Wednesday, April 20, 2016

Rotas


Milton L. Torres

Não que eu seja um homem-bala; nem, querendo me passar por outro, eu diga que é mansa a minha fala. Não sou nem este, nem aquele. Não sou tanto, nem tão pouco. Sou só isto que vocês veem: talvez tão perdido no espaço, tão desapercebido da vida, tão mal acomodado no tempo, que fico assim, a ver navios. É só por acaso, fatalidade inesperada da indigestão ou da insônia, que me dou conta das coisas. Para mim, a ficha cai num relance, de modo brusco, nunca plenamente. Mas não são só navios que vejo. Estes olhos pequenos, as frestas de luz do meu horizonte, às vezes capturam vultos ameaçadores que se agitam diante de mim ou me roçam os braços, as pernas, o corpo. Se ao menos eu pudesse entender os sinais mudos de sua algazarra paquidérmica...
Tanto movimento, tanta revolta e acrobacia! E eu parado, à deriva, esperando por um desses navios que vejo o tempo todo. O oceano ondula, enquanto a carcaça se agarra à prancha sinuosa, um labirinto após o outro. Subo e desço, como todo mundo, mas com mais vigor, debatendo-me. Se tudo se resumisse a isto, levantaria os braços para o céu e abraçaria as nuvens. Abriria os poros, a boca e o nariz, escancarando a alma e me deixando invadir pela seiva leitosa e sufocante que me afogaria. Não existe comunicação; não é possível a convivência com criaturas de esferas distintas e forasteiras, em rota de colisão. Não sou destas águas e estas algas não são minhas. Não me servem e não lhes sirvo. Nesta situação, somos simplesmente inúteis, incomunicáveis.

Ainda assim, a ruidosa maré fria tem seus próprios planos. As águas continuam a se mover. Elas não param nunca; e eu, embalado por seu mexe-mexe, tão serenamente inquieto quanto sempre fui, vou me aproximando...  Por um momento, chego a antecipar o voo, prevendo que os pêndulos de meu corpo flutuante me forneceriam o impulso para um salto em direção ao sol. Não é preciso. A aflição não dura. Um mar de ódio e, apesar disso, o verde aquoso desse abismo aparentemente sem fim se dissolve e desaparece na imensidão azul do céu, mais volumosa e desmedida. É que o chamado das gaivotas supera o tumulto da ressaca. Não careço de resgate. Há monstros na água, mas são inofensivos, inoperantes. Faltam-lhes as mandíbulas fenomenais que poderiam arrasar minha felicidade. Em meu breve pouso sobre a agitação das águas, divirto-me com as manobras desengonçadas de sua monstruosidade. Seu berreiro nada significa para mim. Já ouvi o canto das gaivotas; já ouvi a voz dos sócios. Estou pronto para voar de novo, sem rota de colisão, nesta imensidade azul. Estou desejoso! Quero voltar para o meu bando. Quero voltar para vocês!