Sunday, October 26, 2014

Entrevista sobre religião e cultura

Fui recentemente entrevistado por uma aluna do curso de jornalismo do UNASP acerca do tema da religião e da cultura. Abaixo seguem suas perguntas e minhas respostas:

1. Os escritores bíblicos usaram diversos gêneros literários para transmitir a inspiração dada por Deus por meio do Espírito Santo. Qual o lugar dessas histórias no contexto cultural em que foram produzidas? Elas eram consideradas histórias tradicionais ou, fazendo uma comparação contemporânea, estariam mais para uma narrativa como Star wars, quadrinhos da Marvel ou as tramas de Avenida Brasil (novela da Globo), por exemplo?

A produção literária dos autores bíblicos teve caráter eventual e não seriado. O que eu quero dizer com isso é que, ao contrário das novelas atuais e de outras manifestações da televisão, cinema e mercado editorial de nossa época, os livros da Bíblia não buscavam qualquer tipo de retorno econômico para seus autores. Ou seja, o objetivo não era agradar o público, mas transmitir uma mensagem. Além disso, os autores bíblicos não sobreviviam de sua produção. Não eram profissionais do entretenimento que ficavam imaginando meios de cativar a atenção de seus leitores. Pelo contrário, sua mensagem era, até certo ponto, dura e impopular. De modo geral, eram pessoas comprometidas com a ideia de que alguma coisa estava errada e precisava ser reparada. Além disso, ao contrário do que acontece com a televisão e o cinema, que difundem uma ideologia sutil que vai minando a resistência aos poucos e que procura estabelecer os pontos de vista de uma classe dominante, a mensagem escriturística, especialmente a da Bíblia Hebraica, era patentemente subversora do status quo. Portanto, eu diria que não são apenas milhares de anos que separam a televisão e o cinema da Bíblia, mas um abismo conceitual impossível de ser transposto.

2. Ainda em relação à forma como as histórias foram contadas, é correto afirmar que os autores bíblicos usaram os recursos mais avançados e criativos da época?

Só foi possível que a mensagem do Novo Testamento se espalhasse tão rapidamente justamente pela razão de os primeiros cristãos terem lançado mão da tecnologia mais avançada daquela época: o livro. Até o período do Novo Testamento, os escritos sagrados eram depositados em rolos de difícil manuseio. O historiador Heródoto, que viveu mais de quatro séculos antes de Cristo, nos informa que o livro já havia sido inventado em sua época, mas era, apesar disso, pouco utilizado. Considerações de ordens econômicas impediam seu uso em larga escala. O livro era feito a partir da pele de animais e, por essa razão, era necessário o sacrifício de vários carneiros para a produção de um único exemplar. Como resultado disso, a invenção permaneceu engavetada. O advento do Cristianismo alterou drasticamente essa situação. Os primeiros cristãos estavam tão ansiosos em proclamar sua mensagem que não se importaram com o preço da nova tecnologia e, mesmo enfrentando graves problemas de ordem econômica, passaram a usar o livro na divulgação do evangelho. Graças ao esforço desinteressado desses cristãos, o livro acabou popularizado e o Cristianismo recebeu a denominação de religião do livro. Portanto, eu diria que os primeiros cristãos foram muito felizes ao lançar mão da mais avançada tecnologia de sua época para cumprir a missão que lhes havia sido confiada.

3. Do ponto de vista bíblico, é correto utilizar a indústria cultural para transmitir conceitos bíblicos?

Não existe oposição entre cultura e religião. De fato, a religião é, em grande medida, uma manifestação da cultura. Eu diria mesmo que é impossível praticar uma religião sem lançar mão do aparato cultural que lhe dá sustentação. A Bíblia não se interessa, porém, pelos aspectos idiossincrásicos da cultura. Por exemplo, pouca coisa há na Bíblia contra a prática da escravidão, pois a Bíblia não tenta transformar a cultura. Seu objetivo é a transformação do homem interior. Por isso, quando Onésimo, um escravo fugitivo, se converteu por causa da pregação de Paulo, ao descobrir sua condição, o apóstolo o devolveu ao dono com recomendações de que o escravo se tornasse útil (Fm 11), uma clara solicitação para que Onésimo tivesse permissão de pregar o evangelho. Ora, se a pregação do evangelho tolerou uma instituição cultural tão obviamente desumana, não há de se opor à sociedade superficial e leviana. O próprio Jesus disse que “quem não é contra nós, é por nós” (Mr 9:40; Lc 9:50). Se Hollywood se dispuser a pregar o evangelho, que se junte a nós. Isso não nos impedirá, contudo, de continuar denunciando nossa sociedade como um antro de perdição e suas práticas como perversamente vergonhosas.

4. Ao adaptar histórias de livros para outros gêneros, talvez para apresentar um conteúdo novo, autores acabam utilizando a liberdade criativa para explorar trechos da história que não foram originalmente contados. Isso pode ser mal recebido, como no segundo filme da trilogia de O Hobbit, ou ser bem aceito, como a última adaptação de Super-homem (foi apresentado um super-homem em maturação, com conflitos de identidade). Do ponto de vista teológico, é possível explorar trechos de relatos bíblicos que não foram explorados originalmente? Como isso poderia ser feito? Que cuidados, do ponto de vista bíblico, devem ser tomados?

O sonho de todo pastor é conseguir explorar, em seu sermão, um aspecto original e interessante do relato bíblico, algo que consiga emocionar ou convencer seus ouvintes. Contudo, para alcançar essa finalidade, ele não pode manipular o texto a fim de fazê-lo dizer o que não diz. Acima de tudo, é preciso manter o espírito em que as passagens bíblicas foram escritas. Do contrário, não há pregação, mas entretenimento. O mesmo se aplica aos filmes e livros baseados nas histórias bíblicas.

5. Há jovens que acreditam que a Igreja tem uma visão retrógrada a respeito da cultura, indicando que a Bíblia não fala sobre não ir ao cinema, por exemplo. Por outro lado, há pessoas que acreditam que a Igreja, ao investir em produtos da indústria cultural como CDs ou produções cinematográficas, está sendo "mundanizada" e inclusive usam textos de Ellen White para isso. Qual seria a posição que você, baseado nas recomendações bíblicas e de Ellen White, considera ideal?


Em João 17:15, Jesus orou pelos discípulos com as palavras: “não rogo que os tires do mundo, mas que os livres do mal”. Com isso, Cristo reconheceu que é impossível viver em sociedade sem que nos relacionemos com ela. Ocasionalmente, assisto a um filme que me tenha sido recomendado por um amigo ou familiar. Gosto também de assistir, na televisão, aos jogos do meu time de futebol. Esses momentos em que me desligo das preocupações diárias funcionam como uma espécie de válvula de escape. Eles me proporcionam a oportunidade de me esquecer, momentaneamente, da grande luta espiritual que travamos a cada dia. O que não pode acontecer é me demorar nesse esquecimento. Estamos no mundo e participamos dele. Apesar disso, não podemos ter prazer no mal. Não sei por que as pessoas insistem tanto na noção de que a igreja está se tornando mundana. Isso se deve provavelmente à ideia incorreta de que a igreja deve ser uma reformadora radical da sociedade. A igreja é de Deus e eu deixo que Deus se preocupe com ela. A igreja não foi chamada para fazer oposição ao mundo, mas para transformar o coração das pessoas. Para usar uma imagem já desgastada pelo tempo, um hospital não faz objeção aos doentes, mas à doença. Se a igreja romper categoricamente com o mundo, terá prescindido do ambiente no qual deve realizar sua missão. Há claras declarações bíblicas que apontam para o triunfo da igreja. Há claras declarações bíblicas que afiançam o amor incondicional de Deus por Sua igreja. Nossas especulações quanto à condição mundana da igreja simplesmente traem nossa falta de fé no poder de Deus para cumprir Seus desígnios ou nossa incredulidade no amor que Ele professa ter por nós. Minha maior apreensão, portanto, diz respeito a nossa condição espiritual como indivíduos e não como igreja, pois não há declarações bíblicas que afirmem que determinada pessoa da igreja vá se salvar. Por exemplo, eu diria que possuir uma rede de televisão como a Novo Tempo é um fato tão pouco mundano quanto possuir uma publicadora da qualidade da CPB. As duas instituições se prestam a nos lembrar continuamente da necessidade de Deus em nossa vida e a desejar a oferta que Deus nos faz de uma vida verdadeiramente abundante, uma vida que alcançaremos ou não como indivíduos e não como igreja. O futuro da igreja já foi decidido por Deus. Resta agora que decidamos se, como indivíduos, vamos participar dele ou não.