30 anos de trabalho fosse consumido agora por um incêndio, e desses bens todos não restasse nada mais do que cinzas, isso não teria a menor importância, não ia provocar o menor abalo em nossa vida, porque a escala de valores mudou, e o dinheiro passou a ter um peso mínimo e relativo em tudo.

Se o dinheiro não foi capaz de comprar a cura e a saúde de um filho amado, para que serve ele? Para que ser escravo dele?

Eu trocaria — explodindo de felicidade — todas as linhas da declaração de bens por uma única linha que eu tive de retirar, do outro lado da folha: o nome do meu filho na relação dos dependentes. E como me doeu retirar essa linha, na declaração de 1983, ano-base de 82.

Originalmente publicado em: FRAGA, Hélio. Família, último lugar? 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1987.



Alerta

Versões falsificadas desta crônica circulam pela Internet e em diversas publicações. Algumas das versões plagiadas acrescentam ao texto original que Luiz Otávio morreu drogado e que teve uma irmã Priscila, que fugiu de casa.

O filho de Hélio Fraga, Luiz Otávio, faleceu aos 12 anos, em novembro de 1982, vítima de tumor cerebral (meduloblastoma). Teve dois irmãos: Marcelo, nascido em 1972, e Ana Cristina, em 1977. Eles estudam, trabalham e moram em Belo Horizonte. A outra irmã jamais existiu.

A Nova Busca pelo Jesus Histórico

Milton L. Torres, PhD




Ao longo da história a pessoa de Jesus sofreu ataques múltiplos e de diversas formas. Um desses ataques mais ferozes foi a negação de sua historicidade; ou seja, que a pessoa de Jesus jamais teria existido. Recentemente, contudo, Jesus tem sido posto sob fogo cerrado em uma perspectiva bastante diferente. Os cientistas agora dizem que eles creem na existência histórica de Jesus, mas que, para conhecer sua pessoa, é necessário eliminar os mitos com os quais Jesus ficou associado por causa dos acréscimos feitos ao registro escrito por seus seguidores. Afirmam eles que Jesus não disse todas as coisas que a Bíblia lhe atribui nem tampouco realizou todos os feitos que as Escrituras registraram como sendo obra Sua. Jesus precisa, nessa perspectiva, ser despido dos antigos mitos que o cercam a fim de que o homem moderno possa ouvir sua verdadeira mensagem.

Uma outra novidade da busca pelo Jesus histórico como ela agora ocorre é que, pela primeira vez, o debate é trazido ao nível do homem comum. Antes disso, as discussões se limitavam ao ambiente acadêmico das universidades secularizadas, mas desde a criação do movimento conhecido como The Jesus Seminar (“o Seminário de Jesus”), as discussões foram trazidas ao forum público. O Seminário de Jesus foi criado em 1985 por Robert Funk e John Dominic Crossan, entre outros, com os objetivos de atribuir um grau de consenso acadêmico às falas atribuídas pela Bíblia a Jesus e de tornar públicas suas descobertas. Seu desejo era “liberar” Jesus dos “mitos” com Ele associados. Assim, muitos dos recentes ataques ao Jesus histórico advêm das tentativas de descobrir o que realmente aconteceu na história. Isso tem produzido uma interessante contradição de métodos e pressuposições entre os cientistas que combinam o otimismo modernista em relação ao método científico, a valorização excessiva da informação nos últimos quinze anos (a assim-chamada “Idade Mídia” ou “Idade Líquida”) e o ceticismo pós-moderno. Essa postura é um reflexo do que N. T. Wright chama de “imperialismo cultural do Iluminismo”, uma atitude que considera que somente nos últimos duzentos anos o homem descobriu o verdadeiro sentido da história. Antes disso, a história teria sido escrita por autores que faziam acréscimos livres ao seu relato, costurando fantasia e lenda em um tecido que chamavam de história.

Os cientistas consideram, agora, que os evangelhos são narrativas nas quais a memória de Jesus foi embelezada pela presença de elementos míticos que expressam a fé da igreja nEle, e por ficções plausíveis que agiam como captadores da atenção dos ouvintes dos primeiros séculos da existência da igreja. Por isso, esses cientistas adotam uma postura que coloca o fardo da prova sobre o texto bíblico. Em outras palavras, todas as atividades que o evangelho atribui a Jesus devem ser consideradas fábulas até que se prove o contrário. Os membros do Seminário de Jesus estão comprometidos com um naturalismo rígido, que inteiramente exclui o sobrenatural do registro histórico. Dessa forma, todos os relatos evangélicos que dizem respeito aos milagres de Jesus devem ser considerados como inautênticos. Eles também negam, de maneira enfática, a possibilidade de Jesus prever o futuro. Como os evangelhos descrevem, com exatidão, a queda de Jerusalém no ano 70, a consequência do naturalismo exagerado desses eruditos é que os evangelhos precisam, então, ter sido escritos depois do ano 70. Em razão disso, os autores do evangelho deixam de ser testemunhas oculares e passam a ser pessoas que coletaram as estórias de Jesus e lhes deram a forma de um relato coordenado.



Por Que Uma Nova Busca pelo Jesus Histórico

A nova busca pelo Jesus histórico não nega a existência histórica de Jesus Cristo, mas o Jesus que é buscado é bastante diferente daquele apresentado pelo Novo Testamento. As culturas populares abraçam, com determinação cada vez maior, o culto à diversidade. Busca-se um Jesus que esteja disponível para ser moldado conforme as necessidades de cada um: o Jesus de Mel Gibson, o Jesus amante de Maria Madalena, entre outros. O que, porém, impulsiona essa busca? Tive a oportunidade de discutir esse assunto em 2006 com o Dr. Wayne Meeks, professor recentemente aposentado da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, que estava escrevendo um livro, que já foi publicado, intitulado Jesus is the question (“Jesus é a pergunta”). Segundo ele, uma razão para essa tentativa de se criar um Jesus mais ao gosto pós-modernista se deve, principalmente, a uma certa desilusão, agora geralmente compartilhada pelos cientistas, em relação à história. Ele me disse que os cientistas parecem ter finalmente descoberto os pés de barro da história. No passado, as pessoas investigavam a Bíblia com a sensação de que poderiam, mesmo sozinhas, descobrir a verdade das coisas. Após o Iluminismo, parece que o “gênio da dúvida” escapou da garrafa e está, agora, fora de controle. A ciência alterna, então, momentos de confiança em que defende a validade do método científico e outros em que propõe que todas as coisas são relativas. Como resultado disso, quase todos nos tornamos cínicos.

As alternativas que surgem parecem não ser muitas. Corremos o risco de reverter a um autoritarismo fundamentalista e oportunista ou sucumbir a um relativismo absoluto. E é justamente porque a Cristandade, de modo geral, ora faz uma coisa, ora faz outra que muitos são levados a questionar a historicidade de Jesus. Os riscos do autoritarismo e do relativismo advêm de cinco faltas que tendemos a cometer hoje em relação aos nossos métodos de interpretação bíblica e nossas atitudes religiosas:



1. o hiperliteralismo e o hipersimbolismo

A hipervalorização do literalismo leva-nos a afirmar que dizer que a Bíblia é verdadeira significa dizer que ela é literal. O sentido pleno de um texto é seu sentido literal. Como resultado, acabamos impondo nossa posição como a única possível e, com frequência, excomungamos aqueles que discordam de nós. Uma investigação mais atenta à natureza da tipologia e do simbolismo bíblico pode nos ajudar a desenvolver uma postura mais tolerante às pequenas diferenças. Por outro lado, se descambamos para um hipersimbolismo em que precisamos encontrar uma explicação simbólica plausível para cada elemento das profecias do Apocalipse, por exemplo, corremos o risco de gastar tantas energias com minúcias insignificantes que acabamos por perder de vista o retrato de Cristo que nos é apresentado nesse e em outros textos do Novo Testamento.



2. o cognitivismo religioso

Com o surgimento de um novo paradigma educacional fortemente influenciado pela relatividade e pela física quântica e a adoção das metodologias construtivistas dele derivadas que, a despeito de suas alegações em contrário, se desenvolvem como metodologias essencialmente cognitivistas uma vez que seu foco principal é a construção do conhecimento, tendemos, cada vez mais, a imaginar que ter conhecimento é a marca identificadora do cidadão autônomo e livre. Se aplicarmos essa lógica ao âmbito religioso, o conhecimento da doutrina passa a ser um elemento definidor da fé de uma pessoa. Está aí uma razão por que os debates teológicos estão tão ao gosto dos membros de nossa igreja. Para ser justo, devo reconhecer que tais debates fazem parte de nossa herança denominacional desde épocas que muito antecedem à sedução de nossos educadores pelas propostas construtivistas, mas temo que nossa adesão, cada vez maior, a essa prática educacional voltada para os aspectos cognitivos levem à hipervalorização dos elementos doutrinários em detrimento das experiências de fé e graça que devem ser os elementos centrais da vida cristã: “porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef. 2:8). Não devemos abrir mão do papel relevante que temos dado à revelação divina como expressa no relato bíblico, mas é preciso compreender que a língua é mais do que as regras da gramática e que saber acerca das coisas que Jesus ensinou não nos isenta de praticar as coisas ensinadas por Ele.



3. o individualismo

O individualismo é o filho primogênito do construtivismo. A reflexão é a meta essencial do paradigma educacional emergente e, para que ela ocorra, muitas vezes é necessário que o indivíduo seja priorizado em detrimento do sujeito. Nessa perspectiva, a construção do conhecimento deve se dar com autonomia e de forma individual. Isso não significa que não haja espaço para a interação social, mas essa acaba subsidiando a aquisição do conhecimento e não a formação de valores. A valorização do indivíduo em detrimento do sujeito acaba por implicar que as necessidades da pessoa devem se sobrepor às exigências da sociedade. Cada um precisa encontrar seu próprio caminho e sua própria felicidade: a ética se torna uma questão de ótica e todas as formas de pensar o relato bíblico acabam relativizadas.



4. a incessante busca de novidade

Como resultado da sociedade capitalista na qual vivemos e que nos induz a um consumismo inconsequente em que nosso sucesso como pessoas é medido pelo novo modelo de aparelho celular que exibimos ou pelo televisor de plasma que transformamos no altar da família, experimentamos um verdadeiro comichão em busca de novidades: “porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências” (2 Tim. 4:3). Trata-se de verdadeiro “complexo de eureka” que, menos prejudicial quando fruto da expectativa criada por descobertas científicas como os papiros de Herculâneo, os Rolos do Mar Morto, os achados de Nag Hammadi, entre outros, descamba para a invenção de forças perseguidoras camufladas. Não que os cristãos fiéis não mais sejam perseguidos, longe disso! Qualquer um que tenha frequentado uma universidade ou um local de trabalho secularizados sabe que a perseguição aos cristãos ainda está em voga. Mas nunca fui capaz de compreender por que alguns têm que fazer circular documentos de sua própria fabricação que apontam para uma conspiração contra o remanescente fiel, que acaba nunca se desencadeando.



5. o romantismo

O romantismo é, acima de tudo, uma atitutide emocional doentia, tendo ficado conhecido na história como o “mal do século”. O romantismo é uma rejeição da realidade e uma opção por uma vida fantasiosa, uma abstração mental criada por aqueles que dele padecem. Essa deformação da realidade é geralmente acompanhada de um sentimentalismo exacerbado que beira o erotismo. Quando damos rédeas soltas ao pensamento religioso e quando este não sofre restrições por parte da razão, é possível que a figura de Jesus assuma os contornos da de um verdadeiro amante. O poder de persuasão do romantismo religioso é bastante forte. Mesmo uma pessoa geralmente tão racional como Albert Schweitzer acabou sucumbindo a ele no final de sua obra The quest for the historical Jesus (“A busca pelo Jesus histórico”). Uma vida de comunhão com Cristo produz sentimentos de enlevo genuínos e benéficos, mas uma religiosidade emotiva pode produzir sensações de bem-estar que não passam de mera imitação da real experiência religiosa: “eu fui ao jardim, bem a sós, à fragrância pura e celeste; pude então ouvir, doce e meiga voz, a voz gentil do Mestre.” Se uma experiência como esta não for fruto de verdadeira comunhão com Cristo, ela pode simplesmente indicar que o crente sucumbiu ao romantismo religioso. A ótica do consumo que sugere que as necessidades dos homens os impelem para os objetos e que cria tais necessidades por meio do marketing, da propaganda e das produções holywoodianas acrescenta uma dimensão materialista a essa exclusão máxima do mundo real.

O que quero sugerir, aqui, é que, embora a nova busca pelo Jesus histórico tenha incorporado metodologias que operam contra as principais denominações cristãs de nossa época, ela pode ser também um reflexo de nossas próprias inadequações com respeito à interpretação da pessoa de Jesus e de como o apresentamos àqueles que nunca tiveram um encontro pessoal com Ele. Se pudermos diminuir a importância que muitos cristãos agora dão a elementos como o literalismo, o cognitivismo, o individualismo, a busca de novidades e o romantismo, talvez possamos ter mais sucesso em canalizar essa busca por Jesus em uma maneira mais positiva e que realmente conduza a sua pessoa histórica.



A Tentativa de Descobrir a Autoconsciência de Jesus

A topografia do eu, como proposta por Freud, tem exercido uma poderosa influência nos estudos acadêmicos acerca da pessoa de Jesus. Segundo Freud, a verdadeira identidade de uma pessoa só pode ser descoberta depois de vários anos de psicanálise. Assim, os cientistas têm tentado analisar a pessoa de Jesus a fim de descobrir quem Jesus pensava que era. De acordo com eles, construções criativas por parte da igreja primitiva moldaram as crenças em Jesus e, por isso, requer-se, agora, um verdadeiro trabalho de detetive para se descobrir a autoconsciência de Jesus. O modelo dialógico de Vigotsky propõe que quanto mais conhecemos nosso “eu”, mais descobrimos o “outro”. Dessa forma, muitos cientistas propõem, hoje, que quanto mais os discípulos criavam sua própria identidade, tanto mais eles também criavam a identidade de Jesus. Jesus teria, assim, se tornado o Cristo principalmente por sua interação com os discípulos. Essa leitura processualista do desenvolvimento humano, conforme proposta por Norbert Elias, tem trazido os olhares construtivista e interacionista para a dimensão sócio-psicológica da compreensão humana e defendido o que se tem convencionado chamar de conexionismo. Todos os seres humanos estariam, assim, intimamente ligados em uma rede de consciências, daí nossa necessidade de sentir-nos parte de um mundo globalizado e, por isso, gastar tanto tempo com a internet e com as comunidades virtuais.

Essa postura radical que contempla a identidade como um processo e não como uma substância pode, sem dúvida alguma, exercer uma influência negativa sobre a cristologia da igreja. Por outro lado, ela nos conclama a uma posição de maior humildade em face da necessidade de uma compreensão mais profunda da identidade de Jesus. Não deveria surpreender-nos que as pessoas tenham dificuldades em aceitar a encarnação. Esse episódio evangélico se-nos afigura mesmo como uma escandalosa ruptura com a história, que nunca havia testemunhado um fenômeno dessas dimensões e com implicações tão incomensuráveis. Não é difícil aceitar uma versão mais fraca dessa teoria. É verdade mesmo que nos tornamos quem somos através das estórias que as pessoas contam a nosso respeito e as estórias que nós mesmos contamos a nosso respeito. Não seria algo surpreendente se Jesus tivesse se tornado humano através de sua interação com outros seres humanos, precisamente do modo como nós mesmos fazemos. Não seria tampouco surpreendente se Jesus tivesse se tornado mais e mais consciente acerca de seu papel como Messias à medida em que seu ministério transcorria em direção àquele momento fatídico quando entregaria sua vida pela raça humana. O que não podemos aceitar é que a ideia de sua divindade tenha surgido unicamente da necessidade que os discípulos tinham de construir uma identidade para o Messias que queriam contrapor às autoridades romanas ou a qualquer um que se-lhes opusesse. O homem Jesus é, de certa forma, o produto de sua encarnação e vida entre os homens, mas o Deus Jesus, não. Este transcende as esferas do tempo e do espaço e se estabelece como Criador e Redentor da humanidade: “porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas” Rom. 1:20.



Conclusão

A busca pelo Jesus histórico tem sido sempre um empreendimento mais protestante do que católico. Os católicos sempre conseguiram conviver, sem grandes dificuldades, com níveis múltiplos de interpretação bíblica. Contudo, desde 1950 até os católicos estão sucumbindo à necessidade de uma busca pelo Jesus histórico. Poucos empreendimentos teológicos têm tido consequências mais negativas para a Cristandade do que as conclusões do movimento do Seminário de Jesus. O erudito bíblico Jacob Neusner que, mesmo sendo judeu, questiona a agenda do Seminário de Jesus em sua reconstrução do Jesus histórico, disse, recentemente: – ou o Seminário de Jesus é o maior embuste científico desde o homem de Piltdown ou ele significa a completa destruição dos estudos neo-testamentários; eu espero que seja o primeiro caso.



Texto publicado originalmente, com pequenas alterações, em: Ministério, Tatuí, SP, p. 24 - 26, 02 jan. 2007.