Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Carta a mim mesmo.
Este
é um lembrete, na passagem de ano, de que meio século de existência pode me
tornar mais forte do que o tempo, a gravidade, a decrepitude e outras forças implacáveis
que corroem o vigor físico, o ritmo cardíaco da vida e a agilidade mental. Tento
me convencer de que preciso apenas da atitude certa: a de reconhecer, nas
pequenas coisas, que não é a duração da vida que me faz feliz. Ao contrário
disso, é a felicidade que me dá vida. E como não ser feliz? Eu posso até deter
o tempo, por alguns minutos, com a simples lembrança das coisas formidáveis que me
sucederam: as viagens, quer aquelas empreendidas nos meios convencionais de
transporte, quer as da minha imaginação, que me levou mais longe e mais rápido
do que qualquer foguete que já existiu ou existirá. Os livros (de capa a capa),
os poemas (de Homero, Bukowski), as línguas (principalmente o grego),
essa fortuna que eu ajuntei por uma bagatela. Eu posso superar o peso da gravidade
com a leveza de um coração aberto, sensível, esperançoso... Diálogos, conversas
ao telefone, emails recebidos e armazenados em uma pasta intitulada “mensagens
memoráveis”. Posso rejuvenescer com a recordação de beijos, abraços e cópulas,
e com a expectativa de mais beijos, abraços e cópulas. Além disso, com uma
experiência que nunca consegui decifrar, nem no todo nem em parte: a conexão
cerebral, visceral entre professor e aluno. Venço a morte, a cada dia, com a
lembrança desses prazeres ingênuos, o quarto gol já no final do segundo tempo;
a prece desinteressada em favor do outro; os pequenos sacrifícios; os afagos
incondicionais de um cãozinho que, no que diz respeito aos demais seres do
planeta, não passa de uma criatura mal-humorada e tão indiferente quanto um
gato, mas que se desmancha de satisfação ao som de minha voz; a alegria na
realização dos filhos, sobrinhos, parentes próximos e distantes; os encontros
inesperados; letra e música; vislumbres do futuro e, principalmente, do
passado; aspirações... Não há, então, motivos para estar triste, mesmo no
último dia do ano, mesmo aos 52 anos de idade.Monday, January 06, 2020
Carta aos filhos, direto da cápsula do tempo
Último dia do ano 2014 de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Carta aos filhos, sendo um deles casado e a outra solteira, estando
ambos no começo de sua vida adulta e independente ou a ponto de iniciá-la.
Não
escolho a música ao som da qual vocês dançam. Não mais. Não escrevo o roteiro
de suas histórias nem o itinerário de suas viagens. Nunca o fiz; apenas
ensaiava fazê-lo. Vocês estão agora à mercê das próprias escolhas. A
responsabilidade de cada decisão é, agora, inteiramente sua, com uma pequena
pitada do tempero que adicionamos ou deixamos de adicionar à sopa de suas
vidas. Até aqui, vocês foram perfeitamente imperfeitos – e nunca o teríamos
desejado de outra forma: autênticos, autônomos, audaciosos. Ainda assim, em
todas as situações, conviver com vocês foi como estar às margens de um lago
plácido, sem ondas, nem ventos, mas profundo, hipnótico, tranquilizador.
Poucas
vezes talvez se tenha escutado um pai dizer que tenha encontrado almas gêmeas
nos filhos, essa prerrogativa estando geralmente reservada aos grandes amores,
os romances que fazem o coração se apressar, dando-lhe a impressão de que o
tempo passa mais depressa do que gostaríamos, ou que tiram a força das pernas,
fazendo com que amoleçam sob o peso do desejo e da paixão. No entanto, em nosso
caso, os sentimentos são outros. É como se minha alma tivesse se fendido, uma
fração de virtudes e defeitos passando a cada um de vocês, numa imagem ou,
sequer isso, num reflexo. É como se vocês tivessem tomado essa figura grotesca
e tivessem soprado sobre ela uma espécie de purpurina espantosa, capaz de
redimir a caricatura e transformá-la em um quadro elegante. Vocês fizeram isso
com a minha vida e, por isso, eu lhes sou grato.
Outra pessoa, menos avisada das
coisas do coração, quem sabe interprete o fenômeno como um azar da
hereditariedade, um capricho dos cromossomos. Mas eu sei que não. Nenhuma
combinação genética em meus ascendentes, esses antepassados que vocês pouco ou
mal conheceram, poderia ter lhes legado um coração tão generoso, uma mente tão
lúcida, um senso de justiça impregnado de tão boas intenções, um desejo tão
ardente de existir ainda que simplesmente e uma atitude tão respeitosa para com
os mistérios humanos e divinos.
Vocês estão, hoje, onde deveriam
estar. Eu não teria ido mais longe e não estaria tão satisfeito se vocês
tivessem alterado, de forma mínima, seu percurso, acidental ou
intencionalmente. No entanto, algum imprevisto talvez atravesse, algum dia, o
seu caminho: uma decepção, um fracasso, uma indecisão, uma fraqueza ou
desespero. Se isso, por acaso, vier a acontecer, talvez eu não esteja presente
para lhes dizer o que direi agora. Portanto, lembrem-se bem, façam disso uma
recordação a ser guardada na caixa-forte de seu coração: seu sucesso como
pessoas, para os seus pais, depende menos do que vocês conseguirem conquistar
na vida e mais do que vocês conseguirem fazer um pelo outro, por seus filhos e
familiares, e pelos corações que Deus colocar ao alcance de seu toque. De
qualquer forma, não tenho receios: eu sei que vocês saberão o que fazer, mesmo
que eu não esteja lá para observá-los. Eu sei que vocês saberão o que fazer na
proporção mesma em que sabem que são amados. E isso eu posso garantir: vocês
são e sempre serão amados...
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