por Milton L. Torres
Talvez você ache estranha a grande quantidade de relatos da
violência praticada no contexto do flerte não correspondido, que nos chega dos
antigos gregos. A própria obra máxima daquela literatura, a Ilíada, tem como premissa o rapto da
belíssima Helena, uma ação tão brutal que gerou a guerra de Troia, combate de
dez longos anos entre gregos e troianos, que Eratóstenes situa entre 1194 e
1184 a.C. Aliás, os antigos gregos contam que Helena foi raptada duas vezes:
uma por Páris e outra por Teseu. E os relatos gregos não param nela, sendo
igualmente famosos, entre tantos outros, os raptos de Ariadne, Antíope e
Hipólita (por Teseu) e Medeia (por Jasão). Sem contar os casos em que a moça
era levada como espólio de guerra ou para consumar um amor consensual proibido
pela família, esses casos nos assustam pelo estatuto heroico dos raptores,
alguns dos quais, como Teseu, por exemplo, parecem não viver para outra coisa,
senão raptar mulheres indefesas.
Um caso que merece menção especial nos é relatado por
Partênio de Niceia, o tutor do grande poeta Virgílio, que, na época de Cristo,
escreveu uma obra poética intitulada Erotiká
pathêmata (“sofrimentos de amor”), na qual narra diversos episódios de amor
não correspondido. Trata-se da história de Apríate, supostamente a primeira mulher
a reagir a uma tentativa de rapto. Apríate vivia na ilha de Lesbos, onde acabou
atraindo a atenção de um rapaz fogoso chamado Trambelo. Diante das constantes
recusas da moça, o rapaz decidiu raptá-la e estuprá-la. Apríate reagiu com
valentia e acabou assassinada pelo rapaz, que lhe jogou o corpo ao mar. Obviamente,
o poeta errou ao incluir essa história em seu catálogo. Afinal, quem ama não destrói
o objeto de seu amor. De qualquer forma, o crime lhe custou a vida nas mãos de
Aquiles, o herói da guerra de Troia. Se a narrativa tem algum cerne de verdade,
a história nos remete à tentativa de estupro ocorrida 1200 anos antes de
Cristo. Em geral, rapto e estupro eram vistos como ações de hybris, invariavelmente punidas, senão
pelos cidadãos, pelo menos por divindades vingativas e pelo destino.
No livro apócrifo conhecido como Atos de Pedro, em um trecho preservado apenas em cóptico, a multidão
recrimina o apóstolo por ter curado inúmeras pessoas, mas ter negligenciado a
própria filha, cujo lado direito do corpo sofria de uma paralisia aparentemente
incurável, que lhe desfigurava o rosto. O apóstolo ora, então, a Deus, e este restaura a
menina à condição anterior de beleza. Logo em seguida, o apóstolo faz outra
prece e a moça torna a ficar com a face paralisada. Ele, então, explica aos
boquiabertos espectadores, que pedira a Deus que desfigurasse a filha, depois
de esta ter sido raptada por um cidadão rico chamado Ptolomeu. Sua intenção era de
preservá-la de novos avanços. No final da narrativa, o ricaço se arrepende e,
antes de morrer, deixa, em testamento, seus bens para a moça, que os repassa à
igreja. Em outro livro apócrifo, a epístola de Tito, que pode ter preservado mais um trecho dos Atos de Pedro, conta-se que um jardineiro pediu a Pedro que lhe abençoasse a filha. O apóstolo orou pela menina, mas ela logo morreu. Inconformado, o jardineiro pediu que o apóstolo orasse de novo. Depois da segunda oração, a menina voltou a viver. No dia seguinte, porém, foi estuprada por um escravo.
As antigas histórias de rapto e estupro se multiplicam, e
parece que os velhos métodos de coibição nunca surtiram efeito, pois continuam
a acontecer atualmente, talvez até em maior proporção. Em 2015, foram cinco
estupros por hora no Brasil, um deles no estado de São Paulo. É impressionante
que os antigos gregos fossem tão adiantados em filosofia, educação, música, medicina,
ciência e política, mas não tenham conseguido impedir que homens tão
inteligentes se comportassem como animais. Mais perto de nossos dias, o
filósofo Nietzsche lamentou, em Assim
falou Zaratustra, que um ente tão sublime quanto o ser humano continue a ser
feio e se pareça com um animal selvagem... Certamente falava só dos homens. Eu
também. É inadmissível que o descontrole de alguns homens continue a obrigar as moças
a viverem vidas desfiguradas na esperança de deter o próximo ataque. Falo
também às autoridades. É inadmissível que continuemos a ser tão coniventes com aqueles
que praticam esse tipo de violência ou qualquer outro. A esse respeito, precisamos
adotar uma política de tolerância zero.