Saturday, December 14, 2019

Discurso de Formatura Tradutor & Intérprete, Classe de 2019

Caros alunos e alunas da turma de Tradutor & Intérprete de 2019, finalmente chegou o dia em que vocês receberão o merecido diploma, um pedacinho valioso de papel, a prova irrefutável de que vocês são determinados, disciplinados e brilhantes, talvez mais brilhantes e determinados do que disciplinados. Hoje é a sua formatura e, de certa forma, é a minha formatura também. Com o meu deslocamento para os programas de pós-graduação, eu acho que nunca mais me sentirei tão próximo de uma turma de Tradutor & Intérprete, quanto eu me sinto hoje de vocês. E sou grato a Deus porque são vocês as pessoas de quem tenho a oportunidade de me despedir. Eu sou grato a Deus porque são vocês as últimas pessoas a tomar lugar neste cantinho especial do meu coração que vem sendo povoado pelas pessoas mais afetuosas, incríveis e sem noção que eu já conheci. Na vida, como nas cerimônias de formatura, geralmente quem entra por último, se senta na primeira fileira; e vocês sempre estarão na primeira fileira do meu coração. Alguém aqui se lembra do que respondia quando tinha cinco anos de idade e as pessoas lhe perguntavam o que você queria ser quando crescesse? Algum de vocês dizia, naquela época, que queria ser tradutor e intérprete? Acho pouco provável. Naquela época, a Agricélia queria ser comissária de bordo, o que ela deseja ser até hoje; o Artur, piloto de avião; a Bruna, cabeleireira, que ela mal conseguia pronunciar; a Carol, atriz; o Danilo, veterinário; a Débora, sereia; o Denisson, bombeiro; a Emiily, viajante; o Gabriel Malta, entre outras coisas, professor; a Gabrielle, estilista (gente, como é que uma criança de 5 anos de idade sabia o que é isso???); o Jhoseyr, fazendeiro; a Jordana, professora, como a mãe; a Karol, veterinária; a Midori, cirurgiã de emergência, só para ver os corpos abertos; tudo o que a Paloma queria era aprender a falar inglês; a Rafaela, policial, só para usar farda como o tio; a Taila, médica; o Victor Hugo, policial; o Wilson, astronauta; e a Yanka, psicóloga, entre outras coisas. Bem, agora vocês cresceram e não viraram nada do que queriam ser. Pelo menos, não ainda. Entretanto, escolheram essa profissão que nos dá a ilusão de que somos todas essas coisas, porque o tradutor se mete em tudo, sabe de tudo e, quando a gente não sabe, a gente inventa tão bem, que ninguém sequer desconfia da nossa ignorância. Somos escritores, advogados, atores, intérpretes, inventores, mediadores, porta-vozes, entrevistadores, pregadores, legendistas, letristas, poetas, diplomatas, cuidadores, jornalistas, psicólogos, dubladores, atletas, professores, enfim, qualquer coisa para a qual nos deem cinco segundos de preparo prévio. E fazemos isso sem perder a pose. Como intérprete, já assisti em um parto, já prestei cuidados de emergência, já ajudei a engessar um braço, já visitei uma prisão de segurança máxima, já viajei o mundo e, mais recentemente, dramática e espetacularmente me joguei no chão no palco de um estádio na frente de nove mil espectadores. Então, eu sei que vocês estão entre os poucos aqui presentes que podem dizer que realizaram o seu sonho de infância. E não só o sonho de virar estilista, veterinário, psicólogo, médico, policial e bombeiro, mas muitas outras coisas. Vocês vão traduzir bulas de remédio melhor do que os farmacêuticos, vão traduzir manuais técnicos melhor do que os engenheiros, vão traduzir patentes melhor do que os inventores, vão traduzir a vida melhor do que ninguém. Só a sua presença vai acalmar as pessoas, dando-lhes a sensação de conforto e segurança, senão a todas as pessoas, pelo menos àquelas que mais precisam dessa sensação. Apesar, porém, de todas essas possibilidades e do brilho glamoroso, inofuscável, da profissão que vocês escolheram e na qual se graduam hoje, o que mais me enche de encanto e admiração, o que me faz o coração bater aos saltos neste momento de emoção é que, no seu dia-a-dia, vocês não serão simplesmente atores, intérpretes, mediadores, advogados, e todos esses papéis de astros que vocês vão assumir na imaginação e na prática tradutória, vocês serão muito mais do que isso. Vocês serão Agricélia, Artur, Bruna, Carol, Danilo, Débora, Denisson, Emiily, Gabriel, Gabrielle, Jhoseyr, Jordana, Karol, Midori, Paloma, Rafaela, Taila, Victor Hugo, Wilson e Yanka, essas pessoas extraordinárias que sempre vão encher a minha memória de recordações inesquecíveis, cuja falta será sentida por cada professor, árvore, prédio, sala e carteira deste campus. Podem partir em paz, pois vocês vão acompanhados de nossas preces e de nosso eterno carinho.

Wednesday, November 13, 2019

My First Goose (“Meu Primeiro Ganso”) por Isaac Babel


Traduzido para o inglês por Peter Constantine
Traduzido para o português pelos alunos do curso de Tradutor e Intérprete do UNASP
sob a supervisão do Prof. Milton L. Torres


Savitsky, o comandante da sexta divisão, se levantou, quando me viu, e eu fiquei espantado pela imponência de seu corpo gigantesco. Ele se levantou, com suas bombachas roxas que dividiam a cabana em duas assim como uma bandeira divide o céu; a boina carmesim estava inclinada para o lado e as medalhas pregadas no peito. Exalava perfume e um enjoativo frescor de sabão. Suas pernas compridas se assemelhavam a duas garotas coladas uma na outra pelos ombros com botas de montaria.
Ele sorriu para mim, bateu com o chicote na mesa e pegou o memorando que o chefe da repartição havia escrito. Era um pedido para Ivan Chesnokov avançar para Chugnov-Dobryvodka com o regimento sob seu comando e, quando encontrasse o inimigo, o destruísse imediatamente. "Por essa destruição", Savitsky começou a escrever, enchendo toda a folha, "considero o próprio Chesnokov o completo responsável. Seu descumprimento vai implicar nas medidas punitivas mais severas; em outras palavras, vou lhe dar um tiro ali mesmo. Desse fato, camarada Chesnokov, tenho certeza que você não vai duvidar, já que faz bastante tempo que você trabalha comigo na linha de frente.
O comandante da Sexta Divisão assinou a ordem com um floreio, jogou-a para o ordenança e voltou os olhos acinzentados para mim, que dançavam de alegria.
Entreguei-lhe o documento referente a minha transferência para a repartição daquela divisão.
“Cuide da papelada!” disse o comandante da divisão. “Cuide da papelada e certifique-se de que esse homem se voluntarie para todas as diversões, exceto as do tipo frontal. Você sabe ler e escrever?”
"Sei", respondi, morrendo de inveja da força e do vigor da sua juventude. "Eu me formei em direito na Universidade de Petersburgo." "Então você é um daqueles almofadinhas!", ele gritou com uma gargalhada. "Com óculos no nariz! Ah, sua criatura miserável! Eles mandam essa gente para cá e nem perguntam se queremos! Aqui você leva porrada só de usar óculos! Então, você acha que pode viver com a gente, ein?" "Sim, acho", respondi e fui à vila com o intendente a fim de procurar um lugar para ficar.
O intendente carregava a minha maleta nos ombros. A rua da vila estava diante de nós, e o sol poente, redondo e amarelo como uma abóbora, dava seu último fôlego rosado.
Chegamos a uma barraca com guirlandas pintadas. O intendente parou e, de repente, sorrindo com culpa, disse: “Cara, a gente detesta óculos aqui! Não há nada que você possa fazer!
Aqui eles comem vivo um homem de muitos títulos, mas se você viola uma moça, a mais purinha, aí sim, você vira o cara, para os soldados.
Ele hesitou por um momento, com a minha maleta ainda nos ombros, chegou bem perto de mim. De repente, afastou-se em desespero, correndo ao quintal mais próximo. E lá estavam os Cossacos sentados nos feixes de feno, barbeando uns aos outros. “Soldados!” O intendente falou, colocando a maleta no chão. “De acordo com a ordem dada pelo camarada Savitsky, vocês são obrigados a aceitar que este homem se aloje com vocês. E nada de brincadeira, por favor, porque este homem já sofreu muito nas batalhas acadêmicas.”
O intendente corou e saiu marchando sem olhar para trás. Bati continência para os Cossacos. Um loiro cabeludo com a cara linda e típica de Ryazan, foi até minha maleta e a jogou na rua. Então, ele virou as costas para mim e, com uma destreza fora do comum, começou a falar palavrões.
"Calibre zero-zero!" Um velho cossaco gritou, rindo bem alto. "Disparou rapidinho!"
O jovem foi embora depois de gastar suas artimanhas limitadas. Eu me agachei e comecei a juntar os manuscritos e as roupas velhas e puídas que haviam caído da maleta. Eu juntei tudo e levei para o outro lado do pátio. Uma grande panela de ensopado de porco estava em cima de tijolo na frente da choupana. Subia uma fumaça que parecia a fumaça de uma choupana de uma daquelas vilas que a gente viu na infância. A fome se misturava com uma intensa solidão em mim. Eu cobri a minha pequena maleta rasgada com feno. Fiz dela um travesseiro, e me deitei no chão para ler o discurso de Lênin no segundo congresso do comitê, que tinha saído no Pravda. O sol se pôs sobre mim entre as colinas irregulares. Os cossacos ficavam pulando as minhas pernas. Aquele rapaz caçoava de mim o tempo todo. A pronta resposta lutava para me alcançar por caminhos tortuosos, mas não conseguia. Coloquei o jornal de lado e fui até a dona da casa, que estava fiando na varanda.
"Dona", eu disse, "eu preciso de um rango".
A velha levantou as escleras lacrimejantes dos olhos quase cegos para mim e abaixou novamente.
"Camarada", ela disse, depois de um curto silêncio. "Isso tudo só me dá vontade de me enforcar!"
Maldição! Murmurei frustrado e lhe dei um empurrão nas costas com a mão. “Eu não estou no clima para discussão!” Eu me virei e vi, por perto, o sabre de alguém. Um ganso altivo andava a passos largos pelo quintal, arrumando placidamente suas penas. Eu peguei o ganso e pisei nele. A cabeça estralou sob minha bota, quebrada e sangrando. O pescoço branco ficou estirado na terra e as asas se dobraram sobre o pássaro abatido.
"Maldição!" Eu disse, cutucando o ganso com um graveto. "Vá assá-lo pra mim, dona."
A cegueira e os óculos da velha brilharam na luz, e ela pegou o pássaro, enrolou-o com o avental e o levou até a cozinha.
“Camarada,” ela disse depois de um momento de silêncio. “Isso me dá vontade de me enforcar.” E bateu a porta quando entrou. No quintal, os cossacos já estavam sentados ao redor da panela. Eles estavam estáticos, sentados eretos como sacerdotes pagãos, sem sequer ter dado uma única olhada para o ganso.
“Esse camarada vai se dar muito bem aqui”, disse um deles, piscou e pegou um pouco de sopa de repolho com a colher. Os cossacos começaram a comer com a graça contida de um grupo de fazendeiros respeitosos. Eu limpei a espada com a areia, saí do pátio, mas logo voltei, me sentindo angustiado. A lua enfeitava o quintal como uma bijuteria.
"Ei, irmão!" Surovkov, o mais velho dos cossacos, me disse de repente. "Sente-se conosco e coma um pouco disso até que seu ganso fique pronto!"
Ele pegou uma colher extra da sua bota e a entregou para mim. Engolimos ruidosamente a sopa de repolho e comemos a carne de porco.
"Então, o que eles estão escrevendo no jornal?", o jovem camarada de cabelos louros me perguntou e se afastou para abrir espaço para mim.  "No jornal, Lênin escreve", eu disse, pegando meu Pravda, "Lênin escreve que agora há uma escassez geral."
Eu falava tão alto, que parecia surdo. Lia, triunfante, o discurso de Lênin para os Cossacos.
Mas a noite me envolveu na umidade macia de seus lençóis de crepúsculo, e colocou as mãos maternais em minha fronte.
Fiquei feliz, ao terminar de ler, esperando algum efeito. Eu me deliciava com a misteriosa curva da linha reta de Lênin.
"A mentira tem pernas curtas," Surovkov falou quando terminei. "Não é tão fácil tirar qualquer verdade dessa pilha de bobagens, mas Lênin saca logo de primeira. Parece uma galinha pegando o grão de milho."
Foi o que Surovkov, comandante do esquadrão, disse sobre Lênin e, depois, fomos dormir no palheiro. Seis de nós dormimos ali, aquecendo-nos uns nos outros, nossas pernas emaranhadas, sob os buracos do telhado que deixavam entrar as estrelas.
Sonhei e vi mulheres nos meus sonhos. Só que meu coração, vermelho de morte, gritava e sangrava.

Wednesday, April 24, 2019

Sônia

por Milton L. Torres

Como é que eu posso definir a Sônia? A tempestade? A bonança antes da tempestade? O tufão que passa pela vida da gente e não deixa nada no lugar? O vento que sopra suave e nos acaricia o rosto e o coração? Não, ela não era bipolar. De jeito nenhum. Ela era multipolar, pois conseguia assumir vários papéis e funções ao mesmo tempo. Ela conseguia explodir com um e, na mesma hora, virar para o outro com a iluminação de um sorriso franco, acolhedor, transformador. Capaz de arrancar o próprio coração para nos deixar felizes, era também capaz de nos arrancar o coração se a decepcionássemos. Mas, então, depois de alguns minutos, ela nos devolvia o coração amarrado em papel de embrulho da melhor qualidade e um laço vermelho da cor de sua paixão. Junto vinha um bombom, adocicado com os melhores recheios e aromas. Nenhuma relação com a Sônia era simples. Não podia ser, pois ela, no fundo, já sabia o que nos deixaria felizes e não admitia que nossos planos não concordassem com os dela. Eu a comparo a Cassandra, a princesa troiana que tinha o dom da premonição e era capaz de entender e prever as guinadas que aconteceriam na vida das pessoas, mas tinha a desventura de nunca conseguir convencer essas pessoas a seguirem suas advertências e conselhos. Advertências e conselhos tão bons e proveitosos que, se fossem seguidos, levariam à vida perfeita e feliz. A Sônia sabia dessas coisas. Ela já tinha tudo planejado para a vida de cada um de nós, que estávamos mais próximos de sua influência. Já sabia onde moraríamos, de que dentes trataríamos, com quem os solteiros se casariam, onde os estudantes estudariam, como os doentes se curariam, como os infelizes se alegrariam, como deveríamos falar com as pessoas, com o Presidente, com o próprio Deus. Ela sabia. Nunca vacilou em suas convicções. Nunca se deixou convencer a fazer qualquer coisa que seu coração não pedisse, pois ela não tinha estômago, nem intestino, nem pulmão. No lugar dessas coisas, ela só tinha coração e eu deixo a vocês a tarefa de imaginar o tamanho desse coração, se era um coração só, enorme, ou vários corações pequenos que cabiam nos recônditos de seu corpo, e que, às vezes, em alguns dias especiais, lhe saía pela boca espumante e começava a pulsar diante de nossos olhos, o coração inteiro, vibrante, irresistível. Eu conheço poucas pessoas como a Sônia e confesso que, se não a tivesse conhecido, minha vida seria mais solitária e pobre. É possível que alguém aqui presente até se sentisse incomodado com suas constantes demonstrações de preocupação e interesse, como eu me incomodava todas as vezes que ela me visitava e agarrava logo uma vassoura, como se a atividade mais importante de sua vida fosse limpar e varrer e arejar e criar um espaço confortável ao seu redor... para nós. Confesso que, às vezes, eu ficava temeroso de que sua vitalidade fosse tanta, que ela empinasse a vassoura e saísse voando. Pois é. É possível que tanto desprendimento, tanta vitalidade, tanto desejo de marcar a nossa vida... É possível que essas coisas nos tenham incomodado brevemente, em algum momento. É que nunca estivemos inteiramente preparados para viver no mesmo universo da Sônia, um universo cheio de turbilhões e provas incontestáveis de apreço e amor. É que nós nunca estivemos sintonizados na mesma frequência apaixonante de seus arroubos e gestos grandiosos de compaixão, misericórdia e afeto. Não estou dizendo que ela foi perfeita. Seria impossível que uma pessoa tão desproporcional, cujo coração imperava além de todas as outras características, fosse perfeita. Nem estou dizendo que ela era imperfeita, pois seria impossível considerar imperfeito aquilo que transpirava boas intenções e desejo de proximidade e afeição. O que a Sônia se tornou para nós foi uma pessoa extraordinária, que será sempre lembrada, com sorrisos e lágrimas. E ela merece cada um de nossos sorrisos e lágrimas. Ela merece nossa admiração e devoção. Ela agora ocupa um lugar especial na prateleira de heróis desta família. Resta-nos aprender a transcender as palavras literais da Sônia para abraçar seu significado imaterial e simbólico. Não importa o que ela lhe tenha dito. Não importam as palavras exatas que ela usou. O que importa é o espírito com que ela sempre se manifestou, com o coração. O que importa é que nada mais importaria para a Sônia do que sermos todos felizes. O que importa, para Thauan, Thalles, Mauro, Leonor, Ana, Tania, Vania, Mário e todos os cunhados, Taty, Bachega e todos os sobrinhos, Keila, Lúcia e todos os primos, é que honremos a memória da Sônia, imitando-lhe a mesma grandeza de coração, o mesmo desprendimento pelo próximo, a mesma vontade de viver e ser feliz. A Sônia nos ensinou a viver e a morrer. Ela simplesmente nos precede. E, quando chegar a nossa hora, devemos ir com a mesma dignidade e coragem, com a mesma firmeza de decisão em seguir o que o coração nos pede. Se seguirmos seu exemplo, vamos todos nos consolar com a esperança de um reencontro feliz. E ainda que nos falte essa esperança num dia escuro, de chuvas inclementemente frias e desnorteadoras, podemos nos consolar com a lembrança de uma vida absolutamente extraordinária, com a lembrança dos momentos felizes em que a Sônia cuidou de nós ou nos incendiou com um lampejo de sua alegria e vigor. Vamos ser fortes, vamos ser felizes, vamos cuidar uns dos outros, sem nunca desistir, sem que nos arrefeça o ânimo, sem que cedamos ao cansaço ou às justificativas implausíveis. Não podemos decepcioná-la. Ela nos arrancaria o coração se o fizéssemos... A Sônia se vai, mas não a sua memória, não a sua força! Que Deus nos ajude, portanto, a ser fiéis ao seu espírito de amor e dedicação.

O peso dos dias


por Milton L. Torres

O que pesa mais? Um mês ou dez anos? Eu sei que você será tentado a responder, à queima roupa, que o peso de dez anos ultrapassa, em muito, o peso de um simples mês. Por favor, detenha-se. Não se precipite. Há que considerar o que significam esses espaços de tempo. É possível que, no impasse das épocas, a década não se compare ao mês...
De que década falamos? De que década poderíamos falar? A última década? Os dez últimos anos de felicidade ingênua, atalhados por situações de aflição e desapontamento, mas ainda válidos por causa dos carinhos e cuidados, as pequenas e grandes demonstrações de afeto, os prazeres só aparentemente passageiros e medíocres, os sacrifícios em prol de prêmios e recompensas singelas, mas sempre, de alguma forma, gratificantes... Estes dez anos cujo ciclo fechou há um mês: a década de construção, renovação, idas e vindas, débitos e saldos, viagens para perto e para longe, para dentro e para fora, para bodas e celebrações, ou simplesmente para cumprir planos e metas. É essa época que não nos sai da memória, é dela que falamos. Falamos de dez anos de sorriso nos lábios, emoção no peito e esperança à flor da pele. Foram abraços apertados, olhos nos olhos, sempre acessíveis, sempre emparelhados para deixar claro o alcance ilimitado da paixão e da loucura quase infantil de amar com tanta intensidade, até a dor dos ossos. Como poderiam dez anos de presença ser mais leves do que os meros trinta dias que compõem um mês? Talvez você ache que nem precisa ler o resto, pois o peso dessa década arqueada com tantas promessas e sonhos afunda e engole a balança de qualquer avaliação ligeiramente justa ou totalmente imparcial...
Mas espere! De novo, é preciso não se precipitar. Escute de que mês falamos. Atenção para estes trinta longos dias de silêncio e solidão, sem que o telefone toque, sem que se ouça a voz do peito nem se veja a fisionomia familiar. São trinta sofridos dias de reclusão, sorvidos, na penumbra, como se fossem as gotas amargas de uma poção fatal, como se bebêssemos as próprias lágrimas misturadas com fel e vinagre. Falamos da sufocante verificação da falta. Falamos do mês sem, o mês vazio, o mês trôpego dos nossos tropeções e quedas em que resvalamos na tristeza e na dor. Falamos de um mês, abril, que se fechou, como fecha o céu em tempestade, como se fecha a cela dos condenados, sem esperança de indulto ou recuperação. É o peso deste mês que a nossa balança mede e, descalibrada como possa ser, não lhe é facultado dizer outra coisa senão que este mês é o mais pesado de todos os que o antecederam nestes dez, vinte, trinta anos... A balança não mente. Não ousa mentir. Não ousa passar por alto o peso dos corações órfãos deste mês que pesa uma tonelada, mil toneladas.
Nossa década não pode se transformar em mês. Não se reduzirá jamais aos trinta curtos dias de uma fantasia que não podemos conceber. Quem dera pudéssemos! Este mês vai, porém, se transformar em década. E, à medida que seus dias inclementes avançarem, seu peso talvez se esvazie até o tamanho do nada. Talvez! Provavelmente não.