Friday, January 27, 2017

O meu amigo Braga disse

por Milton L. Torres

O meu amigo Braga me disse que a gente só precisa de quatro coisas para ser feliz: viver com paixão, praticar o bem, pagar o preço e sentir-se abençoado. Eu acho que eu consigo resumir isso em quatro palavras. O que a gente precisa para fazer essas coisas que ele sugere é paixão, bondade, perseverança e bênção. Para viver com paixão, obviamente a gente precisa de paixão. Para praticar o bem, a gente precisa de bondade. Para pagar o preço que tudo isso exige, a gente precisa de perseverança. Finalmente, para se sentir abençoado, é preciso, antes, receber e aceitar a bênção. Sem querer ser engraçado, concluo que, para ser feliz, a gente precisa de PBPB: paixão, bondade, perseverança e bênção!
A paixão vem do coração; a bondade, da alma; a perseverança, dos músculos; e a bênção, de Deus. Claro que a gente não tem controle sobre essas coisas o tempo todo. O que o meu amigo Braga quis dizer é que a gente tem que ter consciência de que precisa dessas coisas. Por isso, para ser feliz, é necessário estar em paz com o coração, com a alma, com o corpo e com Deus. E essa serenidade não falta ao meu amigo Braga, que aprendeu, a duras penas, a sobreviver com um coração largo, maior do que a envergadura total do corpo, maior do que a boca escancarada, que o crânio grande de homem cerebral e o pulmão ofegante de aventuras. Essa serenidade não lhe falta à alma pura de amigo inveterado, à prova de qualquer traição ou desapontamento, acima de qualquer torpeza ou fracasso. Essa serenidade não lhe falta ao corpo enorme, do tamanho de seus sonhos e ideais. Essa serenidade não lhe falta à fé e à certeza de que religião se vive amando, pregando a Palavra com gestos simples e pequenas atenções, não com retórica artificial e vazia, da boca para fora.
Por isso, creio no meu amigo Braga quando ele me diz que, para ser feliz, eu preciso de paixão, bondade, perseverança e bênção. Ele me mostra como essas coisas fazem a diferença na vida feliz de quem as vive. E é isso exatamente o que quero: mais entusiasmo prazeroso pelas efemérides de meus dias corridos; mais carinho nos relacionamentos, às vezes tão apressados e superficiais; mais elasticidade diante da rejeição sumária, da inveja tão perniciosa a ponto de verter agressões verbais e psicológicas, mais espiritualidade para cumprir a missão de amar, ajudar e inspirar aqueles que, por algum motivo fútil, tenham se alienado das minhas convicções ou das suas próprias.
O meu amigo Braga me disse que a gente só precisa de quatro coisas para ser feliz. Discípulo de Joshua Abraham Norton, imperador dos Estados Unidos da América e protetor do México, ele sabe das coisas. Quatro coisas são necessárias. Por que, então, a gente inventa tanta coisa extra, tantas exigências autoimpostas, tantas desculpas esfarrapadas só para continuarmos infelizes e de cara amarrada? Acho que isso nem o meu amigo Braga, apesar de sábio, pode responder...




Não oramos por amor

por Milton L. Torres

Pedimos a Deus um monte de coisas, mas não oramos por amor. Queremos vida longa, uma conta robusta no banco, uma saúde de ferro, o emprego dos sonhos! Oramos por dinheiro, pelas pessoas, por coisas, por planos, por vontades e fantasias, mas não oramos por amor. Oramos até para que o time de futebol ganhe o campeonato, para passar no teste, para comprar o sapato certo, para sobreviver à cirurgia, para melhorar da doença, para pagar as dívidas, para converter os ateus e pela paz no mundo. Oramos para ter o que comer, mas não oramos por amor.
Se fosse por altruísmo que não orássemos por amor, no desejo de deixá-lo para os mais carentes, os indigentes desprovidos de amor... Se houvesse por aí uma quantidade restrita de amor, limitada, difícil de encontrar como ouro, caviar, lanterna chinesa, jacaré albino ou peixe voador... Se necessitasse muito esforço para arranjar... Se fosse muito longe para buscar, ou muito fundo, ou muito alto... Se fosse pesado demais para carregar, ou muito feio, ou difícil de guardar... Então, eu entenderia por que não oramos por amor!
Mas, não! O amor é lindo e fácil de guardar. Não se compra, nem se vende, mas tem para todo mundo, pois é simples de achar. Hipoteticamente. O difícil do amor é que ele exige compromisso, como uma flor que a gente tem que regar. Todos os dias. Se não, murcha. Se não, morre! E a gente não quer esse trabalho... E, por isso, em vez de orar pelo que seria suficiente para acabar com a maldade e oferecer felicidade, gastamos nossas orações com quilos de coisas e toneladas de ambição, como se Deus atendesse a egoísmos.
Deveríamos orar é por amor, amor para perdoar, para aguentar, para tolerar... Amor para mim, para você, para o outro, o semelhante, para os inimigos, para o mundo. Eu até garanto que, se orássemos pelos inimigos, sinceramente, nem teríamos inimigos, nem úlcera, nem câncer, nem ódio. Seríamos santos, pois, no amor, tudo se cria e nada se perde. Se orássemos por amor, teríamos amor e vida. Se orássemos por amor, seríamos amor e vida.




Uma vez me chamaram de louco

por Milton L. Torres

Uma vez me chamaram de louco, não metaforicamente. Eu sei que a pessoa sabia que eu não sou louco. Mas ela falou sério. Sua intenção era provavelmente desacreditar qualquer coisa que eu tivesse a dizer sobre o que eu estava dizendo. A loucura lhe pareceu o caminho mais curto e direto. Afinal de contas, os loucos não têm mesmo muita credibilidade. Além disso, a pessoa também pode ter tido a intenção de me desestabilizar. Eu já fui chamado de muitas coisas, mas confesso que ser chamado de louco me incomodou. Foi um tijolo a mais na parede quadrada que, às vezes, se erige rápida à nossa frente, contra a nossa vontade e sob os nossos protestos.
Uma vez me chamaram de louco, no sentido de débil mental. Isso é pior do que ser chamado de tolo, inconveniente, mal-educado ou sem noção. Essas outras coisas a gente consegue recuperar, estão ao alcance das mãos, dos braços, das pernas e dos pés. A gente pode agarrá-las ou chegar lá, mas quando a sanidade parece tergiversar, não nos restam muitas opções além da camisa de força e da babugem nojenta que nos escorre pelo rosto.
Incomodar-me com essas coisas é a minha prova de que, apesar da imputação cáustica, não sou louco. Ou melhor, não sou inteiramente louco. Eu me reservo a regalia de, ocasionalmente, contrariar o senso comum, desafiar o mundo e não me render às pressões das opiniões alheias. Se você concorda comigo que, às vezes, precisamos mesmo dessa certeza rebelde de que nossa própria ponderação vale tanto quanto o julgamento do resto do mundo, meio a meio na balança, com 50% de chances de você estar certo e o resto do mundo errado, então posso dizer que você é meio louco, como eu. Mas não desanime – você podia ser chamado de coisas piores: indiferente, alienado, desligado ou insensível; uma pessoa sem opinião, Maria-vai-com-as-outras, essa Maria que também era louca, mãe de D. João VI, incapaz de governar, só podendo sair de casa na companhia dos outros.
Uma vez me chamaram de louco, não metaforicamente. Embora constrangido, pensando bem, chego quase a me conformar. Pode ser que haja aí, de fato, certa verdade. Será que há um lado inofensivamente bom na loucura? O que fazem os loucos? Intercalam desvario e lucidez, criam caso e têm dificuldade de se conformar às expectativas alheias, mas falam com sinceridade. Têm fantasias e assomos de grandeza, mas não sofrem quando contrariados. Não contestam quando acusados, apontados e marcados; em vez disso, retribuem à provocação com sorrisos serenos e francos. É quase como que, mesmo loucos, soubessem de seu valor intrínseco...

Quando me chamaram de louco, foi isto o que eu fiz: agi como louco e simplesmente sorri. Vamos espalhar esta loucura de não revidar às afrontas e insultos? Da próxima vez que o chamarem de louco, ou de qualquer outra coisa, não contraponha argumentos de autodefesa e comiseração. Só ria. Talvez rir seja suficiente para vindicá-lo. Se não for, tudo bem. Há quem diga que o mundo precisa dos loucos.

Tuesday, January 17, 2017

Pretendo viver uma vida longa ou As vantagens de dizer o que se pensa

por Milton L. Torres

                Pretendo viver uma vida longa. Não sei o que você pensa disso, mas eu simplesmente adoro viver. Eu gosto de futebol, sou fã de sorvete, fico horas conversando com alguém que seja bom de papo, não perco nenhuma refeição, paro para admirar o sorriso das pessoas e, principalmente, não abro mão da música. Nada me incomoda: nem o latido do cão, nem o mormaço da tarde, nem a chuva inesperada, nem o canto do grilo, nem a coceira no pé, nem a buzina impaciente, nem o engarrafamento na hora da pressa, nem mesmo as reclamações dos outros. Nunca sofro de dor de cabeça, não tenho falta de ar, nunca padeço de tédio. Tudo, para mim, é diversão: o trabalho, a briga, os estudos, o ócio, a leitura, a hora de lavar os pratos! Está bem, há uma coisa que não coloco na minha lista: exercício físico, se não for para competir.
                Pretendo viver uma vida longa. Não guardo rancor, não fico remoendo os erros, não tenho medo de chutar o balde, não me acomodo com o que sei; porém, digo, logo de cara, o que me limita e, por isso, faço tudo do meu jeito, quer você queira ou não. Se não houver lugar para mim, o problema é seu. Vai perder a companhia! Eu não vou ficar sozinho. Tenho, afinal, esse instinto, faro para encontrar o outro, habilidade para ralar o coco, e o sorriso de uma lata aberta, sem medo, nem remorso! Não ligo para roupa, nem carro, nem smartphone, nem outro badulaque que encha os olhos do habitante comum da cidade. Eu não sou comum, nem troco ouro por espelho.
                Há vantagens na roupa velha e sem grife, pois corta o caminho do cálculo ambicioso, de quem só gosta das roupas e das grifes. Há vantagens em dizer o que se pensa: só se aproximam aqueles que já nos pesaram as palavras e sentiram que estão na mesma maré irresistível que nos puxa para o mar, nos mesmos sonhos alados, aguados, banhados com os raios do sol e com a luz das estrelas, a mesma vocação para o espaço aberto e os mergulhos profundos, sem ar, sem claridade, no meio dos tubarões. Há vantagens em dizer o que se pensa: esvazia-se a garrafa velha, limpa-se o antigo armário, cheio de vestes puídas e fantasias emboloradas, onde a traça corrói e o verme não se cansa nunca. Há vantagens em dizer o que se pensa: adeus, sentimentos sufocantes, lastimosos, comiserações e frustrações molestas!

                Pretendo viver uma vida longa. Não sei o que você pensa disso, mas é isto o que pretendo: setenta, oitenta, noventa, a dentadura no copo, o amparo da bengala, de mãos dadas, sem enxergar direito, tateando, trôpego, olhar morcegal, mas vivo! De pena trêmula na mão, o olhar fixo na página, um sorriso nos lábios e as certezas no coração, que ainda bate e palpita em um brinde à vida. Pretendo viver uma vida longa. Se não der, porém; se não me for possível, porém, alcançar a coroa longeva da minha fortuna, não me lamente! Valeu mais ter vivido feliz até hoje do que apenas projetar uma sombra imóvel e indistinta na parede esburacada do tempo, no tapume encovado de um futuro com o qual só posso sonhar, imaginar e desejar... Quem vive feliz nem precisa, de fato, viver muito, pois não há como viver mais, só viver melhor!

Friday, January 06, 2017

Anjos Desengonçados

por Milton L. Torres

Já sonhou que estava voando? Os braços abertos, as pernas rigidamente impulsionando o voo, como se o céu fosse uma piscina azul e as nuvens boias clandestinas empurrando a imaginação até a próxima parada... Até o pouso? Já se sentiu no palco iluminado, marcando o ritmo da canção, da sua canção, cantada em uníssono por milhares de vozes na plateia, enquanto você aguarda o fim do coro, esperando a sua vez de retomar a melodia, de elevar a voz até o mais agudo tom, antes de receber os aplausos intermináveis daqueles que, extáticos, observam? Já se imaginou invencível, inquebrável, imbatível, indomável, infringível? Já acordou alguma vez, no meio da noite, com o peito encharcado de sonhos e visões além do alcance da memória, além das fabulosas fronteiras da fantasia? Já se viu como o centro de tudo, o vértice de convergência do universo, a ponte invisível e infinita que liga todos os pontos e que atribui sentido à vida, ao prazer, à eternidade? Já sorveu atordoado o néctar inebriante de miragens e poções que vão lá, ao longe do futuro, fora do abraço das mãos, mas perto da boca, dos olhos e do coração?
Quer saber o porquê disso tudo? Somos iguais a anjos! Não estamos aqui para rastejar, nem para imitar o passo lerdo dos bípedes que se amontoam à nossa volta. Deveríamos ruflar as asas e subir, subir, subir, até o sol, até as estrelas, até a escuridão silenciosa e confortante do espaço sideral. Daí, os nossos sonhos de grandeza, a nossa vontade de ser os protagonistas da história universal, esta necessidade que temos de voar, cantar, vencer, sonhar, viver. Somos iguais a anjos! E por que não o fazemos? Por que nos limitamos a seguir, sem pressa, em nenhuma direção? Por que ficamos patinhando e definhando e nos debatendo exaustos no entorpecido lago da insignificância? Sim, somos iguais a anjos, mas anjos desengonçados, atrapalhados, desajeitados e canhestros. Como eles, nós caímos do céu e agora, desconjuntados, nos contentamos em viver a vida terrena dos répteis! Nós nos tornamos reptilianos. Sonhamos como anjos, mas andamos, vivemos e agimos como répteis. À moda das serpentes, o que franqueamos aos outros é peçonha e frieza...

Precisamos recuperar as nossas asas, reconquistar a nossa condição igual a anjos! Eu sei. Você já está pronto para contestar, e protestar e bradar suas objeções religiosas e metafísicas. Não cabe em nossa tradição essa ideia de que seres humanos e angélicos se misturem. Somos só humanos, feitos do pó da terra e condenados à poeira da estrada da vida. Quando erramos, a culpa é dos demônios que nos tentam incessantemente. Quando acertamos, atribuímos qualquer minúsculo e improvável acerto aos astros, ao destino. O nosso princípio mais solícito é, em todo caso, nos eximir sempre e totalmente de qualquer responsabilidade. Mas você não sente a ânsia? Não lhe lateja a vontade de ruflar as asas? Qualquer metafísica que se preste tem que nos dar pelo menos um átimo de esperança! Você crê? Sabe o que faria um anjo? Anjos são ventos e labaredas de fogo, que saem ao encontro das pessoas! O pão dos anjos chega na exata hora da mesquinha fome... Percebe o que nos falta para sermos anjos? Há anjos desengonçados e toscos, e eu quero ser um deles. Quero chegar na hora exata do sofrimento corriqueiro, da dor insuportável, do desespero, da desesperança e da morte. Desjeitoso e pesado, quero sair ao encontro das pessoas... Quero de volta as minhas asas... Quero ser igual aos anjos!

Wednesday, January 04, 2017

Nunca, nunca quebre o coração de um pai


por Milton L. Torres

Você pode partir o coração de qualquer um que tenha coração. Eu lhe dou o meu consentimento explícito. Não me importo. Não poupe o cavaleiro de armas reluzentes, nem os heróis tatuados com serpentes! Não poupe nenhum rapaz que a espere na esquina, nem Débora, Rita, nem Cristina. O nome não importa. Nem o grau da aproximação. Pode ser amigo, colega, parente! Se quiser, saia por aí quebrando corações: de ilustres desconhecidos, de coronéis circunspectos só na aparência, de astronautas em busca de aventura, de atletas risonhos, mas sem compostura, de pianistas hábeis e suaves bailarinas, até do palhaço que solta fogo nas narinas! Mas nunca, nunca quebre o coração de um pai, que um velho coração não suporta, não aguenta esse ai! Não me tire a única esperança de ternura. Não me tome o fio fino e pequenino em que a vida se pendura.
E, quando for tentada, por um capricho passageiro ou deliberada intenção, a quebrar o coração do pai, lembre-se de que basta uma acanhada negligência, um esquecimento sutil (quase imperceptível, quase involuntário), certa sonolenta indiferença, qualquer que seja seu formato, textura ou entretom, para produzir a avalanche que fará brotar a onda avassaladora da minha falência total e irremediável. Afinal, coisas tão velhas quanto um coração de pai não se quebram, espatifam-se, esfarelam-se. Não podem ser coladas nem sofrer reparos. Por isso, cuidado, muito cuidado com um coração de pai! Não me tire a única esperança de sutura, pois só uma filha pode salvar o coração do pai.
Pode me levar um rim. Tome um pulmão e o afogue na piscina, me faça perder uma perna numa mina, me arranque um braço ou corte meio quilo do meu fígado, me fure um olho, me envenene com repolho, me fatie os dedos em tantos segmentos, que até na China se ouçam meus lamentos, me perfure uma mão, me arrebente um colhão, me extraia um dente por dia, me enfie agulhas na unha do dedão do pé, faça como quiser, mas nunca, nunca quebre o coração de um pai, que essa dor não posso suportar. Não me tire a única esperança de doçura; me poupe da tristeza, do desgosto e da loucura.
Pode me deixar imóvel, reduzido ao cárcere. Pode levar todo o meu dinheiro, me tome os livros, as roupas, me deixe de chinelos. Roube o meu humor, a fé, a confiança. Mas não faça ruir os meus castelos, me dê a expectativa, de que quem espera sempre alcança. Você pode fazer tudo isto e muito mais, qualquer coisa, ultraje, pirraça, infâmia ou desfeita, mas me deixe o coração intacto. Não o quebre com martelos, não o faça em farelos! Não me tire a única esperança de alvura; pois o amor de filha é a prata, no branco, da abotoadura.

                Nunca, nunca quebre o coração de um pai!