Sunday, November 29, 2015

Se eu...

por Milton L. Torres

Se eu morrer nos próximos cinco anos, não fiquem tristes. Independentemente de um acidente trágico ou uma doença fatal, eu terei sido tão feliz que nem a lógica mais irrefragável me convenceria do contrário. Os últimos momentos, se terríveis e agonizantes, não terão peso suficiente para me remover o sorriso maroto dos lábios ou o olhar satisfeito das vistas. Não se trata de provocação ao destino. É só um reconhecimento, a celebração de que viver é tão divertido, as pessoas são tão interessantes, que até as quedas e baques, as escorregadas e os tropeções sempre valem a pena. A luz que vejo por toda parte, os esforços simplórios do poeta, as reflexões audaciosas do filósofo, a melodia terna das cantoras, os dribles ágeis dos atletas, o ritmo acelerado dos tambores, os movimentos gráceis da bailarina, o vai-e-vem dos automóveis, o brilho, as cores, os sons de aves, nuvens, tempestades, oceanos, sol e lua, a luz que vejo por toda parte – só isso terá valido a pena!
                Não se preocupem com minha salvação. Eu já fui salvo muitas vezes: no primeiro beijo sob a chuva, na canção sobre a linha do horizonte, nas garatujas com que escrevi aquela frase em grego, no voo inicial da imaginação, na leitura precoce do evangelho e na liberdade de todos os livros que li, reli e desejei ter escrito. De fato, o evangelho, para mim, vai além da estrada, do entreposto em que renovamos as forças para a jornada. Em vez de estalagem ou picadeiro, é um reflexo espelhado na água, essa mesma água que dessedenta, acalma e clareia. Assim, procurei não turvar a fonte. Assim, apenas cedi à paisagem serena e passei a vida observando as dezessete metamorfoses das libélulas.
                Se eu morrer nos próximos cinco anos, não fiquem tristes e só se lembrem de mim quando tiverem vontade de rir ou menear a cabeça. Lembrem-se de mim, à porta da igreja ou na sala de aula. Lembrem-se das piadas tolas, da minha voz desafinada, dos gestos desengonçados, da roupa mal escolhida, dos meus vários dias sem dinheiro, da minha fidelidade a um time de futebol que levou a vida inteira para ganhar um título! Nunca ganhei na loteria, nunca pulei de paraquedas, nunca comi caviar, nunca fui à Disneylândia, nunca andei de camelo! Uma vez levei um tapa por roubar um beijo; outra vez, participei de um jogo de basquete e não fiz nenhuma cesta; outra vez ainda, fui reprovado na audição do coral. Pensem como era improvável a minha felicidade! E, no entanto, estou aqui, dizendo desta felicidade que me enche o coração e quase transborda de tão intensa e difícil de controlar!
               Se eu não morrer nos próximos cinco anos, talvez tenha que reescrever o que falo agora. É que a felicidade não traz consigo os presságios do futuro. E a minha felicidade está para sempre ligada à felicidade daqueles a quem amo. Eu pude suportar quaisquer pequenos dissabores que eu tive que enfrentar, mas não poderia ser feliz se sequer imaginasse que um filho ou filha, a nora, um sobrinho ou sobrinha, um cunhado ou cunhada, um irmão ou irmã, um amigo ou amiga, minha cara metade, tivesse um dia escuro ou um momento insuportável de dor. Então, se eu não morrer nos próximos cinco anos, cuide-se bem. Caso contrário, ao estragar a sua felicidade, você também estragará a minha.