Wednesday, November 15, 2017

A reação do professor


por Milton L. Torres

                Se todos os alunos que eu tiver de agora em diante, até a minha aposentadoria, resolverem me odiar e decidirem me fazer todo tipo de pirraça e desfeita em sala de aula, no cômputo geral, eu direi que fui feliz como professor. O afeto que recebi até hoje dos alunos é avassalador e garante que nenhum complexo de inferioridade me persiga. Posso dizer, de boca cheia, que fui tão amado quanto amei!
                Se você já leu alguma linha que eu tenha escrito no passado, sabe duas coisas: que eu sou meio dramático para falar das minhas experiências como professor e que sou absolutamente sensível ao que se passa na sala de aula, especialmente quando isso afeta os meus alunos. Aliás, considero os momentos da aula como os mais sagrados do dia. Nada me dá mais prazer do que ser testemunha do despertar das mentes jovens para as línguas, a literatura, a filosofia e a vida! Afinal de contas, o que são essas coisas senão a mais autêntica manifestação da existência?
                Se você não entende por que eu estou falando dessas coisas agora, eu explico. Ontem alguns alunos se organizaram para me fazer uma demonstração de carinho, que poderia ter sido uma homenagem por eu ter sido seu professor conselheiro deste semestre, ou pelo fato de meu aniversário ter sido há alguns dias, ou uma despedida do coordenador que deixará a função no final do ano. Não foi nada disso. Foi uma espontânea e, para mim, comovente revelação de carinho. E sabe de uma coisa? Fiquei surpreso, mas não espantado! Não se pode esperar senão carinho de quem é carinhoso. Não se pode esperar senão o máximo de quem é o melhor!
                Se você ainda continua perdido e sem qualquer noção quanto às razões por que estou aqui ruminando e saboreando um momento inesquecível, é porque você não estava lá. Não sabe por que se leem os clássicos, não entende por que é importante encontrar alguém para amar, não veste camisa branca de manga comprida, não entende, não sabe “além da matéria”, nunca lhe disseram “da face da terra”, nunca os alunos o chamaram, em latim, de “arquiteto do próprio destino”, nem de “capitão”, nem de “o cara”! E, possivelmente, nunca nenhum aluno tenha tido a coragem de encará-lo de frente e dizer: - Você é o professor chato mais legal que já passou na nossa vida! Nem deve ter ouvido a palavra FAVORITO no contexto da relação professor-aluno. Pois eu, sim! Eu estive lá! Eu vi com os próprios olhos! Eu ouvi com os meus ouvidos! Eu senti com este coração que bate, mas, às vezes, bate desordenado, skipping a beat!

                Se você ainda não consegue me entender... Eu lamento. Se após se, não é possível iniciar outro parágrafo com a conjunção condicional. Paremos de nos referir às hipóteses e sejamos claros: você não entende muito de educação e não sabe o que é ser professor de alunos excepcionais que entendem das palavras, das línguas, dos livros, dos pensamentos e, principalmente, dos corações! Obrigado, Franklim, Taila, André, Julie, Yuri, Adriane, Ana, Jeyce, Jeynifer, Dri, Emiily, Amanda, Camilla, Agatha e Giovana, os melhores alunos que um professor poderia desejar. É por causa de vocês que posso dizer que tenho o melhor emprego do mundo, melhor do que o estrelato na TV, melhor do que a cátedra das ciências, melhor do que o hub do vale do silicone, melhor do que o bisturi do médico e do que a aquarela do pintor, melhor do que o frenesi da bolsa de valores! Sem dor no estômago, sem noites em claro, sem reservas quanto ao futuro, só com boas emoções, muitas emoções...



Monday, November 13, 2017

Crianças que viajam sozinhas

por Milton L. Torres

Em 2002, tomei um voo em Atenas para Frankfurt, onde faria uma conexão para os Estados Unidos. Ao embarcar, notei um casal choroso que se despedia da filha de uns oito anos de idade que ia tomar o mesmo voo para fazer uma conexão rumo ao Brasil. Sem notar a presença deste outro brasileiro à paisana, conversavam, em português, sobre os riscos de uma criança viajar sozinha. A menina tentava tranquilizar os pais, sacudindo afirmativamente a cabeça para cada conselho recebido.
Depois do embarque, notei que a menina se acomodou em um assento pouco à minha frente. Antes, porém, da decolagem, corri até ela e lhe disse, em português, que, se ela tivesse qualquer dificuldade para se comunicar, podia recorrer a mim, porque eu falava português. Para minha surpresa e satisfação, ela me explicou que, além do português, falava outras línguas, inclusive o inglês. Voltei, portanto, ao meu assento, convencido de que, apesar de tão jovem, a menina de cabelos cacheados tinha desenvoltura suficiente para lidar com a situação sem a minha interferência. No entanto, no meio do voo, o avião foi desviado para a Bulgária porque uma pessoa tivera uma complicação cardíaca. Depois que nosso avião foi invadido pela equipe de resgate e o passageiro foi retirado às pressas e em grave condição, a menina pediu à aeromoça para se sentar ao meu lado. Permanecemos juntos até nos separarmos para nossos respectivos voos.
Até hoje eu me perguntava que impulso me havia levado a procurar a garotinha de Atenas para lhe oferecer minha proteção. Até hoje eu pensava que havia sido meu instinto paternal. Afinal de contas, eu tinha uma filha da mesma idade e isso me havia levado a agir como pai. No entanto, estou agora, neste exato momento, noutro voo, entre Caracas e a Cidade do Panamá, e um garotinho de uns nove anos de idade viaja sozinho, sentado entre mim e uma jornalista venezuelana, que não podia lhe ser mais indiferente. Eu, por outro lado, estou aqui cuidando de todos os detalhes possíveis para que ele tenha um voo confortável e seguro. Aí me dei conta de que não podia ser apenas o instinto paternal agindo. Com os filhos crescidos e nenhum neto à vista, chego à conclusão de que é outra a razão para minha preocupação com crianças que viajam sozinhas. É que sou professor!
Dizem que sou um professor do tipo tradicional e, se isso significa que sou igual ou parecido com os professores que tive ao longo de minha carreira acadêmica, então devo concordar: sou tradicionalíssimo. Os professores que encontrei nas escolas públicas de Minas Gerais, as únicas nas quais estudei até chegar à faculdade, eram responsáveis, exigentes, envolvidos, tinham tutano e substância, foram a melhor influência que tive na minha infância e a principal razão por que escolhi a carreira de professor. No entanto, esses professores são impiedosamente criticados pelos pedagogos de hoje como arrogantes, presunçosos e, acima de tudo, controladores. Não conheço outra profissão que tenha sido tão constantemente difamada quanto a do professor. Sendo assim, não é de admirar que quase ninguém ainda nos respeite, nem mesmo os alunos que convivem conosco e testemunham nossos esforços. A sociedade também decidiu crer naqueles que se levantam para denunciar nossas incapacidades.
Para o avanço da medicina, não foi necessário pichar os médicos. Para o avanço da tecnologia, não foi necessário falar mal dos programadores. No entanto, para o “bem” da educação, não se faz outra coisa senão atacar os professores, seus métodos, sua conduta, seus ideais. Até o adjetivo “tradicional”, de significado tão positivo em outras esferas, foi conspurcado por sua associação com a profissão docente. Não é à toa que estamos nos tornando uma classe sem coração e, o que é pior, sem alma.

Podem me criticar e me diminuir, mas é com uma preocupação como a que tenho com as crianças que viajam sozinhas que entro cada dia na sala de aula. Sou responsável por todas elas. Sinto a sua apreensão e inseguranças. Busco a sua felicidade. Na ausência imediata dos pais, eu me ponho in loco parentis. Por isso, se o avião estiver em perigo, não lhes vou perguntar o que devo fazer. Eu é que vou lhes dizer o que devem fazer. Não espero que me salvem nem que me confortem. Eu é que quero salvá-las e, para salvá-las, peço que confiem em mim, pois, no caso da sala de aula, não sou apenas um passageiro qualquer nem tampouco um tripulante distraído. Eu sou o capitão, com a experiência de trinta e tantos anos de voo. Mas como podem confiar se escutam tantas coisas negativas que se dizem hoje do professor? Por isso, peço que parem com o enxovalhamento dos professores. Parem com as pedradas! Nós só queremos proteger as crianças que viajam sozinhas... Só queremos levá-las, em segurança, ao seu destino.



Monday, November 06, 2017

Como sobre-viver ilesos


por Milton L. Torres

                Carl von Clausewitz foi um militar da Prússia que ajudou a negociar o tratado de paz entre a Rússia, a Prússia e a Grã-Bretanha, o que ajudou essas nações a deter Napoleão Bonaparte. Como homem acostumado à linha de frente, von Clausewitz sabia o que era a guerra. Por isso mesmo, declarou de forma enfática: “se queremos que a mente emirja ilesa dessa luta renhida com o invisível, duas qualidades são indispensáveis: um intelecto que, mesmo na hora mais negra e tenebrosa, consiga reter o brilho da luz interior que o leva à verdade; e a coragem para seguir essa luz tênue aonde quer que ela o leve”. Eu acho que o militar superestimou o poder dessa luz interior. Em nenhuma circunstância, conseguiremos passar incólumes pela vida. E nem deveríamos querer isso. As marcas que carregamos dessa luta nos ajudam a medir o grau de nosso enlouquecimento e a magnitude de nossas realizações. A luz não impede a dor; ela, ao contrário, não faz, em certas ocasiões e só em certas ocasiões, nada mais do que ofuscar os olhos alheios de modo que não consigam discernir que trazemos na alma os hematomas de sangrentos golpes.
                O meu amigo Joubert Castro Perez sabe muito bem o que inventar para sobre-viver! Sobre-viver, com hífen. Entenderam? O que eu mais gosto nele é que ele não faz nenhuma pretensão de possuir essa luz tênue e individual de verdade, embora a tenha! Ele não se faz de medida para medir os outros. Ao contrário disso, ele se apresenta a todos os que o conhecem com as marcas de suas loucuras e realizações. Dá para ver em cada ferida, sem tentativas de ocultação, o quanto tudo isso lhe custou. Dá para ver na carne viva! E quando se vive à flor da pele, a gente consegue sentir, depressa e prontamente, a dor do outro. Daí vem essa sensibilidade sutil e aérea que o Joubert leva a tiracolo, sua tentativa não de esconder ou abafar, mas de elevar o corpo magro à altura protegida das ideias e dos ideais.
                Se quisermos passar ilesos pela vida, a única alternativa que nos resta é a solidão. Mas não foi isso que o Joubert quis. Em vez disso, de vez enquanto, ele se recolhe à companhia do caniço e das iscas. Ali recupera o brilho tênue da verdade e assim continua a nos ofuscar com sua sabedoria despojada e simples, com o sorriso luminoso de quem, em sua complacência, já viveu a vida e sabe o segredo, o segredo arcano que ninguém mais conhece, o enigma que ainda nos intriga. Pois não se enganem: o Joubert sabe das coisas! O Joubert sabe tudo!