Monday, December 14, 2020

Discurso de Formatura (Cursos de Letras e Tradutor & Intérprete, Classe de 2020)

por Milton L. Torres

 

Chegamos a um momento decisivo de nossa vida. Um ano de formatura. Um ano de pandemia. Um ano de afastamento. Um ano perdido? Não. Eu passei este ano escrevendo poesia, pois este foi um ano de sentimentos, intenso talvez como nenhum outro dos três, quatro anos que vocês passaram nesta Instituição. Separados pela parede erigida na tela do computador, às vezes eu tocava os tijolos duros e secos na esperança de me sentir mais próximo de vocês. A separação mais inafável da história do UNASP, longa, demorada, interminável, sufocante. Mas vocês resistiram a ela com bravura e serenidade.

 

Cinco explicações do que significa a sua formatura para nós professores do UNASP

 

1. Para nós, formar-se significa entrar em forma e vocês entraram em forma, senão física, pelo menos social, intelectual e espiritualmente.

 

2. Formar-se significa adquirir resiliência. Isso quer dizer que, se alguém ou alguma coisa quebrar o seu coração, vocês sempre serão capazes de reconstituí-lo numa forma ainda melhor: mais humano, mais tolerante, mais sábio, mais decidido e, especialmente, mais amoroso.

 

3. Formar-se significa que a história de sua vida está assumindo uma forma: uma forma de sucesso, uma forma de narrativa; não é mais só uma promessa, agora é um enredo completo do qual vocês são os protagonistas, heróis e heroínas.

 

4. Formar-se significa ser capaz de moldar o seu espaço no mundo, na academia, no mercado, na vida. Algumas pessoas são capazes de prever o futuro. Vocês agora farão muito mais do que prever. Vocês serão capazes de moldar o futuro, criando um devir muito mais justo e acolhedor para todos nós.

 

5. Formar-se significa que vocês criaram uma forma geométrica em nossa vida: um círculo ou um cubo que estará doravante sempre vazio, a não ser quando vocês nos visitarem e sua forma preencher o vazio que vocês deixam no UNASP e no nosso coração. E não pensem que alguém que chegue conseguirá preencher esse espaço cardial que lhes pertence de agora em diante e para todo sempre. Temos muito orgulho de vocês!

 

Não gosto de comparar gerações: X, Y, Z. Tudo isso não passa de uma confusão de letras com a qual os que se arrogam o direito de arquitetar o nosso futuro tentam nos impressionar e, por isso, eu lhes peço: não se deixem definir por uma letra. Não acreditem quando estranhos, atrás de uma tela de computador, lhe digam que vocês são isso ou aquilo. Creiam apenas naqueles que lhes olham nos olhos. Creiam em seus pais, familiares e amigos. Creiam em mim! Sua formatura em meio à pandemia foi o desafio supremo que vocês superaram para provar o valor de sua geração: o sangue frio, a determinação, a resiliência. Nenhuma letra pode recuperar essas qualidades. Nenhuma letra pode lhes fazer justiça. Vocês são muito mais do que um apêndice no final do alfabeto. Além disso, vocês não são réplicas fotocopiadas uns dos outros. Cada um de vocês é um tipo diferente de ser humano: espantoso, surpreendente, irresistível.

 

Neste ano de pandemia, eu não fiquei só escrevendo poesia. Eu também li muita poesia. Eu, por exemplo, li toda a antologia poética de Cecília Meireles, graças ao fato de que o Prof. Davi Oliveira me legou alguns de seus livros, os melhores, que agora estão orgulhosamente acomodados na minha biblioteca. Nesses livros, eu escrevi o meu nome logo abaixo do dele. Foi nessa leitura que descobri que Cecília Meireles tem um poema intitulado “Estudantes”. O poema não é todo bom, pois acontece, às vezes, que a inspiração vem de modo desigual. Mas considero instigantes os últimos versos. De fato, pensei em vocês quando os li:

 

nas mãos, com ideogramas de dança,

levantam cadernos, esquadros,

num bailado novo:

e medem a vida

e descrevem o universo.

Que mundo construirão?

 

Obviamente, vocês não mais carregam cadernos e esquadros. Hoje vocês levam celular e mochila. Mas os ideogramas de dança são os mesmos, o bailado continua novo e vocês continuam medindo a vida e descrevendo o universo. Eu não sei exatamente o que Cecília Meireles quis dizer com esses versos. Tenho algumas ideias, mas não tenho nenhuma certeza definitiva quanto aos seus significados. Porém, eu sei o que eu quero dizer quando elejo esses mesmos versos como desculpa para abrir o coração para vocês, aqui, diante de tantas pessoas conhecidas e desconhecidas. Os ideogramas de dança e o bailado novo representam o modo como vocês são capazes de criar um ambiente festivo nesta escola e na nossa vida. Eu tenho pena dos professores cuja única experiência se resume à comunicação tele-apática das aulas síncronas. Eles nunca vão saborear o elemento festivo que sua presença cria diante dos nossos olhos arregalados e de nosso rosto boquiaberto: a luz, o brilho, a vida, o amor. Esses elementos festivos que vocês acrescentaram à minha vida nestes últimos três ou quatro anos me deram coragem para continuar vivendo e enfrentando os obstáculos que arrastam a educação para horizontes cada vez mais distantes do ideal primitivo da verdadeira formação humana. Assim como chegou a vez do Prof. Davi, de quem vocês foram a última turma, e da Prof. Sônia Mastrocola e da Profa. Tânia Siqueira e da Profa. Ana Schäffer e do Prof. Joubert Perez, desejo que, quando chegar a minha vez, eu tenha a fortuna de me despedir de uma turma que tenha uma noção ao menos pálida do afeto, respeito e consideração com os quais vocês brindaram os educadores que passaram por seu caminho nestes anos de convívio. Nós podemos ter-lhes ensinado as letras, os sons, as traduções, essas bagatelas com que tentamos impressioná-los nas nossas aulas, mas vocês nos impressionaram muito mais com seus olhinhos atentos e brilhantes, sua ingenuidade nem sempre delicada, sua docilidade inesperada, sua espontaneidade e irreversível flexibilidade diante dos problemas e desafios, sua capacidade de construir portas, saídas, esconderijos, pontos de encontro, naves espaciais, jardins floridos e mil e duzentos outros elixires e poções tonificantes. Sim, sua capacidade de construir o que não conseguimos mais. Cecília Meireles, no último verso de seu poema, indagou: “Que mundo construirão?” Eu não tenho a menor ideia... Eu não sei que mundo é esse que vocês vão construir... Mas de uma coisa eu sei: se forem vocês as construtoras e os construtores, se vocês estiverem nesse mundo, eu também quero estar nele. Vocês são o que há de melhor no mundo de hoje e, se forem vocês a construírem o mundo de amanhã, os ideogramas da nossa dança continuarão empolgantes, o nosso bailado vai continuar novo e vamos continuar medindo a vida pelo ritmo universal do coração. Agradeço a Deus por vocês fazerem parte de nossa vida e peço a Ele que os conduza na jornada que vocês estão prestes a iniciar, pois hoje não é um fim, nem mesmo um final feliz. Hoje é um início, um início feliz!





Thursday, May 21, 2020

Oração pelos Hóspedes do CEVISA



por Milton L. Torres
(Inspirada na oração feita por Tina Fey, em Bossypants)

Em primeiro lugar, Senhor, peço que lhes conceda a ternura de Jesus, para enfrentar a vida, a convivência com as pessoas, o trabalho, a doença, o amor, as tragédias, o sucesso, e tudo o mais que acontecer com eles ou ao redor deles.

Peço, então, Senhor, que os guies e protejas: ao cruzar a rua, embarcar em qualquer meio de transporte (principalmente o metrô), nadar no mar, lagoas, rios, piscinas e até em poças d’água, ao atravessar a Avenida Paulista (ou qualquer outra), ao usar o banheiro do shopping, ao subir ou descer da escada rolante, ao dirigir em estradas desertas, ao encostar nas coisas (especialmente as de vidro, as cheias de graxa, ou que contenham azeite fervendo), ao caminhar em estacionamentos vazios, andar de ferry-boat, montanhas russas, tobogãs ou toboáguas, e em qualquer outra atração dos parques de diversão ou da vida, ao olhar de cima da sacada, para qualquer direção, em qualquer lugar ou em qualquer época!

Livra-os, Senhor, da profissão errada. Não deixes que sejam atores, cantores, nem políticos! Mas, se já o forem, sustenta os primeiros e perdoa os outros! Porém, que ninguém que aqui se hospede se preocupe demais com o dinheiro, mesmo porque não é barato! Concede-lhes, bom Deus, um trabalho que lhes proporcione realização sem fazer com que adoeçam e morram. E um pedido especial: livra as mulheres dos saltos altos e os homens do paletó e gravata!

Que o coração desses hóspedes tiquetaqueie seguindo o ritmo do Teu próprio coração. Dá-lhes o tutano e a força dos Teus próprios braços. Ó Senhor, que eles nunca encontrem o sinal do wi-fi e que a internet nunca seja sua maior prioridade! Mas, se por um acaso, conseguirem se conectar, que não seja para ouvir ou espalhar comentários racistas, cheios de ódio e preconceituosos.

E, Senhor, se um dia decidirem ser pais ou mães, dá-lhes a Tua visão e paciência para que saibam amar os filhos e filhas assim como Tu nos amas a todos e nos perdoas de tudo, até do imperdoável! E àqueles que já são pais e mães, Senhor, dá-lhes a resignação de amar sem exigências, de sofrer sem se desesperar, de orar, com todo fervor e a maior devoção, pelos filhos queridos, mesmo quando não o merecem e, especialmente, quando não o merecem.

Àqueles que ainda buscam uma cara metade, que não lhes seja custoso encontrá-la! Que possa vir cedo em sua vida, para que sempre saibam, sintam e todo dia se surpreendam, do fundo do coração, que amam alguém e que também são amados. Aos que já encontraram essa pessoa arrebatadora com a qual dividir a vida, que não se esqueçam, sequer por um momento, de que o amor é maravilhoso e de que nada pode se comparar com o afeto genuíno de quem está ao nosso lado e, principalmente, do nosso lado, para o que der e vier, até para o que nunca deu ou virá, sem condições, sem hesitação e sem arrependimentos, a não ser o de hoje, o desta hora, que possa ser facilmente redimido com um afago.

Senhor, dá-lhes saúde e uma vida longa, cheia de momentos felizes e sorrisos sinceros, cheia de olhares cúmplices e admirados, imaginativa além da imaginação, sonhadora além dos sonhos mais impossíveis, feliz além da felicidade. E, quando chegar a pior hora de todas, que a mão seja firme; o olhar, resoluto; a mente, lúcida; o coração, forte! Que o fim seja um mero começo, banhado em lágrimas de saudade e esperança! Amém!





Bolas de Golfe

por Milton L. Torres



Entre 1998 e o ano 2000, eu morei em frente a um campo de golfe. Isso me deu a oportunidade de catar várias bolas de golfe que teimavam em se extraviar de seu destino pretendido e pousavam no meu quintal como aves cansadas. Nem sempre aqueles que as lançavam naquela direção vinham reclamá-las. Talvez pensassem que não valia a pena atravessar a rua movimentada para tentar recuperar o que haviam perdido. As bolas de golfe variavam em cores, principalmente brancas, vermelhas e amarelas, mas eram de tamanho uniforme, pois aquilo podia acontecer com qualquer uma. Algumas se perdiam em seu primeiro voo e pareciam imaculadamente perfeitas. Outras traziam as marcas das tacadas da vida e apresentavam pequenas deformações. Ainda outras vinham manchadas ou sujas. Além disso, em geral, continham um número, de zero a cinco.
Eu nunca me interessei pelo golfe e confesso que não compreendo a razão dos números, das cores e outras características peculiares às minhas amigas esféricas. Apesar disso, eu guardei aquelas bolas de golfe e elas me acompanham há quase 20 anos. Conservo-as em casa, em um balaio de vime, que vem resistindo bem à passagem do tempo. Nem sei explicar exatamente por que conservo essas lembranças de um tempo que veio e se foi. Não sofro de nenhuma nostalgia inexplicável por não mais morar em frente ao campo de golfe e sua paisagem sedativa.
O que sei é que esses globos em miniatura passaram a fazer parte da minha vida e que, toda vez que olho para eles, me ensinam a mesma lição: os relacionamentos são esféricos e sem alças. Não há como nos apegarmos a eles pela bruta força de mãos e braços. Em sua circularidade quase perfeita, os relacionamentos nos exigem investimentos cíclicos e recorrentes. Como as bolas de golfe, lançamos nossas emoções em vários sentidos e direções. Como resultado dessa audácia, essas emoções e os relacionamentos aos quais se filiam acabam se comportando como as pelotas coloridas do meu balaio de vime. Ao sofrerem as tacadas da vida, em seu voo primeiro ou enésimo, acabam sujas, manchadas, deformadas. Extraviam-se e se perdem. Para recuperá-las, é necessário transpor não apenas uma rua movimentada, mas o fosso profundo que se interpõe entre nós e as pessoas amadas ou toleradas.
Nunca tentei consertar as bolas de golfe do meu balaio de vime. Mas não acho que seja possível desentortá-las, nem lhes eliminar as manchas. O máximo que fiz foi lavá-las para conservá-las limpas e apresentáveis, uma espécie de maquiagem postiça a fim de atenuar as cicatrizes profundas de golpes e colisões. No final das contas, após anos e anos de convivência com os equívocos redondos de meus relacionamentos, esse balaio de gatos em que se transformou o meu coração, concluí que é inevitável sofrer com marcas e manchas. Descobri, porém, que há uma razão existencial por que as bolas de golfe são numeradas. Esses números sugerem nossas prioridades. A prioridade “zero” são os relacionamentos efêmeros aos quais nunca deveríamos dar o poder de nos magoar. A prioridade “cinco” são os relacionamentos periféricos, insignificantes, que não conseguiriam nos magoar mesmo que tentassem. A prioridade “dois” são os relacionamentos secundários, que não são importantes o bastante para requerer sacrifícios e esforços múltiplos de manutenção. Entretanto, há a prioridade “um”, aqueles relacionamentos sem os quais seria impossível continuar a vida como a conhecemos e desejamos. No caso dessas bolas de golfe número 1, por elas vale a pena atravessar a movimentada rua do tempo, em que um calendário autoritário ou um relógio arrogante, como automóveis desgovernados, nos ameaçam os gestos e as afeições. Por elas, vale a pena cruzar o fosso das mágoas, por mais profundo que seja. Vale a pena correr todos os riscos, inclusive o da vulnerabilidade. Vale a pena fazer sacrifícios e imolações, apesar das manchas e cicatrizes. Vale a pena recuperá-las para impedir que vão parar em um balaio de vime, em um canto qualquer e, em vez disto, acomodá-las majestosa e intencionalmente no trono do nosso coração, à vista de todos, à vista de Deus.




Monday, January 06, 2020

Carta a mim mesmo, direto da cápsula do tempo

Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus Cristo. Carta a mim mesmo.
               Este é um lembrete, na passagem de ano, de que meio século de existência pode me tornar mais forte do que o tempo, a gravidade, a decrepitude e outras forças implacáveis que corroem o vigor físico, o ritmo cardíaco da vida e a agilidade mental. Tento me convencer de que preciso apenas da atitude certa: a de reconhecer, nas pequenas coisas, que não é a duração da vida que me faz feliz. Ao contrário disso, é a felicidade que me dá vida. E como não ser feliz? Eu posso até deter o tempo, por alguns minutos, com a simples lembrança das coisas formidáveis que me sucederam: as viagens, quer aquelas empreendidas nos meios convencionais de transporte, quer as da minha imaginação, que me levou mais longe e mais rápido do que qualquer foguete que já existiu ou existirá. Os livros (de capa a capa), os poemas (de Homero, Bukowski), as línguas (principalmente o grego), essa fortuna que eu ajuntei por uma bagatela. Eu posso superar o peso da gravidade com a leveza de um coração aberto, sensível, esperançoso... Diálogos, conversas ao telefone, emails recebidos e armazenados em uma pasta intitulada “mensagens memoráveis”. Posso rejuvenescer com a recordação de beijos, abraços e cópulas, e com a expectativa de mais beijos, abraços e cópulas. Além disso, com uma experiência que nunca consegui decifrar, nem no todo nem em parte: a conexão cerebral, visceral entre professor e aluno. Venço a morte, a cada dia, com a lembrança desses prazeres ingênuos, o quarto gol já no final do segundo tempo; a prece desinteressada em favor do outro; os pequenos sacrifícios; os afagos incondicionais de um cãozinho que, no que diz respeito aos demais seres do planeta, não passa de uma criatura mal-humorada e tão indiferente quanto um gato, mas que se desmancha de satisfação ao som de minha voz; a alegria na realização dos filhos, sobrinhos, parentes próximos e distantes; os encontros inesperados; letra e música; vislumbres do futuro e, principalmente, do passado; aspirações... Não há, então, motivos para estar triste, mesmo no último dia do ano, mesmo aos 52 anos de idade.




Carta aos filhos, direto da cápsula do tempo

               Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus Cristo. Carta aos filhos, sendo um deles casado e a outra solteira, estando ambos no começo de sua vida adulta e independente ou a ponto de iniciá-la.
               Não escolho a música ao som da qual vocês dançam. Não mais. Não escrevo o roteiro de suas histórias nem o itinerário de suas viagens. Nunca o fiz; apenas ensaiava fazê-lo. Vocês estão agora à mercê das próprias escolhas. A responsabilidade de cada decisão é, agora, inteiramente sua, com uma pequena pitada do tempero que adicionamos ou deixamos de adicionar à sopa de suas vidas. Até aqui, vocês foram perfeitamente imperfeitos – e nunca o teríamos desejado de outra forma: autênticos, autônomos, audaciosos. Ainda assim, em todas as situações, conviver com vocês foi como estar às margens de um lago plácido, sem ondas, nem ventos, mas profundo, hipnótico, tranquilizador.
               Poucas vezes talvez se tenha escutado um pai dizer que tenha encontrado almas gêmeas nos filhos, essa prerrogativa estando geralmente reservada aos grandes amores, os romances que fazem o coração se apressar, dando-lhe a impressão de que o tempo passa mais depressa do que gostaríamos, ou que tiram a força das pernas, fazendo com que amoleçam sob o peso do desejo e da paixão. No entanto, em nosso caso, os sentimentos são outros. É como se minha alma tivesse se fendido, uma fração de virtudes e defeitos passando a cada um de vocês, numa imagem ou, sequer isso, num reflexo. É como se vocês tivessem tomado essa figura grotesca e tivessem soprado sobre ela uma espécie de purpurina espantosa, capaz de redimir a caricatura e transformá-la em um quadro elegante. Vocês fizeram isso com a minha vida e, por isso, eu lhes sou grato.
Outra pessoa, menos avisada das coisas do coração, quem sabe interprete o fenômeno como um azar da hereditariedade, um capricho dos cromossomos. Mas eu sei que não. Nenhuma combinação genética em meus ascendentes, esses antepassados que vocês pouco ou mal conheceram, poderia ter lhes legado um coração tão generoso, uma mente tão lúcida, um senso de justiça impregnado de tão boas intenções, um desejo tão ardente de existir ainda que simplesmente e uma atitude tão respeitosa para com os mistérios humanos e divinos.

Vocês estão, hoje, onde deveriam estar. Eu não teria ido mais longe e não estaria tão satisfeito se vocês tivessem alterado, de forma mínima, seu percurso, acidental ou intencionalmente. No entanto, algum imprevisto talvez atravesse, algum dia, o seu caminho: uma decepção, um fracasso, uma indecisão, uma fraqueza ou desespero. Se isso, por acaso, vier a acontecer, talvez eu não esteja presente para lhes dizer o que direi agora. Portanto, lembrem-se bem, façam disso uma recordação a ser guardada na caixa-forte de seu coração: seu sucesso como pessoas, para os seus pais, depende menos do que vocês conseguirem conquistar na vida e mais do que vocês conseguirem fazer um pelo outro, por seus filhos e familiares, e pelos corações que Deus colocar ao alcance de seu toque. De qualquer forma, não tenho receios: eu sei que vocês saberão o que fazer, mesmo que eu não esteja lá para observá-los. Eu sei que vocês saberão o que fazer na proporção mesma em que sabem que são amados. E isso eu posso garantir: vocês são e sempre serão amados...