Fui recentemente entrevistado por uma aluna do curso de jornalismo do UNASP acerca do tema da religião e da cultura. Abaixo seguem suas perguntas e minhas respostas:
1. Os escritores bíblicos usaram
diversos gêneros literários para transmitir a inspiração dada por Deus por meio
do Espírito Santo. Qual o lugar dessas histórias no contexto cultural em que
foram produzidas? Elas eram consideradas histórias tradicionais ou, fazendo uma
comparação contemporânea, estariam mais para uma narrativa como Star wars, quadrinhos da Marvel ou as
tramas de Avenida Brasil (novela da Globo),
por exemplo?
A produção literária dos autores bíblicos teve caráter eventual e não
seriado. O que eu quero dizer com isso é que, ao contrário das novelas atuais e
de outras manifestações da televisão, cinema e mercado editorial de nossa
época, os livros da Bíblia não buscavam qualquer tipo de retorno econômico para
seus autores. Ou seja, o objetivo não era agradar o público, mas transmitir uma
mensagem. Além disso, os autores bíblicos não sobreviviam de sua produção. Não
eram profissionais do entretenimento que ficavam imaginando meios de cativar a
atenção de seus leitores. Pelo contrário, sua mensagem era, até certo ponto,
dura e impopular. De modo geral, eram pessoas comprometidas com a ideia de que
alguma coisa estava errada e precisava ser reparada. Além disso, ao contrário
do que acontece com a televisão e o cinema, que difundem uma ideologia sutil
que vai minando a resistência aos poucos e que procura estabelecer os pontos de
vista de uma classe dominante, a mensagem escriturística, especialmente a da
Bíblia Hebraica, era patentemente subversora do status quo. Portanto, eu diria que não são apenas milhares de anos
que separam a televisão e o cinema da Bíblia, mas um abismo conceitual
impossível de ser transposto.
2. Ainda em relação à forma como as
histórias foram contadas, é correto afirmar que os autores bíblicos usaram os
recursos mais avançados e criativos da época?
Só foi possível que a mensagem do Novo Testamento se espalhasse tão
rapidamente justamente pela razão de os primeiros cristãos terem lançado mão da
tecnologia mais avançada daquela época: o livro. Até o período do Novo
Testamento, os escritos sagrados eram depositados em rolos de difícil manuseio.
O historiador Heródoto, que viveu mais de quatro séculos antes de Cristo, nos
informa que o livro já havia sido inventado em sua época, mas era, apesar
disso, pouco utilizado. Considerações de ordens econômicas impediam seu uso em
larga escala. O livro era feito a partir da pele de animais e, por essa razão,
era necessário o sacrifício de vários carneiros para a produção de um único
exemplar. Como resultado disso, a invenção permaneceu engavetada. O advento do
Cristianismo alterou drasticamente essa situação. Os primeiros cristãos estavam
tão ansiosos em proclamar sua mensagem que não se importaram com o preço da
nova tecnologia e, mesmo enfrentando graves problemas de ordem econômica, passaram
a usar o livro na divulgação do evangelho. Graças ao esforço desinteressado
desses cristãos, o livro acabou popularizado e o Cristianismo recebeu a
denominação de religião do livro. Portanto, eu diria que os primeiros cristãos
foram muito felizes ao lançar mão da mais avançada tecnologia de sua época para
cumprir a missão que lhes havia sido confiada.
3. Do ponto de vista bíblico, é correto
utilizar a indústria cultural para transmitir conceitos bíblicos?
Não existe oposição entre cultura e religião. De fato, a religião é, em
grande medida, uma manifestação da cultura. Eu diria mesmo que é impossível
praticar uma religião sem lançar mão do aparato cultural que lhe dá
sustentação. A Bíblia não se interessa, porém, pelos aspectos idiossincrásicos
da cultura. Por exemplo, pouca coisa há na Bíblia contra a prática da
escravidão, pois a Bíblia não tenta transformar a cultura. Seu objetivo é a
transformação do homem interior. Por isso, quando Onésimo, um escravo fugitivo,
se converteu por causa da pregação de Paulo, ao descobrir sua condição, o
apóstolo o devolveu ao dono com recomendações de que o escravo se tornasse útil
(Fm 11), uma clara solicitação para que Onésimo tivesse permissão de pregar o
evangelho. Ora, se a pregação do evangelho tolerou uma instituição cultural tão
obviamente desumana, não há de se opor à sociedade superficial e leviana. O
próprio Jesus disse que “quem não é contra nós, é por nós” (Mr 9:40; Lc 9:50).
Se Hollywood se dispuser a pregar o evangelho, que se junte a nós. Isso não nos
impedirá, contudo, de continuar denunciando nossa sociedade como um antro de
perdição e suas práticas como perversamente vergonhosas.
4. Ao adaptar histórias de livros para
outros gêneros, talvez para apresentar um conteúdo novo, autores acabam
utilizando a liberdade criativa para explorar trechos da história que não foram
originalmente contados. Isso pode ser mal recebido, como no segundo filme da
trilogia de O Hobbit, ou ser bem
aceito, como a última adaptação de Super-homem
(foi apresentado um super-homem em maturação, com conflitos de identidade). Do
ponto de vista teológico, é possível explorar trechos de relatos bíblicos que
não foram explorados originalmente? Como isso poderia ser feito? Que cuidados,
do ponto de vista bíblico, devem ser tomados?
O sonho de todo
pastor é conseguir explorar, em seu sermão, um aspecto original e interessante
do relato bíblico, algo que consiga emocionar ou convencer seus ouvintes.
Contudo, para alcançar essa finalidade, ele não pode manipular o texto a fim de
fazê-lo dizer o que não diz. Acima de tudo, é preciso manter o espírito em que
as passagens bíblicas foram escritas. Do contrário, não há pregação, mas
entretenimento. O mesmo se aplica aos filmes e livros baseados nas histórias
bíblicas.
5. Há jovens que acreditam que a Igreja tem uma visão retrógrada a respeito da cultura, indicando que a Bíblia não fala sobre não ir ao cinema, por exemplo. Por outro lado, há pessoas que acreditam que a Igreja, ao investir em produtos da indústria cultural como CDs ou produções cinematográficas, está sendo "mundanizada" e inclusive usam textos de Ellen White para isso. Qual seria a posição que você, baseado nas recomendações bíblicas e de Ellen White, considera ideal?
Em João 17:15, Jesus orou pelos discípulos com as
palavras: “não rogo que os tires do mundo, mas que os livres do mal”. Com isso,
Cristo reconheceu que é impossível viver em sociedade sem que nos relacionemos
com ela. Ocasionalmente, assisto a um filme que me tenha sido recomendado por
um amigo ou familiar. Gosto também de assistir, na televisão, aos jogos do meu
time de futebol. Esses momentos em que me desligo das preocupações diárias
funcionam como uma espécie de válvula de escape. Eles me proporcionam a
oportunidade de me esquecer, momentaneamente, da grande luta espiritual que
travamos a cada dia. O que não pode acontecer é me demorar nesse esquecimento.
Estamos no mundo e participamos dele. Apesar disso, não podemos ter prazer no
mal. Não sei por que as pessoas insistem tanto na noção de que a igreja está se
tornando mundana. Isso se deve provavelmente à ideia incorreta de que a igreja
deve ser uma reformadora radical da sociedade. A igreja é de Deus e eu deixo
que Deus se preocupe com ela. A igreja não foi chamada para fazer oposição ao
mundo, mas para transformar o coração das pessoas. Para usar uma imagem já
desgastada pelo tempo, um hospital não faz objeção aos doentes, mas à doença. Se
a igreja romper categoricamente com o mundo, terá prescindido do ambiente no
qual deve realizar sua missão. Há claras declarações bíblicas que apontam para
o triunfo da igreja. Há claras declarações bíblicas que afiançam o amor
incondicional de Deus por Sua igreja. Nossas especulações quanto à condição
mundana da igreja simplesmente traem nossa falta de fé no poder de Deus para
cumprir Seus desígnios ou nossa incredulidade no amor que Ele professa ter por
nós. Minha maior apreensão, portanto, diz respeito a nossa condição espiritual
como indivíduos e não como igreja, pois não há declarações bíblicas que afirmem
que determinada pessoa da igreja vá se salvar. Por exemplo, eu diria que
possuir uma rede de televisão como a Novo Tempo é um fato tão pouco mundano
quanto possuir uma publicadora da qualidade da CPB. As duas instituições se
prestam a nos lembrar continuamente da necessidade de Deus em nossa vida e a
desejar a oferta que Deus nos faz de uma vida verdadeiramente abundante, uma
vida que alcançaremos ou não como indivíduos e não como igreja. O futuro da
igreja já foi decidido por Deus. Resta agora que decidamos se, como indivíduos,
vamos participar dele ou não.