Thursday, December 29, 2016

Chegou o ano novo


por Milton L. Torres

                Chegou o ano novo, e nós chegamos com ele. Podíamos ter ficado pelo caminho, como outros ficaram. Mas não ficamos! Aviões caíram, mas nós seguimos voando. Estrelas se apagaram, mas nós seguimos brilhando. Vozes silenciaram, mas nós seguimos cantando. Queridos adormeceram, mas nós seguimos acordados. E isso não é mérito nosso. Se seguimos, é porque foi a nossa vez de receber misericórdia, como no caso daquela tartaruguinha recém-nascida que, num ato de bondade aleatória, um estranho lançou ao mar para fazê-la viver, crescer, experimentar o sabor das ondas e se apaixonar pela vida e pelos vivos. Somos tartaruguinhas recém-nascidas que faremos o que for preciso para continuar vivas no balanço das ondas...
                Só que não! Se refletirmos bem, não será nem um estranho nem um ato aleatório de bondade que nos impelirão a boiar e nadar e dar braçadas enérgicas nos primeiros minutos do ano de 2017. Será o nosso Amigo, Aquele que nos conhece muito bem. Ele gosta de fazer isso. É o Seu costume. Passa o réveillon na praia, tentando salvar o máximo possível de tartaruguinhas enrugadas e míopes. Algumas nem se dão conta de que são salvas, mas é Ele que as salva, todas elas, todos nós. Podemos até não lhe sentir o abraço protetor, as mãos firmes e ternas, mas é sempre Ele que nos impele. Estamos aqui hoje porque Ele nos escolheu. E, se Ele nos escolheu, é porque tem fé em nós! Ele sabe que, neste novo ano de 2017, podemos fazer a diferença na vida dos outros, como Ele faz a diferença em nossa vida. Ele sabe que nossa tendência é nos recolher à segurança do nosso casco, nos acomodar aos passos lentos com que nos deslocamos de um lado para o outro e sucumbir à miopia que praticamente nos obriga a enxergar apenas o que nos está diante do nariz e, às vezes, nem isso.
Ele sabe. E, por isso, Ele nos oferece a metáfora de um ano novo, que, na verdade, não é nada diferente do ano que acabou. Os dias são os mesmos 365, os meses são os mesmos 12, as semanas são as mesmas 52! As febres são as mesmas, as fomes são as mesmas, o cansaço é o mesmo, o trabalho é o mesmo, a casa é a mesma, a família é a mesma, até o corpo é o mesmo! Mas é porque o nosso Deus também é o mesmo, que a metáfora vale. É um novo princípio, uma nova chance: a nossa oportunidade! No dia da nossa alegria, no dia da nossa comemoração, no início dos nossos meses, devemos tocar a trombeta e nos lembrar do Senhor (Nm 10:10). No início do nosso ano, devemos tocar a trombeta e nos lembrar do Senhor. No primeiro dia do resto da nossa vida, devemos tocar a trombeta e nos lembrar do Senhor.

Fomos escolhidos! Estamos escalados para mais um ano. Quer você se sinta como a tartaruga enrugada e míope da minha analogia, ou melhor, ou pior, ainda pode sair em direção às ondas, ainda pode escolher o mar, ainda pode escolher a vida, ainda pode decidir hoje que, em 2017, você não vai desistir, que você será mais feliz, mesmo que as condições sejam até mais desfavoráveis. Com um sorriso nos lábios, eu o convido a tomar a trombeta e fazer com que ela soe alto. Eu o convido a se lembrar. Eu o convido a recordar os momentos felizes da vida: o primeiro passo, o primeiro passeio de bicicleta, o primeiro beijo, a primeira volta no automóvel, a primeira vez, a primeira braçada no mar... Eu o convido a querer tudo de novo: um novo passo, um novo passeio de bicicleta, um novo beijo, uma nova volta no automóvel, uma nova vez, uma nova braçada no mar, um novo ano! Eu o convido a tocar a trombeta!

Tuesday, September 13, 2016

Esta é minha Bíblia

por Milton L. Torres

Eu costumo iniciar as minhas pregações com a seguinte declaração:

"Esta é a minha Bíblia. Eu sou o que ela diz que eu sou. Eu posso fazer o que ela diz que eu posso. Hoje, vou aprender a Palavra de Deus. Minha mente está alerta, meu coração está receptivo. Hoje eu vou ser transformado. Nunca mais serei o mesmo. Pois vou receber agora a incorruptível, a indestrutível, a eterna Palavra de Deus. Em nome de Jesus. Amém."

De fato, o texto não é originalmente meu. Joel Osteen, pastor da maior igreja evangélica dos EUA, localizada em Houston, no Texas, costuma dizê-la em inglês. O texto varia um pouco, mas o cerne é:

"This is my Bible. I am what it says I am. I can do what it says I can do. Today, I will be taught the Word of God. I boldly confess: My mind is alert, My heart is receptive. I will never be the same. I am about to receive The incorruptible, indestructible, Ever-living seed of the Word of God. I will never be the same. Never, never, never. I will never be the same. In Jesus name. Amen."

Osteen defende uma teologia de prosperidade que crê que, se pensarmos de forma positiva, Deus nos dará Suas boas dádivas. Ele baseia essa ideia numa tradução bastante peculiar de Colossenses 3:2. Por isso, recebe algumas críticas. Há, inclusive, uma paródia de sua declaração que é mais ou menos assim:

"Esta é uma Bíblia. Eu sou o que ela diz que eu sou: um sujo, miserável, pecador que odeia a Deus. Eu tenho o que ela diz que eu tenho: um coração corrupto capaz apenas de desprezar o Senhor que me criou e me sustenta. Eu posso fazer o que ela diz que eu posso: obras que, em seu melhor, parecem trapos de imundície para Deus. Hoje vou aprender a Palavra de Deus, mas o meu coração duro não terá nada da verdade, a menos que a graça de Deus venha a intervir. Eu corajosamente confesso que a minha mente é corrupta e meu coração depravado. Que Deus te abençoe, em nome de Jesus. Amém."

Apesar dessas críticas, vejo um lado bastante positivo na declaração: o fato de que ela aponta para a validade da leitura da Bíblia e da confiança em Deus, quando buscamos transformação. Sendo assim, é provável que eu a continue usando nas vezes em que tiver a oportunidade de fazê-lo.

Wednesday, August 24, 2016

Resenha: Platão e a Educação

PAVIANI, Jayme. Platão & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 126 p.

por Milton L. Torres

Paviani (2008, p. 7-10) reconhece as dificuldades de se ler Platão, mesmo assim, defende os benefícios de um retorno ao antigo filósofo. Para ele (p. 11-13), Platão foi uma importante testemunha da condenação de Sócrates, desapontamento que o levou a viajar pelo mundo a fim de testar suas ideias educacionais e filosóficas. Apesar de sua desilusão com os maus resultados que teve, inventou a dialética e promoveu o diálogo a gênero literário. Seu pensamento foi especialmente marcado pela tensão entre o concreto e o abstrato, seu interesse metafísico, sua propensão pedagógica e ética, e seu idealismo. Por isso, Paviani (p. 23) indaga: como ler Platão hoje? Sua resposta passa por assinalar problemas contemporâneos que são similares aos da Grécia antiga: pensar filosoficamente a educação como problema de Estado, para formar moral, política, dialética e filosoficamente os cidadãos.
Os diálogos filosóficos foram o principal instrumento platônico para discutir a educação, mas assumiram caráter distinto a depender da época de sua produção. Os diálogos aporéticos da juventude contemplam as grandes questões sem lhes propor uma solução final; os diálogos da maturidade revelam o idealismo platônico; enquanto que os últimos diálogos, mais comedidos, apontam para certa desilusão política. Todos eles exibem, porém, algumas características consistentes: o objetivo educacional, a atitude irônica e a tendência interrogativa (PAVIANI, 2008, p. 29-33).
A educação moral em Platão depende do conceito de arete, o ideal da virtude heroica, e da ideia de natureza (essencialismo). Trata-se de processo ético e político. A forma como o filósofo se posiciona a esse respeito reflete o ambiente educacional de Atenas, no qual havia certa dependência da ideia de uma paideia (“formação”) intrinsecamente ligada à poesia de Homero (PAVIANI, 2008, p. 39-42) e o advento dos sofistas, criadores de uma pedagogia utilitarista, de quem Platão deplora a ênfase retórica e o relativismo (p. 43-46). É o momento da profissionalização e institucionalização da educação e Platão, por isso, se rebela contra a educação tradicional, propondo, em seu lugar, a fundamentação metafísica para um projeto educacional (PAVIANI, 2008, p. 47-51).
No embate do Sócrates platônico com os sofistas, a grande questão é se é possível educar. O otimismo e o relativismo destes contrastam com o toque aparente de ceticismo deste. Paviani (2008, p. 55) enfatiza que parte da razão pelo fracasso educacional de nossa época reside, em certa medida, de não termos conseguido imitar o entrelaçamento platônico entre formação intelectual e enfoque ético. Apesar de suas dicotomias nem sempre defensáveis, parece que Platão, segundo Paviani (2008, p. 57-64), representou um meio termo entre o relativismo (de Protágoras) e a objetividade excessiva (de Parmênides).
Paviani (2008, p. 65-69) lamenta o juízo equivocado de Platão que o levou a rejeitar, na República, a arte como parte do processo educativo: a ignorância de que poesia é ficção e não realidade. O lado positivo desse equívoco foi a proposta de uma reforma educacional de base metafísica que subordinou a arte, suplantada pela filosofia, à episteme (seu antídoto contra o relativismo e a mimese), desbancando o valor do senso comum. O lado negativo foi a implantação de uma censura abrupta que privilegiou o ético, político e pedagógico, em detrimento do estético. De qualquer forma, o resultado foi a essencialização da função ética, política e pedagógica da educação.
Para isso, foi necessário que Platão criasse uma metodologia a partir da influência de conceitos socráticos como os de maiêutica e anamnese. Privilegiando a razão e as situações concretas, o filósofo desenvolve uma teoria da aprendizagem que afirma que, por meio do respeito às etapas e da formação de hábitos, é possível ensinar. Essa ideia da educação como uma espécie de treinamento é especialmente perceptível em Leis, sua última obra. Também se percebe, em Platão, uma preocupação constante com a retórica sofista, considerada perigosa por sua ênfase relativista e seu menosprezo à racionalidade, à dialética e à dimensão divina (PAVIANI, 2008, p. 65-81).
O amor seria, então, o objeto da pedagogia, dada a relação entre eros e logos. De fato, no Banquete, o Sócrates platônico define o amor como uma espécie de busca pedagógica (PAVIANI, 2008, p. 82-86). Nesse sentido, o uso platônico dos mitos rompe momentaneamente com a dialética e reflete sua vocação para a narrativa. O mito da caverna, por exemplo, fornece-lhe um núcleo metafísico para sua concepção epistemológica, ética e política. Sua teoria pedagógica acaba, portanto, valorizando a reflexão, demonstrando interesse político, estimulando as ciências, promovendo a dialética, assumindo feições idealistas e desconfiando da ideia de prazer (PAVIANI, 2008, p. 91-97).
Segundo Paviani (2008, p. 99-107), os principais diálogos platônicos sobre o tema da educação são o Mênon (sobre a virtude e a anamnese), o Protágoras (sobre a virtude e a crise educacional), a República (um seminário sobre ideologias) e Leis (um projeto pedagógico), sendo suas características mais comuns a estrutura dialética, a superação de contradições e aporias, e a passagem da opinião para o conhecimento científico. De modo geral, Paviani trata, com bastante destreza e rara capacidade de síntese, a perspectiva platônica da educação e nos dá uma visão panorâmica e coerente de seu projeto educacional.

Friday, July 15, 2016

Mentalidade de Morcego


por Milton L. Torres

           Não sou de reclamar da vida. Prefiro gastar minhas energias, celebrando-a. Hoje quero, porém, falar com o ombudsman. Como a gente só vive uma vida, tem que acertar tudo da primeira vez. Se a gente pensar bem, não parece certo. Por isso, tanta gente acredita em reencarnação, divórcio e vida após a morte. O que todo mundo quer, afinal das contas, é uma segunda chance...
          Não seria muito melhor se a gente tivesse a possibilidade de um ensaio antes de a coisa ser para valer? A gente nascia, crescia, fazia todas as asneiras que a gente sempre faz, parava, apertava reset e começava tudo de novo, pelo menos uma vez. Eu sei, muita gente ia querer ficar apertando reset toda hora. Ia ser preciso limitar. A gente colocava explícito nas regras: uma única vez, que nem acontece com os salvo-condutos que os calouros ganham nos programas musicais da televisão.
        Outra condição: a gente ia precisar lembrar de tudo. Assim, não seria difícil repensar as escolhas e, na segunda vez, fazer a coisa certa ou menos errada. Com isso, a gente descarta as encarnações e as almas penadas. Para que serve viver outras vidas? Eu não tenho vocação para barata, nem avestruz, nem bezerro. Não quero virar o Gasparzinho da esquina. O que eu quero é viver a minha vida de novo, melhor, mais sábio, mais perspicaz. O que eu preciso é de mais intuição, a sensação, ainda que tênue, de que há alguma lógica no que acontece conosco, de que dá para evitar as trapalhadas, quando eu tropeço nos meus próprios passos, e as atrapalhadas, quando eu faço as outras pessoas tropeçarem.
           De fato, quando paro para pensar, eu me sinto um morcego, olhando o mundo de cabeça para baixo, sem conseguir consenso, nem simpatia. E é como se eu fosse o último morcego do mundo, o único da minha espécie, dependurado ali na viga que sustenta a vida, com os olhos arregalados e míopes.
          Acho que a vida é especialmente injusta com os jovens. Eles têm que tomar tantas decisões importantes quando estão menos preparados para fazê-lo. Sorte a do Benjamin Button, que escapou disso! E não adianta a gente falar. A razão, inclusive, por que não se deve falar a surdos é que eles não ouvem...
Quer saber de uma coisa? Eu sou favorável às segundas chances. Devíamos inventar um novo tipo de divórcio, um divórcio para filhos. Seria mais ou menos assim: depois de passar a infância ou a adolescência com os pais, os filhos deviam poder entrar com pedido de divórcio e, depois disso, procurar pais novos, mais do seu agrado! Podiam fazer que nem Heródoto falou dos leilões de Babilônia em relação às belas e às feias. Compareceriam, acompanhados, ao leilão os filhos que queriam se divorciar dos pais e os pais que queriam se divorciar dos filhos. Os filhos ofereceriam os pais descartáveis para adoção. Assim, os filhos que também estavam sendo descartados podiam adotar esses pais. Depois, os que haviam feito o descarte podiam se adotar mutuamente. Isso poria fim às incompatibilidades e todos poderiam ser felizes, sem dores, a não ser a do descarte. Mas o que é uma dorzinha de nada quando a cirurgia plástica vai resolver o seu problema de um nariz protuberante e grotesco?
Não precisa fazer cara de espanto. Estou mesmo levando a sério essa história de mentalidade de morcego. Se você não concordar comigo, não se preocupe. Simplesmente continue a viver a dignificada vida de ser humano normal, sem dar muita atenção aos guinchos que ecoam da minha parte escura do poleiro. Porém, se você se sente às vezes assim, seja bem-vindo. Tem muito espaço aqui do meu lado. Mas aviso logo: de cabeça para baixo, a gente está sujeito a vertigens...

Wednesday, April 20, 2016

Rotas


Milton L. Torres

Não que eu seja um homem-bala; nem, querendo me passar por outro, eu diga que é mansa a minha fala. Não sou nem este, nem aquele. Não sou tanto, nem tão pouco. Sou só isto que vocês veem: talvez tão perdido no espaço, tão desapercebido da vida, tão mal acomodado no tempo, que fico assim, a ver navios. É só por acaso, fatalidade inesperada da indigestão ou da insônia, que me dou conta das coisas. Para mim, a ficha cai num relance, de modo brusco, nunca plenamente. Mas não são só navios que vejo. Estes olhos pequenos, as frestas de luz do meu horizonte, às vezes capturam vultos ameaçadores que se agitam diante de mim ou me roçam os braços, as pernas, o corpo. Se ao menos eu pudesse entender os sinais mudos de sua algazarra paquidérmica...
Tanto movimento, tanta revolta e acrobacia! E eu parado, à deriva, esperando por um desses navios que vejo o tempo todo. O oceano ondula, enquanto a carcaça se agarra à prancha sinuosa, um labirinto após o outro. Subo e desço, como todo mundo, mas com mais vigor, debatendo-me. Se tudo se resumisse a isto, levantaria os braços para o céu e abraçaria as nuvens. Abriria os poros, a boca e o nariz, escancarando a alma e me deixando invadir pela seiva leitosa e sufocante que me afogaria. Não existe comunicação; não é possível a convivência com criaturas de esferas distintas e forasteiras, em rota de colisão. Não sou destas águas e estas algas não são minhas. Não me servem e não lhes sirvo. Nesta situação, somos simplesmente inúteis, incomunicáveis.

Ainda assim, a ruidosa maré fria tem seus próprios planos. As águas continuam a se mover. Elas não param nunca; e eu, embalado por seu mexe-mexe, tão serenamente inquieto quanto sempre fui, vou me aproximando...  Por um momento, chego a antecipar o voo, prevendo que os pêndulos de meu corpo flutuante me forneceriam o impulso para um salto em direção ao sol. Não é preciso. A aflição não dura. Um mar de ódio e, apesar disso, o verde aquoso desse abismo aparentemente sem fim se dissolve e desaparece na imensidão azul do céu, mais volumosa e desmedida. É que o chamado das gaivotas supera o tumulto da ressaca. Não careço de resgate. Há monstros na água, mas são inofensivos, inoperantes. Faltam-lhes as mandíbulas fenomenais que poderiam arrasar minha felicidade. Em meu breve pouso sobre a agitação das águas, divirto-me com as manobras desengonçadas de sua monstruosidade. Seu berreiro nada significa para mim. Já ouvi o canto das gaivotas; já ouvi a voz dos sócios. Estou pronto para voar de novo, sem rota de colisão, nesta imensidade azul. Estou desejoso! Quero voltar para o meu bando. Quero voltar para vocês!

Thursday, March 24, 2016

Quatro razões

por Milton L. Torres

Vivemos tempos difíceis. Parece que está se tornando impossível a gente transpor barreiras pessoais e afetivas. Estamos encurralados cada um em sua gleba, sem vontade de sair, sem apetite de viver. Em meio a essa passividade crônica e aparentemente irreversível, nós nos odiamos e desprezamos, nós nos distanciamos com um aceno leve da mão esquerda, sem constrangimento nem reserva. Simplesmente ficamos lá, à deriva, bradando nossos credos e filosofias artificiais. Por isso, estou convencido de que, se não houver uma reforma radical no nosso modo de ver a vida, a tecnologia, as redes sociais e, principalmente, um ao outro, nunca deixaremos nosso beco sem saída favorito: nossa própria forma compenetrada de ser e pensar.
Sabe o que eu defendo? Temos que transpor nossa obsessão pela monetarização da vida. Temos que sair do conforto de nossos sapatos engraxados e pôr o pé no chão! Trocar o virtual pelo real e tangível. É preciso deixar a fila indiana para caminhar lado a lado, de mãos dadas, abraçados. E eu não estou falando de política, a arte de fingir interesse por outra coisa que não o próprio bolso. Estou falando da vida na rua, nos supermercados, nos engarrafamentos, nos salões de festa, nas igrejas, nos bares, em qualquer lugar onde haja gente, até no deserto do Atacama!
Quem me conhece sabe que não tenho a reputação de ser politicamente correto. Então, não entenda essas minhas palavras como tendo a intenção de parecer polido ou civilizado. O que eu quero, como sempre, é agitar as águas, quebrar o marasmo! Temos que abandonar o chavão de que não importa quão estúpidas e tolas sejam as nossas decisões, porque, no final das contas, elas vão todas contribuir para o nosso bem. Já faz tempo demais que somos guiados por convicções chauvinistas, oportunistas, capitalistas! Por que não decretar uma ecclesiazusae universal e ceder aos reclamos de quem tem, de fato, condições de nos mostrar a famigerada luz no final do túnel? Não, não estou fazendo nem média, nem comédia. Estou falando sério. Da minha parte, estou disposto a lutar para que as mulheres dominem o mundo. Convencido como estou de que sua sensibilidade e sensatez nos tirariam das águas pantanosas em que caminhamos agora, proponho a entrega incondicional de nossos sentimentos, anseios e preocupações ao cuidado de quem mais se importa conosco. Não é porque a Dilma não está fazendo um bom governo que vou deixar de insistir na minha ideia. O problema da Dilma é que ela se vendeu para o outro lado, deixando de confiar em seu infalível sexto sentido feminino. Em vez disso, ela confia agora em conchavos políticos, transações clandestinas e retórica vazia.
Eu quero lhe dar quatro razões que explicam por que estou convencido de que as mulheres deveriam governar o mundo. Se você tiver paciência e boa memória, não duvido que você também chegue a essa bem acertada conclusão. A primeira razão se chama Leonina. No meio século da minha existência, não encontrei outra pessoa igualmente merecedora do título, pois o nome era mais do que um nome; era uma descrição, um epítome! Mangas sempre arregaçadas numa imbatível disposição para o trabalho, ela falava com a confiança absoluta de que estava sempre certa. E estava! Se fôssemos apenas mais dóceis e tivéssemos consentido em pautar a vida por suas decisões, teríamos sido felizes. Não fomos. Nem dóceis, nem felizes. Mas ela exsudava esse ar soberano de quem vê adiante na estrada, de quem conhece o terreno, de quem se dá conta de que tem forças mais do que suficientes para vencer o próprio demônio ou todas as suas legiões de criaturas ameaçadoras. Não pestanejava hora alguma, sorria com facilidade e, se fosse necessário, rugia. Nesses momentos, escondíamo-nos todos, filhos e netos, debaixo da mesa ou nos recolhíamos todos à insignificância de nossa vida sem convicção, desejando apenas que, um dia, pudéssemos ser um reflexo daquela grandeza bruta. A primeira razão é a força.
A segunda razão se chama Milta. Agora falamos de um tipo completamente distinto de força: a da suavidade grácil de ares marotos, mas sinceros, a capacidade de imaginar vidas, lendas e circunstâncias que a impelia a voos rasantes de (in)felicidade, numa alternância criativa em que a única adesão que não esmorecia nunca era sua vocação para o amor irrestrito e fácil, abundante e gratuito. Em sua tristeza ocasional ou alegria singela, influenciava a natureza, a vida, o ritmo das coisas e, como uma Schneewittchen da vida real, nos inspirava ou com o silencioso canto da alma ou com visões de bem-aventurança eterna e permanente. Se os ventos não lhe obedeciam, ela inventava novos. Se o dia amanhecia tenebroso, ela o enchia de expectativa e fé. Seu condão era o sorriso alvo e delicado nas feições de um afeto imperturbável. Jamais me desmanchei tanto diante de um riso. Jamais me aproximei de outro poço tão generoso. Jamais desejei tanto o poder de reciclar o coração como se fosse apenas um apêndice espontaneamente regenerado quando alguém, por má fé ou indiferença, não se incomoda em destruí-lo e esmagá-lo. A segunda razão é a sensibilidade.
A terceira razão se chama Tania, sem acento. Nela, encontro a mão que segura a minha mão, na hora da cobrança de pênaltis, quando o campeonato vai ser decidido, na hora em que o espinho de uma rosa ou outro arbusto qualquer me atravessa a unha e, provavelmente, na hora em que o último raio de luz me fizer apertar os olhos espantados e tristes, na hora do angelus. Nela, encontro o ombro no qual me apoio quando me faltam pernas e as granadas assobiam à nossa frente, quando me falta a coragem para dar mais um passo porque os meus monstros se posicionaram, estrategicamente, à minha frente e à minha volta. Seu beijo promete, nessa mesma hora, um sopro de vida, a lufada de ar que prolonga, desde então, o nosso destino, conferindo-nos a imortalidade desse grande amor, dessa devoção completa, dessa entrega final. A força da presença deliberada, o vulto que me acompanha na viração do dia e na alvorada, esse comparecimento definidor me molda e me alça além da estatura que me caberia, que me contentaria, que me limitaria. A terceira razão é o amor.
                A quarta razão se chama Krícis, essa incógnita absoluta que me intriga mais do que as outras razões, que se debate no meu colo, enquanto sorve o ar cada vez mais rarefeito e elevado, perfeito. Anima, ao mesmo tempo, um segredo doce, sussurrado por vozes abafadas e veludosas, que apontam suavemente para a direção determinada. Essa força discreta me toma pelo colarinho, pelo pescoço ou pelas mangas da camisa, como se em um ringue de almofadas e tapetes aconchegantes, e me obriga a ver, a compreender e a capitular. Na resistência fútil com que enfrento seus caprichos geniais e a paixão que ela mesma não consegue conter, vejo um reflexo invertido, mas nem adverso nem antagônico, que projeta, duplamente ao avesso, a minha própria imagem. Essa ingenuidade tensa e resoluta ainda há de salvá-la e há de me salvar também. A quarta razão é a simplicidade, na forte inclinação para alcançar o que se deseja e na indicação exata do que deve e precisa ser feito.
                Como você vê, eu tenho razões de sobra para querer que as mulheres dominem o mundo. Se você não tem essas razões, só posso lamentar por você. Se você as tivesse, saberia o que está perdendo, compreenderia sua carência e destituição. Se você as tivesse, talvez desertasse, sumária e irrevogavelmente, para o meu ponto de vista. O que me resta a fazer é desejar que você encontre essas razões. Quando as encontrar, não precisa esperar um decreto governamental ou uma nova constituição. Não precisa aguardar a oficialização desse novo estado de coisas. Simplesmente faça como eu. Aja como se o mundo já fosse governado pelas mulheres e, com um sorriso e uma prece, agradeça a Deus por essa iluminação.


Tuesday, February 02, 2016

Resenha: A Cabana

YOUNG, William Paul. A cabana. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

por Milton L. Torres

 Comecei a ler A cabana anteontem às 22h e terminei às 9h de hoje. Foi uma leitura intensa, realizada de um golpe só. Eu tinha bons motivos para ler o livro: minha filha o recomendara e havia encontrado, na internet, uma citação sobre perdão que alguém tinha tirado do livro e que tinha despertado o meu interesse. Gostei muito do livro. Com isso não quero dizer que o autor tenha conseguido escapar à tentação de ser sentimentaloide ao explorar temas tão melodramáticos quanto a fé religiosa, o perdão incondicional, o amor paterno e a esperança. Por outro lado, ele conseguiu me manter engajado e curioso. Em alguns momentos, algumas lágrimas até me escorreram pelo rosto.
 Para quem tem uma filha, é inevitável que o enredo nos prenda. Durante um acidente no rio perto de um acampamento num parque florestal, uma menina, Missy, é raptada e morta por um maníaco. Suas roupas ensanguentadas são descobertas em uma cabana abandonada, mas o corpo não é encontrado. Após quatro anos de uma tristeza profunda, Mack, o pai, encontra um bilhete na caixa de correio, supostamente de Deus, dizendo que deveria voltar à cabana para encontrá-lo.
 Mack volta à cabana para o encontro com Deus e, no tempo em que passam juntos, Deus lhe aparece como uma mulher negra com propensões culinárias, que se apresenta como Elousia ou, como era sua preferência, Papa, o nome pelo qual a esposa de Mack costumava se referir a Deus (conforme aparece na versão em inglês). Papa se faz acompanhar de Jesus e Sarayu, o Espírito Santo. O homem, não sem alguma relutância, se afeiçoa aos três personagens. Com isso, ocorre uma teodiceia, o esforço para provar a justiça de Deus diante dos fatos pertinentes à tragédia que havia vitimado a menina.
 Essa defesa de Deus se torna o grande desafio do autor. Seu sucesso só pode ser avaliado pelo fato de conseguir manter a atenção do leitor enquanto busca esse alvo. E isso ele consegue, entre outras coisas fazendo Mack caminhar sobre as águas com Jesus, dando-lhe a oportunidade de vislumbrar Missy brincando no céu com os sonhos dos irmãos adormecidos, dando-lhe a oportunidade de voltar no tempo para se reconciliar com o pai violento e, sobretudo, oferecendo-lhe a oportunidade de perdoar o brutal assassino de sua filhinha.
 O tema do perdão é tão importante quanto o da teodiceia. De fato, as frases mais profundas do livro revolvem em torno desse assunto: “perdoar não significa esquecer... significa soltar a garganta da outra pessoa” (p. 209), “talvez você tenha de declarar seu perdão uma centena de vezes no primeiro e no segundo dia, mas a cada dia serão menos vezes, até que um dia você perceberá que perdoou completamente” (p. 212). Perdoar o assassino se torna ainda mais difícil quando Papa mostra a Mack onde estava escondido o corpo de Missy. Mesmo assim, ele consegue.
 No final, Papa dá a Mack a opção de ir para o céu ou voltar para os familiares, que é o que ele decide. Na volta para casa, sofre, porém, um acidente na estrada que o deixa desacordado por vários dias. Durante a convalescência, Mack conta tudo ao melhor amigo, Willie, que é, de fato, quem narra o livro. Depois disso, Mack leva a polícia ao local onde o corpo estava e, com isso, os policiais conseguem localizar outras vítimas e prender o criminoso.
 Eu sei que outras pessoas conseguiram ver maldade no livro, uma agenda oculta e insidiosa capaz de deformar a imagem que têm de Deus e da Trindade. Confesso que isso nem me passou pela cabeça. O que vi foi o esforço inteligente e reflexivo de fazer sentido do sofrimento e da tragédia. Com certeza, Deus deve ser muito mais do que Young consegue imaginar. Se Ele for, porém, apenas o que Young mostra, já ficarei satisfeito. Como ele, estou convencido de que “não é da natureza do amor forçar um relacionamento, mas é da natureza do amor abrir o caminho” (p. 180). Além disso, gostei de imaginar que a sobremesa favorita de Jesus seja tiramissu (p. 186) e que Deus escute, com Seu fone de ouvido, a música de cantores que ainda não nasceram. “O tempo”, como eu acredito piamente, “não representa fronteiras para Aquele que o criou” (p. 159).
 No decorrer de sua narrativa, Young faz uma crítica pouco velada à religião institucionalizada e aos estereótipos: "religião, política e economia são ferramentas terríveis que muitos usam para sustentar suas ilusões de segurança e controle... Essas instituições, essas estruturas e ideologias são um esforço inútil de criar algum sentimento de certeza e segurança... É tudo falso! Os sistemas não podem oferecer segurança, só Jesus pode!" (p. 166). É compreensível que os que se beneficiam dessas coisas, usando-as para controlar as pessoas, se sintam ofendidos pelo livro. Em vez dessa reação cética, cínica e cáustica, o livro deveria infundir esperança. Afinal, ele prova que “se alguma coisa importa, todas as coisas importam” (p. 232).