Wednesday, April 24, 2019

Sônia

por Milton L. Torres

Como é que eu posso definir a Sônia? A tempestade? A bonança antes da tempestade? O tufão que passa pela vida da gente e não deixa nada no lugar? O vento que sopra suave e nos acaricia o rosto e o coração? Não, ela não era bipolar. De jeito nenhum. Ela era multipolar, pois conseguia assumir vários papéis e funções ao mesmo tempo. Ela conseguia explodir com um e, na mesma hora, virar para o outro com a iluminação de um sorriso franco, acolhedor, transformador. Capaz de arrancar o próprio coração para nos deixar felizes, era também capaz de nos arrancar o coração se a decepcionássemos. Mas, então, depois de alguns minutos, ela nos devolvia o coração amarrado em papel de embrulho da melhor qualidade e um laço vermelho da cor de sua paixão. Junto vinha um bombom, adocicado com os melhores recheios e aromas. Nenhuma relação com a Sônia era simples. Não podia ser, pois ela, no fundo, já sabia o que nos deixaria felizes e não admitia que nossos planos não concordassem com os dela. Eu a comparo a Cassandra, a princesa troiana que tinha o dom da premonição e era capaz de entender e prever as guinadas que aconteceriam na vida das pessoas, mas tinha a desventura de nunca conseguir convencer essas pessoas a seguirem suas advertências e conselhos. Advertências e conselhos tão bons e proveitosos que, se fossem seguidos, levariam à vida perfeita e feliz. A Sônia sabia dessas coisas. Ela já tinha tudo planejado para a vida de cada um de nós, que estávamos mais próximos de sua influência. Já sabia onde moraríamos, de que dentes trataríamos, com quem os solteiros se casariam, onde os estudantes estudariam, como os doentes se curariam, como os infelizes se alegrariam, como deveríamos falar com as pessoas, com o Presidente, com o próprio Deus. Ela sabia. Nunca vacilou em suas convicções. Nunca se deixou convencer a fazer qualquer coisa que seu coração não pedisse, pois ela não tinha estômago, nem intestino, nem pulmão. No lugar dessas coisas, ela só tinha coração e eu deixo a vocês a tarefa de imaginar o tamanho desse coração, se era um coração só, enorme, ou vários corações pequenos que cabiam nos recônditos de seu corpo, e que, às vezes, em alguns dias especiais, lhe saía pela boca espumante e começava a pulsar diante de nossos olhos, o coração inteiro, vibrante, irresistível. Eu conheço poucas pessoas como a Sônia e confesso que, se não a tivesse conhecido, minha vida seria mais solitária e pobre. É possível que alguém aqui presente até se sentisse incomodado com suas constantes demonstrações de preocupação e interesse, como eu me incomodava todas as vezes que ela me visitava e agarrava logo uma vassoura, como se a atividade mais importante de sua vida fosse limpar e varrer e arejar e criar um espaço confortável ao seu redor... para nós. Confesso que, às vezes, eu ficava temeroso de que sua vitalidade fosse tanta, que ela empinasse a vassoura e saísse voando. Pois é. É possível que tanto desprendimento, tanta vitalidade, tanto desejo de marcar a nossa vida... É possível que essas coisas nos tenham incomodado brevemente, em algum momento. É que nunca estivemos inteiramente preparados para viver no mesmo universo da Sônia, um universo cheio de turbilhões e provas incontestáveis de apreço e amor. É que nós nunca estivemos sintonizados na mesma frequência apaixonante de seus arroubos e gestos grandiosos de compaixão, misericórdia e afeto. Não estou dizendo que ela foi perfeita. Seria impossível que uma pessoa tão desproporcional, cujo coração imperava além de todas as outras características, fosse perfeita. Nem estou dizendo que ela era imperfeita, pois seria impossível considerar imperfeito aquilo que transpirava boas intenções e desejo de proximidade e afeição. O que a Sônia se tornou para nós foi uma pessoa extraordinária, que será sempre lembrada, com sorrisos e lágrimas. E ela merece cada um de nossos sorrisos e lágrimas. Ela merece nossa admiração e devoção. Ela agora ocupa um lugar especial na prateleira de heróis desta família. Resta-nos aprender a transcender as palavras literais da Sônia para abraçar seu significado imaterial e simbólico. Não importa o que ela lhe tenha dito. Não importam as palavras exatas que ela usou. O que importa é o espírito com que ela sempre se manifestou, com o coração. O que importa é que nada mais importaria para a Sônia do que sermos todos felizes. O que importa, para Thauan, Thalles, Mauro, Leonor, Ana, Tania, Vania, Mário e todos os cunhados, Taty, Bachega e todos os sobrinhos, Keila, Lúcia e todos os primos, é que honremos a memória da Sônia, imitando-lhe a mesma grandeza de coração, o mesmo desprendimento pelo próximo, a mesma vontade de viver e ser feliz. A Sônia nos ensinou a viver e a morrer. Ela simplesmente nos precede. E, quando chegar a nossa hora, devemos ir com a mesma dignidade e coragem, com a mesma firmeza de decisão em seguir o que o coração nos pede. Se seguirmos seu exemplo, vamos todos nos consolar com a esperança de um reencontro feliz. E ainda que nos falte essa esperança num dia escuro, de chuvas inclementemente frias e desnorteadoras, podemos nos consolar com a lembrança de uma vida absolutamente extraordinária, com a lembrança dos momentos felizes em que a Sônia cuidou de nós ou nos incendiou com um lampejo de sua alegria e vigor. Vamos ser fortes, vamos ser felizes, vamos cuidar uns dos outros, sem nunca desistir, sem que nos arrefeça o ânimo, sem que cedamos ao cansaço ou às justificativas implausíveis. Não podemos decepcioná-la. Ela nos arrancaria o coração se o fizéssemos... A Sônia se vai, mas não a sua memória, não a sua força! Que Deus nos ajude, portanto, a ser fiéis ao seu espírito de amor e dedicação.

O peso dos dias


por Milton L. Torres

O que pesa mais? Um mês ou dez anos? Eu sei que você será tentado a responder, à queima roupa, que o peso de dez anos ultrapassa, em muito, o peso de um simples mês. Por favor, detenha-se. Não se precipite. Há que considerar o que significam esses espaços de tempo. É possível que, no impasse das épocas, a década não se compare ao mês...
De que década falamos? De que década poderíamos falar? A última década? Os dez últimos anos de felicidade ingênua, atalhados por situações de aflição e desapontamento, mas ainda válidos por causa dos carinhos e cuidados, as pequenas e grandes demonstrações de afeto, os prazeres só aparentemente passageiros e medíocres, os sacrifícios em prol de prêmios e recompensas singelas, mas sempre, de alguma forma, gratificantes... Estes dez anos cujo ciclo fechou há um mês: a década de construção, renovação, idas e vindas, débitos e saldos, viagens para perto e para longe, para dentro e para fora, para bodas e celebrações, ou simplesmente para cumprir planos e metas. É essa época que não nos sai da memória, é dela que falamos. Falamos de dez anos de sorriso nos lábios, emoção no peito e esperança à flor da pele. Foram abraços apertados, olhos nos olhos, sempre acessíveis, sempre emparelhados para deixar claro o alcance ilimitado da paixão e da loucura quase infantil de amar com tanta intensidade, até a dor dos ossos. Como poderiam dez anos de presença ser mais leves do que os meros trinta dias que compõem um mês? Talvez você ache que nem precisa ler o resto, pois o peso dessa década arqueada com tantas promessas e sonhos afunda e engole a balança de qualquer avaliação ligeiramente justa ou totalmente imparcial...
Mas espere! De novo, é preciso não se precipitar. Escute de que mês falamos. Atenção para estes trinta longos dias de silêncio e solidão, sem que o telefone toque, sem que se ouça a voz do peito nem se veja a fisionomia familiar. São trinta sofridos dias de reclusão, sorvidos, na penumbra, como se fossem as gotas amargas de uma poção fatal, como se bebêssemos as próprias lágrimas misturadas com fel e vinagre. Falamos da sufocante verificação da falta. Falamos do mês sem, o mês vazio, o mês trôpego dos nossos tropeções e quedas em que resvalamos na tristeza e na dor. Falamos de um mês, abril, que se fechou, como fecha o céu em tempestade, como se fecha a cela dos condenados, sem esperança de indulto ou recuperação. É o peso deste mês que a nossa balança mede e, descalibrada como possa ser, não lhe é facultado dizer outra coisa senão que este mês é o mais pesado de todos os que o antecederam nestes dez, vinte, trinta anos... A balança não mente. Não ousa mentir. Não ousa passar por alto o peso dos corações órfãos deste mês que pesa uma tonelada, mil toneladas.
Nossa década não pode se transformar em mês. Não se reduzirá jamais aos trinta curtos dias de uma fantasia que não podemos conceber. Quem dera pudéssemos! Este mês vai, porém, se transformar em década. E, à medida que seus dias inclementes avançarem, seu peso talvez se esvazie até o tamanho do nada. Talvez! Provavelmente não.