Monday, December 14, 2020

Discurso de Formatura (Cursos de Letras e Tradutor & Intérprete, Classe de 2020)

por Milton L. Torres

 

Chegamos a um momento decisivo de nossa vida. Um ano de formatura. Um ano de pandemia. Um ano de afastamento. Um ano perdido? Não. Eu passei este ano escrevendo poesia, pois este foi um ano de sentimentos, intenso talvez como nenhum outro dos três, quatro anos que vocês passaram nesta Instituição. Separados pela parede erigida na tela do computador, às vezes eu tocava os tijolos duros e secos na esperança de me sentir mais próximo de vocês. A separação mais inafável da história do UNASP, longa, demorada, interminável, sufocante. Mas vocês resistiram a ela com bravura e serenidade.

 

Cinco explicações do que significa a sua formatura para nós professores do UNASP

 

1. Para nós, formar-se significa entrar em forma e vocês entraram em forma, senão física, pelo menos social, intelectual e espiritualmente.

 

2. Formar-se significa adquirir resiliência. Isso quer dizer que, se alguém ou alguma coisa quebrar o seu coração, vocês sempre serão capazes de reconstituí-lo numa forma ainda melhor: mais humano, mais tolerante, mais sábio, mais decidido e, especialmente, mais amoroso.

 

3. Formar-se significa que a história de sua vida está assumindo uma forma: uma forma de sucesso, uma forma de narrativa; não é mais só uma promessa, agora é um enredo completo do qual vocês são os protagonistas, heróis e heroínas.

 

4. Formar-se significa ser capaz de moldar o seu espaço no mundo, na academia, no mercado, na vida. Algumas pessoas são capazes de prever o futuro. Vocês agora farão muito mais do que prever. Vocês serão capazes de moldar o futuro, criando um devir muito mais justo e acolhedor para todos nós.

 

5. Formar-se significa que vocês criaram uma forma geométrica em nossa vida: um círculo ou um cubo que estará doravante sempre vazio, a não ser quando vocês nos visitarem e sua forma preencher o vazio que vocês deixam no UNASP e no nosso coração. E não pensem que alguém que chegue conseguirá preencher esse espaço cardial que lhes pertence de agora em diante e para todo sempre. Temos muito orgulho de vocês!

 

Não gosto de comparar gerações: X, Y, Z. Tudo isso não passa de uma confusão de letras com a qual os que se arrogam o direito de arquitetar o nosso futuro tentam nos impressionar e, por isso, eu lhes peço: não se deixem definir por uma letra. Não acreditem quando estranhos, atrás de uma tela de computador, lhe digam que vocês são isso ou aquilo. Creiam apenas naqueles que lhes olham nos olhos. Creiam em seus pais, familiares e amigos. Creiam em mim! Sua formatura em meio à pandemia foi o desafio supremo que vocês superaram para provar o valor de sua geração: o sangue frio, a determinação, a resiliência. Nenhuma letra pode recuperar essas qualidades. Nenhuma letra pode lhes fazer justiça. Vocês são muito mais do que um apêndice no final do alfabeto. Além disso, vocês não são réplicas fotocopiadas uns dos outros. Cada um de vocês é um tipo diferente de ser humano: espantoso, surpreendente, irresistível.

 

Neste ano de pandemia, eu não fiquei só escrevendo poesia. Eu também li muita poesia. Eu, por exemplo, li toda a antologia poética de Cecília Meireles, graças ao fato de que o Prof. Davi Oliveira me legou alguns de seus livros, os melhores, que agora estão orgulhosamente acomodados na minha biblioteca. Nesses livros, eu escrevi o meu nome logo abaixo do dele. Foi nessa leitura que descobri que Cecília Meireles tem um poema intitulado “Estudantes”. O poema não é todo bom, pois acontece, às vezes, que a inspiração vem de modo desigual. Mas considero instigantes os últimos versos. De fato, pensei em vocês quando os li:

 

nas mãos, com ideogramas de dança,

levantam cadernos, esquadros,

num bailado novo:

e medem a vida

e descrevem o universo.

Que mundo construirão?

 

Obviamente, vocês não mais carregam cadernos e esquadros. Hoje vocês levam celular e mochila. Mas os ideogramas de dança são os mesmos, o bailado continua novo e vocês continuam medindo a vida e descrevendo o universo. Eu não sei exatamente o que Cecília Meireles quis dizer com esses versos. Tenho algumas ideias, mas não tenho nenhuma certeza definitiva quanto aos seus significados. Porém, eu sei o que eu quero dizer quando elejo esses mesmos versos como desculpa para abrir o coração para vocês, aqui, diante de tantas pessoas conhecidas e desconhecidas. Os ideogramas de dança e o bailado novo representam o modo como vocês são capazes de criar um ambiente festivo nesta escola e na nossa vida. Eu tenho pena dos professores cuja única experiência se resume à comunicação tele-apática das aulas síncronas. Eles nunca vão saborear o elemento festivo que sua presença cria diante dos nossos olhos arregalados e de nosso rosto boquiaberto: a luz, o brilho, a vida, o amor. Esses elementos festivos que vocês acrescentaram à minha vida nestes últimos três ou quatro anos me deram coragem para continuar vivendo e enfrentando os obstáculos que arrastam a educação para horizontes cada vez mais distantes do ideal primitivo da verdadeira formação humana. Assim como chegou a vez do Prof. Davi, de quem vocês foram a última turma, e da Prof. Sônia Mastrocola e da Profa. Tânia Siqueira e da Profa. Ana Schäffer e do Prof. Joubert Perez, desejo que, quando chegar a minha vez, eu tenha a fortuna de me despedir de uma turma que tenha uma noção ao menos pálida do afeto, respeito e consideração com os quais vocês brindaram os educadores que passaram por seu caminho nestes anos de convívio. Nós podemos ter-lhes ensinado as letras, os sons, as traduções, essas bagatelas com que tentamos impressioná-los nas nossas aulas, mas vocês nos impressionaram muito mais com seus olhinhos atentos e brilhantes, sua ingenuidade nem sempre delicada, sua docilidade inesperada, sua espontaneidade e irreversível flexibilidade diante dos problemas e desafios, sua capacidade de construir portas, saídas, esconderijos, pontos de encontro, naves espaciais, jardins floridos e mil e duzentos outros elixires e poções tonificantes. Sim, sua capacidade de construir o que não conseguimos mais. Cecília Meireles, no último verso de seu poema, indagou: “Que mundo construirão?” Eu não tenho a menor ideia... Eu não sei que mundo é esse que vocês vão construir... Mas de uma coisa eu sei: se forem vocês as construtoras e os construtores, se vocês estiverem nesse mundo, eu também quero estar nele. Vocês são o que há de melhor no mundo de hoje e, se forem vocês a construírem o mundo de amanhã, os ideogramas da nossa dança continuarão empolgantes, o nosso bailado vai continuar novo e vamos continuar medindo a vida pelo ritmo universal do coração. Agradeço a Deus por vocês fazerem parte de nossa vida e peço a Ele que os conduza na jornada que vocês estão prestes a iniciar, pois hoje não é um fim, nem mesmo um final feliz. Hoje é um início, um início feliz!





Thursday, May 21, 2020

Oração pelos Hóspedes do CEVISA



por Milton L. Torres
(Inspirada na oração feita por Tina Fey, em Bossypants)

Em primeiro lugar, Senhor, peço que lhes conceda a ternura de Jesus, para enfrentar a vida, a convivência com as pessoas, o trabalho, a doença, o amor, as tragédias, o sucesso, e tudo o mais que acontecer com eles ou ao redor deles.

Peço, então, Senhor, que os guies e protejas: ao cruzar a rua, embarcar em qualquer meio de transporte (principalmente o metrô), nadar no mar, lagoas, rios, piscinas e até em poças d’água, ao atravessar a Avenida Paulista (ou qualquer outra), ao usar o banheiro do shopping, ao subir ou descer da escada rolante, ao dirigir em estradas desertas, ao encostar nas coisas (especialmente as de vidro, as cheias de graxa, ou que contenham azeite fervendo), ao caminhar em estacionamentos vazios, andar de ferry-boat, montanhas russas, tobogãs ou toboáguas, e em qualquer outra atração dos parques de diversão ou da vida, ao olhar de cima da sacada, para qualquer direção, em qualquer lugar ou em qualquer época!

Livra-os, Senhor, da profissão errada. Não deixes que sejam atores, cantores, nem políticos! Mas, se já o forem, sustenta os primeiros e perdoa os outros! Porém, que ninguém que aqui se hospede se preocupe demais com o dinheiro, mesmo porque não é barato! Concede-lhes, bom Deus, um trabalho que lhes proporcione realização sem fazer com que adoeçam e morram. E um pedido especial: livra as mulheres dos saltos altos e os homens do paletó e gravata!

Que o coração desses hóspedes tiquetaqueie seguindo o ritmo do Teu próprio coração. Dá-lhes o tutano e a força dos Teus próprios braços. Ó Senhor, que eles nunca encontrem o sinal do wi-fi e que a internet nunca seja sua maior prioridade! Mas, se por um acaso, conseguirem se conectar, que não seja para ouvir ou espalhar comentários racistas, cheios de ódio e preconceituosos.

E, Senhor, se um dia decidirem ser pais ou mães, dá-lhes a Tua visão e paciência para que saibam amar os filhos e filhas assim como Tu nos amas a todos e nos perdoas de tudo, até do imperdoável! E àqueles que já são pais e mães, Senhor, dá-lhes a resignação de amar sem exigências, de sofrer sem se desesperar, de orar, com todo fervor e a maior devoção, pelos filhos queridos, mesmo quando não o merecem e, especialmente, quando não o merecem.

Àqueles que ainda buscam uma cara metade, que não lhes seja custoso encontrá-la! Que possa vir cedo em sua vida, para que sempre saibam, sintam e todo dia se surpreendam, do fundo do coração, que amam alguém e que também são amados. Aos que já encontraram essa pessoa arrebatadora com a qual dividir a vida, que não se esqueçam, sequer por um momento, de que o amor é maravilhoso e de que nada pode se comparar com o afeto genuíno de quem está ao nosso lado e, principalmente, do nosso lado, para o que der e vier, até para o que nunca deu ou virá, sem condições, sem hesitação e sem arrependimentos, a não ser o de hoje, o desta hora, que possa ser facilmente redimido com um afago.

Senhor, dá-lhes saúde e uma vida longa, cheia de momentos felizes e sorrisos sinceros, cheia de olhares cúmplices e admirados, imaginativa além da imaginação, sonhadora além dos sonhos mais impossíveis, feliz além da felicidade. E, quando chegar a pior hora de todas, que a mão seja firme; o olhar, resoluto; a mente, lúcida; o coração, forte! Que o fim seja um mero começo, banhado em lágrimas de saudade e esperança! Amém!





Bolas de Golfe

por Milton L. Torres



Entre 1998 e o ano 2000, eu morei em frente a um campo de golfe. Isso me deu a oportunidade de catar várias bolas de golfe que teimavam em se extraviar de seu destino pretendido e pousavam no meu quintal como aves cansadas. Nem sempre aqueles que as lançavam naquela direção vinham reclamá-las. Talvez pensassem que não valia a pena atravessar a rua movimentada para tentar recuperar o que haviam perdido. As bolas de golfe variavam em cores, principalmente brancas, vermelhas e amarelas, mas eram de tamanho uniforme, pois aquilo podia acontecer com qualquer uma. Algumas se perdiam em seu primeiro voo e pareciam imaculadamente perfeitas. Outras traziam as marcas das tacadas da vida e apresentavam pequenas deformações. Ainda outras vinham manchadas ou sujas. Além disso, em geral, continham um número, de zero a cinco.
Eu nunca me interessei pelo golfe e confesso que não compreendo a razão dos números, das cores e outras características peculiares às minhas amigas esféricas. Apesar disso, eu guardei aquelas bolas de golfe e elas me acompanham há quase 20 anos. Conservo-as em casa, em um balaio de vime, que vem resistindo bem à passagem do tempo. Nem sei explicar exatamente por que conservo essas lembranças de um tempo que veio e se foi. Não sofro de nenhuma nostalgia inexplicável por não mais morar em frente ao campo de golfe e sua paisagem sedativa.
O que sei é que esses globos em miniatura passaram a fazer parte da minha vida e que, toda vez que olho para eles, me ensinam a mesma lição: os relacionamentos são esféricos e sem alças. Não há como nos apegarmos a eles pela bruta força de mãos e braços. Em sua circularidade quase perfeita, os relacionamentos nos exigem investimentos cíclicos e recorrentes. Como as bolas de golfe, lançamos nossas emoções em vários sentidos e direções. Como resultado dessa audácia, essas emoções e os relacionamentos aos quais se filiam acabam se comportando como as pelotas coloridas do meu balaio de vime. Ao sofrerem as tacadas da vida, em seu voo primeiro ou enésimo, acabam sujas, manchadas, deformadas. Extraviam-se e se perdem. Para recuperá-las, é necessário transpor não apenas uma rua movimentada, mas o fosso profundo que se interpõe entre nós e as pessoas amadas ou toleradas.
Nunca tentei consertar as bolas de golfe do meu balaio de vime. Mas não acho que seja possível desentortá-las, nem lhes eliminar as manchas. O máximo que fiz foi lavá-las para conservá-las limpas e apresentáveis, uma espécie de maquiagem postiça a fim de atenuar as cicatrizes profundas de golpes e colisões. No final das contas, após anos e anos de convivência com os equívocos redondos de meus relacionamentos, esse balaio de gatos em que se transformou o meu coração, concluí que é inevitável sofrer com marcas e manchas. Descobri, porém, que há uma razão existencial por que as bolas de golfe são numeradas. Esses números sugerem nossas prioridades. A prioridade “zero” são os relacionamentos efêmeros aos quais nunca deveríamos dar o poder de nos magoar. A prioridade “cinco” são os relacionamentos periféricos, insignificantes, que não conseguiriam nos magoar mesmo que tentassem. A prioridade “dois” são os relacionamentos secundários, que não são importantes o bastante para requerer sacrifícios e esforços múltiplos de manutenção. Entretanto, há a prioridade “um”, aqueles relacionamentos sem os quais seria impossível continuar a vida como a conhecemos e desejamos. No caso dessas bolas de golfe número 1, por elas vale a pena atravessar a movimentada rua do tempo, em que um calendário autoritário ou um relógio arrogante, como automóveis desgovernados, nos ameaçam os gestos e as afeições. Por elas, vale a pena cruzar o fosso das mágoas, por mais profundo que seja. Vale a pena correr todos os riscos, inclusive o da vulnerabilidade. Vale a pena fazer sacrifícios e imolações, apesar das manchas e cicatrizes. Vale a pena recuperá-las para impedir que vão parar em um balaio de vime, em um canto qualquer e, em vez disto, acomodá-las majestosa e intencionalmente no trono do nosso coração, à vista de todos, à vista de Deus.




Monday, January 06, 2020

Carta a mim mesmo, direto da cápsula do tempo

Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus Cristo. Carta a mim mesmo.
               Este é um lembrete, na passagem de ano, de que meio século de existência pode me tornar mais forte do que o tempo, a gravidade, a decrepitude e outras forças implacáveis que corroem o vigor físico, o ritmo cardíaco da vida e a agilidade mental. Tento me convencer de que preciso apenas da atitude certa: a de reconhecer, nas pequenas coisas, que não é a duração da vida que me faz feliz. Ao contrário disso, é a felicidade que me dá vida. E como não ser feliz? Eu posso até deter o tempo, por alguns minutos, com a simples lembrança das coisas formidáveis que me sucederam: as viagens, quer aquelas empreendidas nos meios convencionais de transporte, quer as da minha imaginação, que me levou mais longe e mais rápido do que qualquer foguete que já existiu ou existirá. Os livros (de capa a capa), os poemas (de Homero, Bukowski), as línguas (principalmente o grego), essa fortuna que eu ajuntei por uma bagatela. Eu posso superar o peso da gravidade com a leveza de um coração aberto, sensível, esperançoso... Diálogos, conversas ao telefone, emails recebidos e armazenados em uma pasta intitulada “mensagens memoráveis”. Posso rejuvenescer com a recordação de beijos, abraços e cópulas, e com a expectativa de mais beijos, abraços e cópulas. Além disso, com uma experiência que nunca consegui decifrar, nem no todo nem em parte: a conexão cerebral, visceral entre professor e aluno. Venço a morte, a cada dia, com a lembrança desses prazeres ingênuos, o quarto gol já no final do segundo tempo; a prece desinteressada em favor do outro; os pequenos sacrifícios; os afagos incondicionais de um cãozinho que, no que diz respeito aos demais seres do planeta, não passa de uma criatura mal-humorada e tão indiferente quanto um gato, mas que se desmancha de satisfação ao som de minha voz; a alegria na realização dos filhos, sobrinhos, parentes próximos e distantes; os encontros inesperados; letra e música; vislumbres do futuro e, principalmente, do passado; aspirações... Não há, então, motivos para estar triste, mesmo no último dia do ano, mesmo aos 52 anos de idade.




Carta aos filhos, direto da cápsula do tempo

               Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus Cristo. Carta aos filhos, sendo um deles casado e a outra solteira, estando ambos no começo de sua vida adulta e independente ou a ponto de iniciá-la.
               Não escolho a música ao som da qual vocês dançam. Não mais. Não escrevo o roteiro de suas histórias nem o itinerário de suas viagens. Nunca o fiz; apenas ensaiava fazê-lo. Vocês estão agora à mercê das próprias escolhas. A responsabilidade de cada decisão é, agora, inteiramente sua, com uma pequena pitada do tempero que adicionamos ou deixamos de adicionar à sopa de suas vidas. Até aqui, vocês foram perfeitamente imperfeitos – e nunca o teríamos desejado de outra forma: autênticos, autônomos, audaciosos. Ainda assim, em todas as situações, conviver com vocês foi como estar às margens de um lago plácido, sem ondas, nem ventos, mas profundo, hipnótico, tranquilizador.
               Poucas vezes talvez se tenha escutado um pai dizer que tenha encontrado almas gêmeas nos filhos, essa prerrogativa estando geralmente reservada aos grandes amores, os romances que fazem o coração se apressar, dando-lhe a impressão de que o tempo passa mais depressa do que gostaríamos, ou que tiram a força das pernas, fazendo com que amoleçam sob o peso do desejo e da paixão. No entanto, em nosso caso, os sentimentos são outros. É como se minha alma tivesse se fendido, uma fração de virtudes e defeitos passando a cada um de vocês, numa imagem ou, sequer isso, num reflexo. É como se vocês tivessem tomado essa figura grotesca e tivessem soprado sobre ela uma espécie de purpurina espantosa, capaz de redimir a caricatura e transformá-la em um quadro elegante. Vocês fizeram isso com a minha vida e, por isso, eu lhes sou grato.
Outra pessoa, menos avisada das coisas do coração, quem sabe interprete o fenômeno como um azar da hereditariedade, um capricho dos cromossomos. Mas eu sei que não. Nenhuma combinação genética em meus ascendentes, esses antepassados que vocês pouco ou mal conheceram, poderia ter lhes legado um coração tão generoso, uma mente tão lúcida, um senso de justiça impregnado de tão boas intenções, um desejo tão ardente de existir ainda que simplesmente e uma atitude tão respeitosa para com os mistérios humanos e divinos.

Vocês estão, hoje, onde deveriam estar. Eu não teria ido mais longe e não estaria tão satisfeito se vocês tivessem alterado, de forma mínima, seu percurso, acidental ou intencionalmente. No entanto, algum imprevisto talvez atravesse, algum dia, o seu caminho: uma decepção, um fracasso, uma indecisão, uma fraqueza ou desespero. Se isso, por acaso, vier a acontecer, talvez eu não esteja presente para lhes dizer o que direi agora. Portanto, lembrem-se bem, façam disso uma recordação a ser guardada na caixa-forte de seu coração: seu sucesso como pessoas, para os seus pais, depende menos do que vocês conseguirem conquistar na vida e mais do que vocês conseguirem fazer um pelo outro, por seus filhos e familiares, e pelos corações que Deus colocar ao alcance de seu toque. De qualquer forma, não tenho receios: eu sei que vocês saberão o que fazer, mesmo que eu não esteja lá para observá-los. Eu sei que vocês saberão o que fazer na proporção mesma em que sabem que são amados. E isso eu posso garantir: vocês são e sempre serão amados...







Saturday, December 14, 2019

Discurso de Formatura Tradutor & Intérprete, Classe de 2019

Caros alunos e alunas da turma de Tradutor & Intérprete de 2019, finalmente chegou o dia em que vocês receberão o merecido diploma, um pedacinho valioso de papel, a prova irrefutável de que vocês são determinados, disciplinados e brilhantes, talvez mais brilhantes e determinados do que disciplinados. Hoje é a sua formatura e, de certa forma, é a minha formatura também. Com o meu deslocamento para os programas de pós-graduação, eu acho que nunca mais me sentirei tão próximo de uma turma de Tradutor & Intérprete, quanto eu me sinto hoje de vocês. E sou grato a Deus porque são vocês as pessoas de quem tenho a oportunidade de me despedir. Eu sou grato a Deus porque são vocês as últimas pessoas a tomar lugar neste cantinho especial do meu coração que vem sendo povoado pelas pessoas mais afetuosas, incríveis e sem noção que eu já conheci. Na vida, como nas cerimônias de formatura, geralmente quem entra por último, se senta na primeira fileira; e vocês sempre estarão na primeira fileira do meu coração. Alguém aqui se lembra do que respondia quando tinha cinco anos de idade e as pessoas lhe perguntavam o que você queria ser quando crescesse? Algum de vocês dizia, naquela época, que queria ser tradutor e intérprete? Acho pouco provável. Naquela época, a Agricélia queria ser comissária de bordo, o que ela deseja ser até hoje; o Artur, piloto de avião; a Bruna, cabeleireira, que ela mal conseguia pronunciar; a Carol, atriz; o Danilo, veterinário; a Débora, sereia; o Denisson, bombeiro; a Emiily, viajante; o Gabriel Malta, entre outras coisas, professor; a Gabrielle, estilista (gente, como é que uma criança de 5 anos de idade sabia o que é isso???); o Jhoseyr, fazendeiro; a Jordana, professora, como a mãe; a Karol, veterinária; a Midori, cirurgiã de emergência, só para ver os corpos abertos; tudo o que a Paloma queria era aprender a falar inglês; a Rafaela, policial, só para usar farda como o tio; a Taila, médica; o Victor Hugo, policial; o Wilson, astronauta; e a Yanka, psicóloga, entre outras coisas. Bem, agora vocês cresceram e não viraram nada do que queriam ser. Pelo menos, não ainda. Entretanto, escolheram essa profissão que nos dá a ilusão de que somos todas essas coisas, porque o tradutor se mete em tudo, sabe de tudo e, quando a gente não sabe, a gente inventa tão bem, que ninguém sequer desconfia da nossa ignorância. Somos escritores, advogados, atores, intérpretes, inventores, mediadores, porta-vozes, entrevistadores, pregadores, legendistas, letristas, poetas, diplomatas, cuidadores, jornalistas, psicólogos, dubladores, atletas, professores, enfim, qualquer coisa para a qual nos deem cinco segundos de preparo prévio. E fazemos isso sem perder a pose. Como intérprete, já assisti em um parto, já prestei cuidados de emergência, já ajudei a engessar um braço, já visitei uma prisão de segurança máxima, já viajei o mundo e, mais recentemente, dramática e espetacularmente me joguei no chão no palco de um estádio na frente de nove mil espectadores. Então, eu sei que vocês estão entre os poucos aqui presentes que podem dizer que realizaram o seu sonho de infância. E não só o sonho de virar estilista, veterinário, psicólogo, médico, policial e bombeiro, mas muitas outras coisas. Vocês vão traduzir bulas de remédio melhor do que os farmacêuticos, vão traduzir manuais técnicos melhor do que os engenheiros, vão traduzir patentes melhor do que os inventores, vão traduzir a vida melhor do que ninguém. Só a sua presença vai acalmar as pessoas, dando-lhes a sensação de conforto e segurança, senão a todas as pessoas, pelo menos àquelas que mais precisam dessa sensação. Apesar, porém, de todas essas possibilidades e do brilho glamoroso, inofuscável, da profissão que vocês escolheram e na qual se graduam hoje, o que mais me enche de encanto e admiração, o que me faz o coração bater aos saltos neste momento de emoção é que, no seu dia-a-dia, vocês não serão simplesmente atores, intérpretes, mediadores, advogados, e todos esses papéis de astros que vocês vão assumir na imaginação e na prática tradutória, vocês serão muito mais do que isso. Vocês serão Agricélia, Artur, Bruna, Carol, Danilo, Débora, Denisson, Emiily, Gabriel, Gabrielle, Jhoseyr, Jordana, Karol, Midori, Paloma, Rafaela, Taila, Victor Hugo, Wilson e Yanka, essas pessoas extraordinárias que sempre vão encher a minha memória de recordações inesquecíveis, cuja falta será sentida por cada professor, árvore, prédio, sala e carteira deste campus. Podem partir em paz, pois vocês vão acompanhados de nossas preces e de nosso eterno carinho.

Wednesday, November 13, 2019

My First Goose (“Meu Primeiro Ganso”) por Isaac Babel


Traduzido para o inglês por Peter Constantine
Traduzido para o português pelos alunos do curso de Tradutor e Intérprete do UNASP
sob a supervisão do Prof. Milton L. Torres


Savitsky, o comandante da sexta divisão, se levantou, quando me viu, e eu fiquei espantado pela imponência de seu corpo gigantesco. Ele se levantou, com suas bombachas roxas que dividiam a cabana em duas assim como uma bandeira divide o céu; a boina carmesim estava inclinada para o lado e as medalhas pregadas no peito. Exalava perfume e um enjoativo frescor de sabão. Suas pernas compridas se assemelhavam a duas garotas coladas uma na outra pelos ombros com botas de montaria.
Ele sorriu para mim, bateu com o chicote na mesa e pegou o memorando que o chefe da repartição havia escrito. Era um pedido para Ivan Chesnokov avançar para Chugnov-Dobryvodka com o regimento sob seu comando e, quando encontrasse o inimigo, o destruísse imediatamente. "Por essa destruição", Savitsky começou a escrever, enchendo toda a folha, "considero o próprio Chesnokov o completo responsável. Seu descumprimento vai implicar nas medidas punitivas mais severas; em outras palavras, vou lhe dar um tiro ali mesmo. Desse fato, camarada Chesnokov, tenho certeza que você não vai duvidar, já que faz bastante tempo que você trabalha comigo na linha de frente.
O comandante da Sexta Divisão assinou a ordem com um floreio, jogou-a para o ordenança e voltou os olhos acinzentados para mim, que dançavam de alegria.
Entreguei-lhe o documento referente a minha transferência para a repartição daquela divisão.
“Cuide da papelada!” disse o comandante da divisão. “Cuide da papelada e certifique-se de que esse homem se voluntarie para todas as diversões, exceto as do tipo frontal. Você sabe ler e escrever?”
"Sei", respondi, morrendo de inveja da força e do vigor da sua juventude. "Eu me formei em direito na Universidade de Petersburgo." "Então você é um daqueles almofadinhas!", ele gritou com uma gargalhada. "Com óculos no nariz! Ah, sua criatura miserável! Eles mandam essa gente para cá e nem perguntam se queremos! Aqui você leva porrada só de usar óculos! Então, você acha que pode viver com a gente, ein?" "Sim, acho", respondi e fui à vila com o intendente a fim de procurar um lugar para ficar.
O intendente carregava a minha maleta nos ombros. A rua da vila estava diante de nós, e o sol poente, redondo e amarelo como uma abóbora, dava seu último fôlego rosado.
Chegamos a uma barraca com guirlandas pintadas. O intendente parou e, de repente, sorrindo com culpa, disse: “Cara, a gente detesta óculos aqui! Não há nada que você possa fazer!
Aqui eles comem vivo um homem de muitos títulos, mas se você viola uma moça, a mais purinha, aí sim, você vira o cara, para os soldados.
Ele hesitou por um momento, com a minha maleta ainda nos ombros, chegou bem perto de mim. De repente, afastou-se em desespero, correndo ao quintal mais próximo. E lá estavam os Cossacos sentados nos feixes de feno, barbeando uns aos outros. “Soldados!” O intendente falou, colocando a maleta no chão. “De acordo com a ordem dada pelo camarada Savitsky, vocês são obrigados a aceitar que este homem se aloje com vocês. E nada de brincadeira, por favor, porque este homem já sofreu muito nas batalhas acadêmicas.”
O intendente corou e saiu marchando sem olhar para trás. Bati continência para os Cossacos. Um loiro cabeludo com a cara linda e típica de Ryazan, foi até minha maleta e a jogou na rua. Então, ele virou as costas para mim e, com uma destreza fora do comum, começou a falar palavrões.
"Calibre zero-zero!" Um velho cossaco gritou, rindo bem alto. "Disparou rapidinho!"
O jovem foi embora depois de gastar suas artimanhas limitadas. Eu me agachei e comecei a juntar os manuscritos e as roupas velhas e puídas que haviam caído da maleta. Eu juntei tudo e levei para o outro lado do pátio. Uma grande panela de ensopado de porco estava em cima de tijolo na frente da choupana. Subia uma fumaça que parecia a fumaça de uma choupana de uma daquelas vilas que a gente viu na infância. A fome se misturava com uma intensa solidão em mim. Eu cobri a minha pequena maleta rasgada com feno. Fiz dela um travesseiro, e me deitei no chão para ler o discurso de Lênin no segundo congresso do comitê, que tinha saído no Pravda. O sol se pôs sobre mim entre as colinas irregulares. Os cossacos ficavam pulando as minhas pernas. Aquele rapaz caçoava de mim o tempo todo. A pronta resposta lutava para me alcançar por caminhos tortuosos, mas não conseguia. Coloquei o jornal de lado e fui até a dona da casa, que estava fiando na varanda.
"Dona", eu disse, "eu preciso de um rango".
A velha levantou as escleras lacrimejantes dos olhos quase cegos para mim e abaixou novamente.
"Camarada", ela disse, depois de um curto silêncio. "Isso tudo só me dá vontade de me enforcar!"
Maldição! Murmurei frustrado e lhe dei um empurrão nas costas com a mão. “Eu não estou no clima para discussão!” Eu me virei e vi, por perto, o sabre de alguém. Um ganso altivo andava a passos largos pelo quintal, arrumando placidamente suas penas. Eu peguei o ganso e pisei nele. A cabeça estralou sob minha bota, quebrada e sangrando. O pescoço branco ficou estirado na terra e as asas se dobraram sobre o pássaro abatido.
"Maldição!" Eu disse, cutucando o ganso com um graveto. "Vá assá-lo pra mim, dona."
A cegueira e os óculos da velha brilharam na luz, e ela pegou o pássaro, enrolou-o com o avental e o levou até a cozinha.
“Camarada,” ela disse depois de um momento de silêncio. “Isso me dá vontade de me enforcar.” E bateu a porta quando entrou. No quintal, os cossacos já estavam sentados ao redor da panela. Eles estavam estáticos, sentados eretos como sacerdotes pagãos, sem sequer ter dado uma única olhada para o ganso.
“Esse camarada vai se dar muito bem aqui”, disse um deles, piscou e pegou um pouco de sopa de repolho com a colher. Os cossacos começaram a comer com a graça contida de um grupo de fazendeiros respeitosos. Eu limpei a espada com a areia, saí do pátio, mas logo voltei, me sentindo angustiado. A lua enfeitava o quintal como uma bijuteria.
"Ei, irmão!" Surovkov, o mais velho dos cossacos, me disse de repente. "Sente-se conosco e coma um pouco disso até que seu ganso fique pronto!"
Ele pegou uma colher extra da sua bota e a entregou para mim. Engolimos ruidosamente a sopa de repolho e comemos a carne de porco.
"Então, o que eles estão escrevendo no jornal?", o jovem camarada de cabelos louros me perguntou e se afastou para abrir espaço para mim.  "No jornal, Lênin escreve", eu disse, pegando meu Pravda, "Lênin escreve que agora há uma escassez geral."
Eu falava tão alto, que parecia surdo. Lia, triunfante, o discurso de Lênin para os Cossacos.
Mas a noite me envolveu na umidade macia de seus lençóis de crepúsculo, e colocou as mãos maternais em minha fronte.
Fiquei feliz, ao terminar de ler, esperando algum efeito. Eu me deliciava com a misteriosa curva da linha reta de Lênin.
"A mentira tem pernas curtas," Surovkov falou quando terminei. "Não é tão fácil tirar qualquer verdade dessa pilha de bobagens, mas Lênin saca logo de primeira. Parece uma galinha pegando o grão de milho."
Foi o que Surovkov, comandante do esquadrão, disse sobre Lênin e, depois, fomos dormir no palheiro. Seis de nós dormimos ali, aquecendo-nos uns nos outros, nossas pernas emaranhadas, sob os buracos do telhado que deixavam entrar as estrelas.
Sonhei e vi mulheres nos meus sonhos. Só que meu coração, vermelho de morte, gritava e sangrava.

Wednesday, April 24, 2019

Sônia

por Milton L. Torres

Como é que eu posso definir a Sônia? A tempestade? A bonança antes da tempestade? O tufão que passa pela vida da gente e não deixa nada no lugar? O vento que sopra suave e nos acaricia o rosto e o coração? Não, ela não era bipolar. De jeito nenhum. Ela era multipolar, pois conseguia assumir vários papéis e funções ao mesmo tempo. Ela conseguia explodir com um e, na mesma hora, virar para o outro com a iluminação de um sorriso franco, acolhedor, transformador. Capaz de arrancar o próprio coração para nos deixar felizes, era também capaz de nos arrancar o coração se a decepcionássemos. Mas, então, depois de alguns minutos, ela nos devolvia o coração amarrado em papel de embrulho da melhor qualidade e um laço vermelho da cor de sua paixão. Junto vinha um bombom, adocicado com os melhores recheios e aromas. Nenhuma relação com a Sônia era simples. Não podia ser, pois ela, no fundo, já sabia o que nos deixaria felizes e não admitia que nossos planos não concordassem com os dela. Eu a comparo a Cassandra, a princesa troiana que tinha o dom da premonição e era capaz de entender e prever as guinadas que aconteceriam na vida das pessoas, mas tinha a desventura de nunca conseguir convencer essas pessoas a seguirem suas advertências e conselhos. Advertências e conselhos tão bons e proveitosos que, se fossem seguidos, levariam à vida perfeita e feliz. A Sônia sabia dessas coisas. Ela já tinha tudo planejado para a vida de cada um de nós, que estávamos mais próximos de sua influência. Já sabia onde moraríamos, de que dentes trataríamos, com quem os solteiros se casariam, onde os estudantes estudariam, como os doentes se curariam, como os infelizes se alegrariam, como deveríamos falar com as pessoas, com o Presidente, com o próprio Deus. Ela sabia. Nunca vacilou em suas convicções. Nunca se deixou convencer a fazer qualquer coisa que seu coração não pedisse, pois ela não tinha estômago, nem intestino, nem pulmão. No lugar dessas coisas, ela só tinha coração e eu deixo a vocês a tarefa de imaginar o tamanho desse coração, se era um coração só, enorme, ou vários corações pequenos que cabiam nos recônditos de seu corpo, e que, às vezes, em alguns dias especiais, lhe saía pela boca espumante e começava a pulsar diante de nossos olhos, o coração inteiro, vibrante, irresistível. Eu conheço poucas pessoas como a Sônia e confesso que, se não a tivesse conhecido, minha vida seria mais solitária e pobre. É possível que alguém aqui presente até se sentisse incomodado com suas constantes demonstrações de preocupação e interesse, como eu me incomodava todas as vezes que ela me visitava e agarrava logo uma vassoura, como se a atividade mais importante de sua vida fosse limpar e varrer e arejar e criar um espaço confortável ao seu redor... para nós. Confesso que, às vezes, eu ficava temeroso de que sua vitalidade fosse tanta, que ela empinasse a vassoura e saísse voando. Pois é. É possível que tanto desprendimento, tanta vitalidade, tanto desejo de marcar a nossa vida... É possível que essas coisas nos tenham incomodado brevemente, em algum momento. É que nunca estivemos inteiramente preparados para viver no mesmo universo da Sônia, um universo cheio de turbilhões e provas incontestáveis de apreço e amor. É que nós nunca estivemos sintonizados na mesma frequência apaixonante de seus arroubos e gestos grandiosos de compaixão, misericórdia e afeto. Não estou dizendo que ela foi perfeita. Seria impossível que uma pessoa tão desproporcional, cujo coração imperava além de todas as outras características, fosse perfeita. Nem estou dizendo que ela era imperfeita, pois seria impossível considerar imperfeito aquilo que transpirava boas intenções e desejo de proximidade e afeição. O que a Sônia se tornou para nós foi uma pessoa extraordinária, que será sempre lembrada, com sorrisos e lágrimas. E ela merece cada um de nossos sorrisos e lágrimas. Ela merece nossa admiração e devoção. Ela agora ocupa um lugar especial na prateleira de heróis desta família. Resta-nos aprender a transcender as palavras literais da Sônia para abraçar seu significado imaterial e simbólico. Não importa o que ela lhe tenha dito. Não importam as palavras exatas que ela usou. O que importa é o espírito com que ela sempre se manifestou, com o coração. O que importa é que nada mais importaria para a Sônia do que sermos todos felizes. O que importa, para Thauan, Thalles, Mauro, Leonor, Ana, Tania, Vania, Mário e todos os cunhados, Taty, Bachega e todos os sobrinhos, Keila, Lúcia e todos os primos, é que honremos a memória da Sônia, imitando-lhe a mesma grandeza de coração, o mesmo desprendimento pelo próximo, a mesma vontade de viver e ser feliz. A Sônia nos ensinou a viver e a morrer. Ela simplesmente nos precede. E, quando chegar a nossa hora, devemos ir com a mesma dignidade e coragem, com a mesma firmeza de decisão em seguir o que o coração nos pede. Se seguirmos seu exemplo, vamos todos nos consolar com a esperança de um reencontro feliz. E ainda que nos falte essa esperança num dia escuro, de chuvas inclementemente frias e desnorteadoras, podemos nos consolar com a lembrança de uma vida absolutamente extraordinária, com a lembrança dos momentos felizes em que a Sônia cuidou de nós ou nos incendiou com um lampejo de sua alegria e vigor. Vamos ser fortes, vamos ser felizes, vamos cuidar uns dos outros, sem nunca desistir, sem que nos arrefeça o ânimo, sem que cedamos ao cansaço ou às justificativas implausíveis. Não podemos decepcioná-la. Ela nos arrancaria o coração se o fizéssemos... A Sônia se vai, mas não a sua memória, não a sua força! Que Deus nos ajude, portanto, a ser fiéis ao seu espírito de amor e dedicação.

O peso dos dias


por Milton L. Torres

O que pesa mais? Um mês ou dez anos? Eu sei que você será tentado a responder, à queima roupa, que o peso de dez anos ultrapassa, em muito, o peso de um simples mês. Por favor, detenha-se. Não se precipite. Há que considerar o que significam esses espaços de tempo. É possível que, no impasse das épocas, a década não se compare ao mês...
De que década falamos? De que década poderíamos falar? A última década? Os dez últimos anos de felicidade ingênua, atalhados por situações de aflição e desapontamento, mas ainda válidos por causa dos carinhos e cuidados, as pequenas e grandes demonstrações de afeto, os prazeres só aparentemente passageiros e medíocres, os sacrifícios em prol de prêmios e recompensas singelas, mas sempre, de alguma forma, gratificantes... Estes dez anos cujo ciclo fechou há um mês: a década de construção, renovação, idas e vindas, débitos e saldos, viagens para perto e para longe, para dentro e para fora, para bodas e celebrações, ou simplesmente para cumprir planos e metas. É essa época que não nos sai da memória, é dela que falamos. Falamos de dez anos de sorriso nos lábios, emoção no peito e esperança à flor da pele. Foram abraços apertados, olhos nos olhos, sempre acessíveis, sempre emparelhados para deixar claro o alcance ilimitado da paixão e da loucura quase infantil de amar com tanta intensidade, até a dor dos ossos. Como poderiam dez anos de presença ser mais leves do que os meros trinta dias que compõem um mês? Talvez você ache que nem precisa ler o resto, pois o peso dessa década arqueada com tantas promessas e sonhos afunda e engole a balança de qualquer avaliação ligeiramente justa ou totalmente imparcial...
Mas espere! De novo, é preciso não se precipitar. Escute de que mês falamos. Atenção para estes trinta longos dias de silêncio e solidão, sem que o telefone toque, sem que se ouça a voz do peito nem se veja a fisionomia familiar. São trinta sofridos dias de reclusão, sorvidos, na penumbra, como se fossem as gotas amargas de uma poção fatal, como se bebêssemos as próprias lágrimas misturadas com fel e vinagre. Falamos da sufocante verificação da falta. Falamos do mês sem, o mês vazio, o mês trôpego dos nossos tropeções e quedas em que resvalamos na tristeza e na dor. Falamos de um mês, abril, que se fechou, como fecha o céu em tempestade, como se fecha a cela dos condenados, sem esperança de indulto ou recuperação. É o peso deste mês que a nossa balança mede e, descalibrada como possa ser, não lhe é facultado dizer outra coisa senão que este mês é o mais pesado de todos os que o antecederam nestes dez, vinte, trinta anos... A balança não mente. Não ousa mentir. Não ousa passar por alto o peso dos corações órfãos deste mês que pesa uma tonelada, mil toneladas.
Nossa década não pode se transformar em mês. Não se reduzirá jamais aos trinta curtos dias de uma fantasia que não podemos conceber. Quem dera pudéssemos! Este mês vai, porém, se transformar em década. E, à medida que seus dias inclementes avançarem, seu peso talvez se esvazie até o tamanho do nada. Talvez! Provavelmente não.

Tuesday, December 18, 2018

Discurso de Formatura da Turma de 2018 de Letras (Inglês e Português) do UNASP

É difícil começar uma conversa. Diante de imensa consideração, diante do mérito indiscutível, diante do afeto indescritível e da admiração incontida, as mãos suam, a boca fica seca, os joelhos se afrouxam e o coração se acelera. Vocês já sentiram esse formigamento nas juntas? Já temeram que o coração lhes saísse pela boca? Já puseram a mão sobre o estômago para acalmar as borboletas assanhadas que insistiam em alçar voos e mais voos? Já se sentiram assim? Lembram-se dessas emoções? Já passaram por isso?
É assim que me sinto hoje, ao me dirigir a vocês: Larisse, Ingrid, Karoline Mainardes, Núbia, Sandra, Silvanielle, William, Caroline Verano, Dirceu, Êmerson, Márcio, Maria Fernanda, Amanda, Elina, Francisco Ricardo, Giovanna Finco, Milena e Sarah. São as sensações de um pai de primeira viagem, de um professor estreante, de um atleta amador, de um aluno novato, de alguém que nunca falou em público. Obviamente, eu não sou nenhuma dessas coisas. Só me sinto assim porque vocês me fazem sentir assim. Não dá para descrever, nem com uma exatidão aproximada, vaga, distante, o orgulho e a satisfação de vê-los assim como estão hoje: disciplinadamente aguardando o momento de comemorar sua espetacular conquista das letras, das palavras, das frases inteiras e definitivas, nesta e naquela língua!
E os sentimentos que acabei de descrever não são o resultado de interações aleatórias e ocasionais. O carinho que nós professores recebemos de sua turma foi algo intencional e profundo, algo que vem das entranhas, da afeição que vocês nos demonstraram ao longo dos meses e anos. Dificilmente, na minha vida, eu tive a oportunidade de me dirigir a um grupo mais compreensível, mais afetuoso e terno, mais disposto a relevar nossas limitações como educadores. Talvez alguém menos perceptivo pudesse supor que o fizessem por condescendência ou apatia. Essa pessoa, sem noção e vil, não poderia estar mais longe da verdade factual que vocês representam no dia de hoje. Vocês o fizeram porque está em sua essência ceder aos impulsos mais nobres de seu coração. Vocês o fizeram porque são quem são e por terem vindo de onde vieram, dos braços acolhedores de seus familiares, do exemplo que receberam em casa e na vida.
Eu não poderia deixar de fazer uma menção especial aos alunos desta turma e de outra que foram meus orientandos e com quem troquei mensagens e conversas nos intercâmbios frequentes e prazerosos que tivemos acerca de autores antigos e modernos, de línguas próximas e distantes, de traduções e interpretações, de prosa e poesia, de coisas que só as pessoas de sua inteligência e sensibilidade são capazes de entender, coisas além da imaginação daqueles que caminham pelas veredas arborizadas desta Instituição e que podem entender de números e contas, prédios e pontes, leis e decretos, notícias e propagandas, produtos e produção, tomates e batatas, mas jamais serão capazes de trafegar nos caminhos abstratos e impenetráveis das grandes questões da literatura e da vida, pois vocês não saem daqui apenas como especialistas em letras, mas especialistas em letras que formam conceitos tão elevados como existência, amor, drama, tempo, sofrimento, felicidade. E eu quase seria capaz de dizer como cada um de vocês soletra essas palavras com gestos e cuidados, atenções despretensiosas, sorrisos incomparáveis, divertidos, sinceros, profundamente reveladores de personalidades afetuosas. A cara de quem se importa, de quem está feliz porque entende o próprio valor e o valor do outro, dos outros. Gente que não se mata uns aos outros por dinheiro, posições, cargos, poder ou qualquer outra atração mundana que engana a tantos tolos hoje em dia.
Obrigado por terem iluminado a nossa vida nestes anos em que estiveram sob os nossos cuidados e, ao mesmo tempo, sobre os nossos cuidados, acima deles, além deles. Obrigado por terem feito uma escolha tão genuína: a opção pelo bem e pelo diálogo. Obrigado por darem o exemplo que precisa ser seguido por mais gente: a opção pela palavra, pelas palavras, por frases inteiras, reveladoras do fato de que vocês são pessoas humildes, mas valiosas; gente simples, mas profunda; alunos carinhosos, amorosos, nosso orgulho. Parabéns por esta conquista, a primeira de muitas; depois, o mestrado; o doutorado; o pós-doutorado; o céu! Vão com Deus, sempre para frente, sempre para o alto.

Discurso de Formatura da Turma de 2018 do Curso de Tradutor e Intérprete do UNASP

Nos exatos nove anos em que estou no UNASP, esta é a quarta vez em que sou escolhido p/discursar na formatura do Curso de Tradutor & Intérprete: 2013, 2014, 2017 e agora 2018. Está ficando cada vez mais difícil saber o que dizer. Não se trata da dificuldade que um poeta encontra quando já lhe pediram para discursar sobre as estrelas e a lua, e agora lhe pedem para falar também do sol. Não se trata de falta de palavras, de inspiração. Não é tampouco que o assunto esteja esgotado. É que as emoções estão cada vez mais fortes, cada vez mais difíceis de refogar com alho na trempe do coração. É que os nomes estão cada vez mais próximos, cada vez mais profundamente registrados, não apenas no córtex, a superfície do cérebro, mas nas dobras recônditas da memória: Adriane, Agatha, Amanda, Ana Vieira, Camilla, Carlos Eduardo, Danilo Fauster, Elina, Évelyn Bittencourt, Gabi, Giovanna Finco, Giovana Santos, Marcele, Luma, Ramage, Renato, Vanessa e Yuri. Faço questão de dizer todos os nomes. Faço questão de individualizá-los. Faço questão de abrir uma página da minha vida para cada um de vocês, com recortes, fotos, lembranças incríveis, a palavra favorita de seus TCCs! Paulo Freire escreveu um livro no qual recomenda que os alunos não chamem as professoras de tias. Com isso, presumo que ele tampouco quisesse que chamassem os professores de tios. Prestem atenção: eu sei que vocês não nos chamam de tios ou tias, por mais que tia Ana Schäffer até que soasse bem. Em sala de aula, vocês se referem a nós como “professores”, mas, em geral, quando falam comigo, vocês nos tratam pelo primeiro nome ou algum apelido carinhosamente inventado. Dizem: - O Neums fez isto; o Édley, aquilo. E eu acho isso o máximo! Sabem por quê? Porque vocês nos colocam no mesmo nível de vocês e não há nada que nós, professores, desejemos mais do que ficar lado a lado com vocês, estar no mesmo nível de gente tão brilhante, tão de bem com a vida, tão felizes e esperançosos, tão cheios de perspectivas para o presente e o futuro, tão incomparavelmente amados, tão incomparavelmente bons e lindos, e, aliás, com um gosto musical impecável. Graças a Deus pela música! Por isso, continuem nos chamando pelo primeiro nome, continuem nos chamando de amigos - ou friends, se preferirem...
Esta é uma noite de despedidas, mas não uma noite triste. Esta é uma noite de saudades, mas não melancólica. Esta é a noite de dizer adeus, mas não sem a esperança de reencontros, trombadas acidentais e retornos cuidadosamente planejados. Vocês nunca mais estarão todos reunidos no mesmo lugar. Sempre faltará a Elina, como falta hoje! Talvez falte mais alguém, por algum imprevisto de última hora ou por alguma ocupação extraordinária, além de nossa capacidade de lidar com a vida ou com a morte. Mas, mesmo que nunca mais se reencontrem, ainda assim, nunca estarão inteiramente separados. A partir de agora há um laço invisível e indissolúvel que vai prendê-los uns aos outros e a nós pelo resto da vida e além. Não foram vocês que escolheram quem faria parte da conexão que se formou nos últimos anos e se consolida inquebrantável neste exato momento. Foi a Providência que os colocou juntos aqui e agora. Do mesmo jeito que vocês não escolheram os pais e familiares, mas Deus lhes concedeu essas pessoas maravilhosas que se fazem aqui presentes hoje para celebrar conosco a admiração que temos por vocês neste momento de superação e vitória, vocês tampouco escolheram seus colegas de turma. Foi a Providência. Ela os colocou juntos para que a turma de vocês tivesse tudo de que necessita, não para o sucesso e a felicidade, que são coisas imateriais e, às vezes, passageiras, mas para que vocês sejam pessoas de bem, das quais nós todos vamos sempre nos orgulhar. Por isso, a Providência os muniu com tiradas eloquentes e irrefutáveis, vozes afinadas e politicamente corretas, mãos de fada, bilhetes premiados, mira certeira, ideias geniais, sonhos mirabolantes, amor espalhafatoso, coração de leão e alma impermeável. A posse destas qualidades não significa, porém, que estarão sempre prontos para superar os dissabores da vida. Significa simples, mas expressivamente, que terão à disposição os recursos para fazê-lo. Basta que se lembrem, basta que olhem para si mesmos e para nós, para as forças benévolas que se arregimentam em favor do bem. Os desafios do sucesso e da felicidade podem, em algum momento, ter parecido impossíveis de alcançar. Talvez ainda pareçam para outros, mas não para vocês. Para vocês, não parecem mais. Afinal, como vocês mesmos colocaram em seu convite de formatura, o impossível é sua especialidade. Então, saiam daqui hoje com a missão de fazer o possível e o impossível para serem boas pessoas, e terem êxito e felicidade. Podem continuar contando conosco para o que der e vier, pois somos o seu back-up. Que Deus os abençoe!