Sunday, December 17, 2017

Discurso de Formatura para a Turma de Tradutores & Intérpretes de 2017

por Milton L. Torres

         Ser professor é a tarefa mais difícil do mundo, pois nenhum outro emprego exige que nos afeiçoemos às pessoas para, três, quatro ou cinco anos depois, termos essas mesmas pessoas separadas de nós de forma abrupta e, quase sempre, definitiva. Há casos, como o dos enfermeiros, em que genuína afeição acontece, mas por pouco tempo. Não se criam laços, imagino, e as raízes dessa afeição podem ser ternamente arrancadas do terreno fofo em que estiveram plantadas por um intervalo minúsculo de tempo. Com os professores é diferente. Os laços se estreitam, se apertam, se misturam, se entretecem de maneira tão definitiva que é só com sangue que se desfazem, com lágrimas!
         Turma de tradutores e intérpretes de 2017, não quero incomodá-los com os sentimentos de saudade que vocês tão despretensiosamente nos impõem hoje. Afinal de contas, a ocasião exige um espírito mais alegre, um vislumbre mais venturoso do futuro e da vida!  Não estamos aqui para lamentar essa cúmplice proximidade que, sob Deus, nos uniu para sempre, mesmo à distância de milhares de anos-luz, mesmo sob os escombros debaixo dos quais enterramos hoje esses sentimentos de falta e perda! Pelo contrário, estamos aqui para celebrá-los. Estamos aqui para celebrar que não serão mais forçados a fazer nenhuma interpretação sob o crivo de um professor dedicado, mas exigente. Estamos aqui para celebrar sua vitória na impecável, ou quase impecável, apresentação do TCC. Estamos aqui para celebrar o fim de projetos integradores e provas interdisciplinares que portam o exótico nome de uma velha tia rabugenta! Estamos aqui para celebrar que não precisarão entregar nem mais uma linha para a Ana Schäffer, nem mais um memorial para a Tania Torres. Estamos aqui para celebrar que não terão que cantar nem mais uma música para o Édley, não terão que representar nem mais uma peça de literatura brasileira, portuguesa, inglesa, norte-americana ou grega! Não terão!
         O que vocês terão que fazer, doravante, será muito mais complexo e desafiador. Vocês se emaranham hoje nesta impenetrável, inquebrantável, inesquecível teia de sentimentos e sonhos. Resta-lhes, a partir de hoje, um único professor: a vida! Resta-lhes, a partir de agora, uma única prova: o caráter! Resta-lhes, a partir de agora, um único olhar em direções comensuráveis: para frente, para o alto, para dentro, para o amanhã. Não há como prever quantos viverão, quantos sobreviverão, quantos serão, de novo, amados e quantos amarão. Só posso, ao invés de lhes dar essas garantias, convidá-los a olhar para trás toda vez que forem tentados a ceder à dúvida. Lembrem-se do orgulho com que cada professor os observa hoje. Lembrem-se do meu tom de voz. Lembrem-se! Porque, ainda que se passe uma eternidade até o nosso próximo encontro, seus nomes agora têm significado: Marina, Débora, Giovana, Naty, Vítor, Hanna, Karina, Luma, Laíza, Alexandre, Benjamin, Viviane, Thaís, Évelyn e César. Essas palavras deixaram de ser meros hipocorísticos, como diria a Naty, e se transformaram em nomes mágicos, abre-te-sésamos da minha vida.
         Obrigado por vocês existirem. Obrigado por vocês terem trazido riquezas incalculáveis para a vida no aquário. Obrigado por vocês tangerem, hoje, tão profundamente as cordas que embalam o nosso sonho, que é, principalmente, ter-lhes ofertado de volta um pouco do muito que vocês nos concederam com seus sorrisos, olhares, gestos, perdões e, acima de tudo, sua atenção benevolente. Sentimos que, de modo estoico, vocês se esforçaram para ouvir nossas historietas, essas bravatas e lugares-comuns com as quais entupimos seus ouvidos e mentes. Vocês nos fizeram sentir importantes. Isso só demonstra sua nobreza e aptidão para o bem, herança certa e líquida da educação que receberam em casa.
         Vocês vão agora e levam consigo um pedaço grande do nosso coração, provavelmente os 250 gramas que o Mercador de Veneza recomenda. E nós, professores e amigos, ficamos aqui para viver a vida com os 50, 60 gramas de coração que nos restam. Não precisam inventar novas tecnologias, não precisam fazer propaganda enganosa, não precisam descobrir a cura do câncer, não precisam ficar milionários antes dos quarenta anos de idade nem serem os primeiros astronautas a colocar os pés em Marte. Não precisam. Podem até fazer essas coisas. Mas não precisam. Considerem esse volume do nosso coração como um empréstimo, a peso de ouro, cujo pagamento exige apenas uma coisa: que vocês sejam felizes!





Wednesday, November 15, 2017

A reação do professor


por Milton L. Torres

                Se todos os alunos que eu tiver de agora em diante, até a minha aposentadoria, resolverem me odiar e decidirem me fazer todo tipo de pirraça e desfeita em sala de aula, no cômputo geral, eu direi que fui feliz como professor. O afeto que recebi até hoje dos alunos é avassalador e garante que nenhum complexo de inferioridade me persiga. Posso dizer, de boca cheia, que fui tão amado quanto amei!
                Se você já leu alguma linha que eu tenha escrito no passado, sabe duas coisas: que eu sou meio dramático para falar das minhas experiências como professor e que sou absolutamente sensível ao que se passa na sala de aula, especialmente quando isso afeta os meus alunos. Aliás, considero os momentos da aula como os mais sagrados do dia. Nada me dá mais prazer do que ser testemunha do despertar das mentes jovens para as línguas, a literatura, a filosofia e a vida! Afinal de contas, o que são essas coisas senão a mais autêntica manifestação da existência?
                Se você não entende por que eu estou falando dessas coisas agora, eu explico. Ontem alguns alunos se organizaram para me fazer uma demonstração de carinho, que poderia ter sido uma homenagem por eu ter sido seu professor conselheiro deste semestre, ou pelo fato de meu aniversário ter sido há alguns dias, ou uma despedida do coordenador que deixará a função no final do ano. Não foi nada disso. Foi uma espontânea e, para mim, comovente revelação de carinho. E sabe de uma coisa? Fiquei surpreso, mas não espantado! Não se pode esperar senão carinho de quem é carinhoso. Não se pode esperar senão o máximo de quem é o melhor!
                Se você ainda continua perdido e sem qualquer noção quanto às razões por que estou aqui ruminando e saboreando um momento inesquecível, é porque você não estava lá. Não sabe por que se leem os clássicos, não entende por que é importante encontrar alguém para amar, não veste camisa branca de manga comprida, não entende, não sabe “além da matéria”, nunca lhe disseram “da face da terra”, nunca os alunos o chamaram, em latim, de “arquiteto do próprio destino”, nem de “capitão”, nem de “o cara”! E, possivelmente, nunca nenhum aluno tenha tido a coragem de encará-lo de frente e dizer: - Você é o professor chato mais legal que já passou na nossa vida! Nem deve ter ouvido a palavra FAVORITO no contexto da relação professor-aluno. Pois eu, sim! Eu estive lá! Eu vi com os próprios olhos! Eu ouvi com os meus ouvidos! Eu senti com este coração que bate, mas, às vezes, bate desordenado, skipping a beat!

                Se você ainda não consegue me entender... Eu lamento. Se após se, não é possível iniciar outro parágrafo com a conjunção condicional. Paremos de nos referir às hipóteses e sejamos claros: você não entende muito de educação e não sabe o que é ser professor de alunos excepcionais que entendem das palavras, das línguas, dos livros, dos pensamentos e, principalmente, dos corações! Obrigado, Franklim, Taila, André, Julie, Yuri, Adriane, Ana, Jeyce, Jeynifer, Dri, Emiily, Amanda, Camilla, Agatha e Giovana, os melhores alunos que um professor poderia desejar. É por causa de vocês que posso dizer que tenho o melhor emprego do mundo, melhor do que o estrelato na TV, melhor do que a cátedra das ciências, melhor do que o hub do vale do silicone, melhor do que o bisturi do médico e do que a aquarela do pintor, melhor do que o frenesi da bolsa de valores! Sem dor no estômago, sem noites em claro, sem reservas quanto ao futuro, só com boas emoções, muitas emoções...



Monday, November 13, 2017

Crianças que viajam sozinhas

por Milton L. Torres

Em 2002, tomei um voo em Atenas para Frankfurt, onde faria uma conexão para os Estados Unidos. Ao embarcar, notei um casal choroso que se despedia da filha de uns oito anos de idade que ia tomar o mesmo voo para fazer uma conexão rumo ao Brasil. Sem notar a presença deste outro brasileiro à paisana, conversavam, em português, sobre os riscos de uma criança viajar sozinha. A menina tentava tranquilizar os pais, sacudindo afirmativamente a cabeça para cada conselho recebido.
Depois do embarque, notei que a menina se acomodou em um assento pouco à minha frente. Antes, porém, da decolagem, corri até ela e lhe disse, em português, que, se ela tivesse qualquer dificuldade para se comunicar, podia recorrer a mim, porque eu falava português. Para minha surpresa e satisfação, ela me explicou que, além do português, falava outras línguas, inclusive o inglês. Voltei, portanto, ao meu assento, convencido de que, apesar de tão jovem, a menina de cabelos cacheados tinha desenvoltura suficiente para lidar com a situação sem a minha interferência. No entanto, no meio do voo, o avião foi desviado para a Bulgária porque uma pessoa tivera uma complicação cardíaca. Depois que nosso avião foi invadido pela equipe de resgate e o passageiro foi retirado às pressas e em grave condição, a menina pediu à aeromoça para se sentar ao meu lado. Permanecemos juntos até nos separarmos para nossos respectivos voos.
Até hoje eu me perguntava que impulso me havia levado a procurar a garotinha de Atenas para lhe oferecer minha proteção. Até hoje eu pensava que havia sido meu instinto paternal. Afinal de contas, eu tinha uma filha da mesma idade e isso me havia levado a agir como pai. No entanto, estou agora, neste exato momento, noutro voo, entre Caracas e a Cidade do Panamá, e um garotinho de uns nove anos de idade viaja sozinho, sentado entre mim e uma jornalista venezuelana, que não podia lhe ser mais indiferente. Eu, por outro lado, estou aqui cuidando de todos os detalhes possíveis para que ele tenha um voo confortável e seguro. Aí me dei conta de que não podia ser apenas o instinto paternal agindo. Com os filhos crescidos e nenhum neto à vista, chego à conclusão de que é outra a razão para minha preocupação com crianças que viajam sozinhas. É que sou professor!
Dizem que sou um professor do tipo tradicional e, se isso significa que sou igual ou parecido com os professores que tive ao longo de minha carreira acadêmica, então devo concordar: sou tradicionalíssimo. Os professores que encontrei nas escolas públicas de Minas Gerais, as únicas nas quais estudei até chegar à faculdade, eram responsáveis, exigentes, envolvidos, tinham tutano e substância, foram a melhor influência que tive na minha infância e a principal razão por que escolhi a carreira de professor. No entanto, esses professores são impiedosamente criticados pelos pedagogos de hoje como arrogantes, presunçosos e, acima de tudo, controladores. Não conheço outra profissão que tenha sido tão constantemente difamada quanto a do professor. Sendo assim, não é de admirar que quase ninguém ainda nos respeite, nem mesmo os alunos que convivem conosco e testemunham nossos esforços. A sociedade também decidiu crer naqueles que se levantam para denunciar nossas incapacidades.
Para o avanço da medicina, não foi necessário pichar os médicos. Para o avanço da tecnologia, não foi necessário falar mal dos programadores. No entanto, para o “bem” da educação, não se faz outra coisa senão atacar os professores, seus métodos, sua conduta, seus ideais. Até o adjetivo “tradicional”, de significado tão positivo em outras esferas, foi conspurcado por sua associação com a profissão docente. Não é à toa que estamos nos tornando uma classe sem coração e, o que é pior, sem alma.

Podem me criticar e me diminuir, mas é com uma preocupação como a que tenho com as crianças que viajam sozinhas que entro cada dia na sala de aula. Sou responsável por todas elas. Sinto a sua apreensão e inseguranças. Busco a sua felicidade. Na ausência imediata dos pais, eu me ponho in loco parentis. Por isso, se o avião estiver em perigo, não lhes vou perguntar o que devo fazer. Eu é que vou lhes dizer o que devem fazer. Não espero que me salvem nem que me confortem. Eu é que quero salvá-las e, para salvá-las, peço que confiem em mim, pois, no caso da sala de aula, não sou apenas um passageiro qualquer nem tampouco um tripulante distraído. Eu sou o capitão, com a experiência de trinta e tantos anos de voo. Mas como podem confiar se escutam tantas coisas negativas que se dizem hoje do professor? Por isso, peço que parem com o enxovalhamento dos professores. Parem com as pedradas! Nós só queremos proteger as crianças que viajam sozinhas... Só queremos levá-las, em segurança, ao seu destino.



Monday, November 06, 2017

Como sobre-viver ilesos


por Milton L. Torres

                Carl von Clausewitz foi um militar da Prússia que ajudou a negociar o tratado de paz entre a Rússia, a Prússia e a Grã-Bretanha, o que ajudou essas nações a deter Napoleão Bonaparte. Como homem acostumado à linha de frente, von Clausewitz sabia o que era a guerra. Por isso mesmo, declarou de forma enfática: “se queremos que a mente emirja ilesa dessa luta renhida com o invisível, duas qualidades são indispensáveis: um intelecto que, mesmo na hora mais negra e tenebrosa, consiga reter o brilho da luz interior que o leva à verdade; e a coragem para seguir essa luz tênue aonde quer que ela o leve”. Eu acho que o militar superestimou o poder dessa luz interior. Em nenhuma circunstância, conseguiremos passar incólumes pela vida. E nem deveríamos querer isso. As marcas que carregamos dessa luta nos ajudam a medir o grau de nosso enlouquecimento e a magnitude de nossas realizações. A luz não impede a dor; ela, ao contrário, não faz, em certas ocasiões e só em certas ocasiões, nada mais do que ofuscar os olhos alheios de modo que não consigam discernir que trazemos na alma os hematomas de sangrentos golpes.
                O meu amigo Joubert Castro Perez sabe muito bem o que inventar para sobre-viver! Sobre-viver, com hífen. Entenderam? O que eu mais gosto nele é que ele não faz nenhuma pretensão de possuir essa luz tênue e individual de verdade, embora a tenha! Ele não se faz de medida para medir os outros. Ao contrário disso, ele se apresenta a todos os que o conhecem com as marcas de suas loucuras e realizações. Dá para ver em cada ferida, sem tentativas de ocultação, o quanto tudo isso lhe custou. Dá para ver na carne viva! E quando se vive à flor da pele, a gente consegue sentir, depressa e prontamente, a dor do outro. Daí vem essa sensibilidade sutil e aérea que o Joubert leva a tiracolo, sua tentativa não de esconder ou abafar, mas de elevar o corpo magro à altura protegida das ideias e dos ideais.
                Se quisermos passar ilesos pela vida, a única alternativa que nos resta é a solidão. Mas não foi isso que o Joubert quis. Em vez disso, de vez enquanto, ele se recolhe à companhia do caniço e das iscas. Ali recupera o brilho tênue da verdade e assim continua a nos ofuscar com sua sabedoria despojada e simples, com o sorriso luminoso de quem, em sua complacência, já viveu a vida e sabe o segredo, o segredo arcano que ninguém mais conhece, o enigma que ainda nos intriga. Pois não se enganem: o Joubert sabe das coisas! O Joubert sabe tudo!



Wednesday, June 07, 2017

Mensagem que mandei a uma aluna que me perguntou se eu me lembraria dela depois de formada

A vida é mesmo cheia de surpresas. Nunca pensei que, nas voltas que ela dá, eu viesse a me tornar amigo de uma descendente de italianos com cara e atitude de japonesa, mas que gosta de mandarim e fala inglês. O mais interessante é que você consegue fazer tudo isso sem perder o fôlego ou a pose. Aliás, pose não lhe falta nunca, até quando está atrasada ou visivelmente na contramão dos fatos. Não sei se somos do mesmo planeta. Já peguei você em rasantes voos em Marte, Júpiter ou algum satélite perdido no espaço. Ainda bem que você tem suas estratégias para retornar a Houston, nem que seja na cauda do cometa ou no tapete de Aladim. Mas você não precisa sofrer de nenhum complexo de inferioridade. Sonhar de olhos abertos é uma arte que poucos conseguem cultivar. E, no cultivo desse legume chamado sonho, você parece especialista. Aliás, eu sempre soube que os japoneses eram bons de horta! O surpreendente é que, às vezes, me pego catando as sementes que você plantou. O que eu quero dizer é que eu também gosto de me perder nos anéis de Saturno ou em alguma terra distante: na Grécia, de preferência. É, por isso, que – depois que você se formar e for embora – tenho a esperança de nos encontrarmos com frequência. É só a gente programar nossos devaneios para a mesma hora ou batcanal.
Será impossível não me recordar de você. Afinal de contas, foram muitas as encruzilhadas nas quais nos encontramos, de repente, sem nos dar conta disso. Às vezes, você abandonou o navio antes de ele afundar. Outras vezes, entretanto, você aguentou o tranco e ficou até o fim. De qualquer forma, você foi sempre leal, amiga, paciente, animada e presente (ainda que, às vezes, só de corpo). Sempre quis o melhor para si mesma e para os outros. Nunca foi desleal, autoritária ou impertinente. Podia continuar aqui no UNASP e fazer dez graduações que continuaríamos amigos, pois os nossos santos se batem, pássaros da mesma pena que somos, embora cada um voe à sua maneira e para destinos nem sempre coincidentes.
Infelizmente, daqui a pouco você terá que partir para seus voos de ave solitária e, a partir de então, dona do próprio nariz (ou será que eu devia dizer do próprio bico?). Vai ficar um pequeno vazio no coração de cada um que conviveu com você ou participou de uma boa briga com a italiana desse cruzado forte de esquerda. Quando você tiver comprado aquela casa com a qual você está sonhando e que já descreveu para mim, saiba que haverá, em algum canto da sala ou da cozinha, um pequeno espaço cheio de ar que pode muito bem representar esse vazio do qual acabei de falar. Nunca mais seremos os mesmos. Nunca mais conviveremos todos juntos e felizes como quando estivemos aqui no UNASP. Seus amigos partem para suas próximas aventuras, eu fico aqui imaginando o que vocês estão fazendo da vida e você parte em busca desses sonhos com os quais você se envolve tão fácil e completamente. Pode ir, sonhadora! Você tem a minha torcida. Desejo mais o seu sucesso do que a vitória do Brasil na copa.

Tripulação, preparar para o pouso


por Milton L. Torres

                Em nossa era global de viagens rápidas e frequentes, cada vez mais confortáveis e seguras, eu especialmente gosto de ouvir o anúncio do piloto, geralmente sem nenhum aviso prévio: - Tripulação, preparar para o pouso.
                A frase evoca a alegria de voltar para casa, de chegar ao destino, a realização e satisfação de ter cumprido um trajeto, de estar perto da destinação... Provoca também a movimentação dos passageiros, apertando o cinto de segurança, travando suas respectivas mesas, desligando os dispositivos eletrônicos, devolvendo o recosto do assento para a posição vertical, desfazendo-se dos descartáveis. É um chamado à ação que precede a inação. É um convite a um estado de alerta em que, apesar disso, nos colocamos, meio entorpecidos, sob os cuidados daqueles que nos farão pousar em segurança.
               Fico imaginando se é possível ouvir essa mesma frase estereotipada num ambiente diferente daquele ao qual estamos acostumados nos voos da aviação comercial. Imagino também se ela provocaria em nós reações equivalentes. Eu acho que isso é possível. Foi assim que me senti quando completei cinquenta anos de idade. Ouvi, claramente, uma voz falando pelo autofalante: - Tripulação, preparar para o pouso.
                Diferentemente, porém, do que acontece na aviação comercial, pareço ter sido o único a ouvir a voz, apertar o cinto de segurança e seguir os demais itens de protocolo para um pouso seguro e feliz. As demais pessoas continuaram a se comportar como se estivessem no meio da viagem, em velocidade de cruzeiro, acima das mais altas nuvens do céu...
                É interessante que, na vida, ao contrário da aviação, não chegamos juntos ao destino. Cada um chega lá na sua vez, às vezes até inesperadamente. Os outros não ouviram a voz. Mas eu ouvi, e fico grato por ter ouvido. Seria trágico se o avião pousasse inesperadamente, em meio à turbulência, e eu não estivesse preparado para esse acontecimento sinistro.
                Desde que ouvi a voz, não faço outra coisa senão me desfazer de tudo o que é descartável. Não vejo sentido em me apegar a toda essa tralha que venho carregando comigo, até agora, até este momento da viagem. Assim, venho descartando as coisas. Naquela hora, quero comigo apenas o que for estritamente essencial.
                Ao mesmo tempo, apertei, com firmeza, o cinto de segurança. Isso significa que estou preparado para um pouso suave, impacto ou colisão. O que vier pela frente não me pegará de surpresa. Outra coisa que venho apertando é a mão dos outros passageiros. Não se trata de medo de voar, só quero o conforto de saber que alguém me segura a mão porque é importante a companhia dos outros. Não podemos terminar a viagem solitária e tristemente.
                Já travei a mesinha e coloquei meu assento na posição vertical, pois o fim da viagem não é hora de trabalhar, nem de relaxar. Pelo contrário, é hora de alcançar o equilíbrio pelo qual seremos lembrados. É, acima de tudo, o momento de sermos corteses, amorosos, espontâneos e fiéis às coisas que nos definiram e continuarão a definir enquanto houver lembrança da partida e da chegada.
                Fora isso, ainda não consegui desligar os dispositivos eletrônicos, mas já tenho uma boa ideia de que precisarei fazê-lo em breve, hoje ou amanhã de manhã. Afinal de contas, não adianta tomar todas as outras medidas de segurança se não vamos investir nossa atenção inteira no fim da viagem e suas repercussões. Nessa hora, é preciso ter as mãos livres para abraçar e beijar, e despedir-nos, e desejar boa sorte, e olhar bem para os olhos das pessoas e recordar o quanto elas nos fizeram felizes, o quanto fomos felizes juntos...
                O melhor, entretanto, é que, nesse fim de viagem, não temos que reclamar nossos pertences na esteira de número três, nem providenciar os meios para a continuação do deslocamento. Outros cuidarão dessas coisas... Podemos, em vez disso, apenas descansar em paz!





Thursday, May 11, 2017

Convite para dançar


Milton L. Torres

                Eu fui precoce na minha adolescência. Desde aquela época, meu desejo era encontrar a moça certa e, com ela, constituir família. O problema é que eu era tímido. Morando no subúrbio de Belo Horizonte, a melhor forma de conhecer uma moça era frequentar os bailes do bairro, e era isso que eu fazia. Eu me arrumava da melhor forma que podia, ia periodicamente para os bailes e observava as pessoas, mas sempre me faltava coragem para me aproximar de uma moça e convidá-la para dançar. Sem essa coragem, minhas chances eram mínimas e eu ficava ali, no canto, torcendo para que alguma delas, alta ou baixa, bonita ou feia, se aproximasse de mim e me convidasse para dançar. Mas isso nunca aconteceu. Nenhuma vez. Never ever! Talvez, por isso, hoje tenho uma imensa satisfação quando alguém me convida para dançar.
                Não, eu não virei dançarino. Estou falando metaforicamente. Considero como convite para dançar toda vez que uma pessoa discorda de mim. É minha oportunidade de interagir, expressar minhas ideias, falar de minhas emoções, de certezas e incertezas, de movimentos cadenciados e estéticos, de arte e técnica. Quando alguém discorda de mim, não me aborreço, nem me ofendo. Não me descabelo. Os olhos brilham, o sorriso se estampa no rosto, e começo os meus movimentos, ensaiados e precisos ou espontâneos e instintivos. Às vezes, me esqueço do tempo e do espaço. O foco de minha atenção recai inapelavelmente na escolha das palavras e no prazer de ser diferente, pensar com meus próprios neurônios e assinar, com letras garrafais, o meu próprio nome.
                Assusto-me, ocasionalmente, quando percebo que os outros se sentem atropelados. Detesto ver suas fisionomias carregadas, os lábios apertados e a fronte sisuda e pouco amigável. É como se marcassem o passo com um pé esquerdo cafifento e intrometido que insiste em me pisar um dos pés, na falta do cruzado de direita que poria fim a minha alegria e tagarelice. Dizem que também o boxe é uma dança. Mas não sou pugilista. A minha agilidade se resume ao compasso da fala. Não são estocadas, nem golpes as palavras que uso, mas rodopio e coreografia. Sua intenção é o sensível e o razoável. Seu desígnio e finalidade é o plausível, o imaginável, o presumível!
                Se você me convida para dançar, presumo que goste, que queira, que lhe apeteça. Vou logo lhe tomando a mão, os braços, a cintura, no balé das palavras, no ritmo de nossa sintonia. Por um momento, nos tornamos namorados nos argumentos, amantes nas ideias, afeiçoados no pensamento. E me enlevo tanto, que sou capaz de só lhe soltar a mão, os braços e a cintura, quando estivermos extenuados de mil rodopios e contradanças. A menos... a menos que, como me fez a primeira moça que convidei para dançar uma quadrilha, a razão de meu trauma adolescente, você fique vermelho de pudor e, com um muxoxo, se despeça com um tapa, bem dado, no meu rosto encabulado.






Saturday, April 29, 2017

Muffins de graça


Milton L. Torres

                Quando eu era estudante em Austin, no Texas, meu colega Hélvio Peixoto teve uma ideia genial. Ele foi a uma das padarias da cidade e solicitou que os pães não vendidos durante a semana fossem doados para os alunos estrangeiros da universidade. O apelo conseguiu convencer os administradores da padaria, que produzia uma espécie artesanal de pão e outras coisas que as padarias vendem. Toda sexta-feira, portanto, um aluno passava na padaria e recolhia um saco de guloseimas. Quem tinha essa responsabilidade, escolhia primeiro. Depois, levávamos tudo para a casa de alguém e, ali, repartíamos o butim. É difícil dizer o que era mais prazeroso, se comer os pães gratuitos ou a expectativa de que petisco excepcional iria cair na minha vez de escolher.
                O que mais me atraía era o pão italiano e os muffins de cobertura criativa e sabores sortidos. Mas eu me contentava com qualquer coisa que me coubesse. Eram tempos ingênuos em que as maiores preocupações eram tirar uma boa nota na prova de grego ou levar as crianças para receber as vacinas. Eram tempos parcimoniosos nos quais tínhamos que nos esforçar para viver dentro do orçamento de um casal com filhos pequenos em que os dois cônjuges estudavam. Mesmo assim, tínhamos a bem-aventurança dessa aventura infantil, quase sobrenatural, em que nos reuníamos felizes e nos sentíamos o objeto da mais elevada consideração do Pai.
                Quem dera se, agora, eu só tivesse que me preocupar com provas e vacinas! Quem dera se eu ainda pudesse esperar um muffin grátis toda sexta-feira! Quem dera se eu pudesse contar com amizades tão sinceras e sentimentos tão casuais e despretensiosos! Quem dera se eu tivesse ainda o coração tão inocente e inexperiente em perfídias. Quem dera eu tivesse o mesmo contentamento! Quem dera!
                Talvez você se lamente, hoje, das circunstâncias difíceis, do orçamentos modesto, da vida frugal. Não o censuro. Por outro lado, eu lhe peço que não deixe que os dissabores e decepções da vida o impeçam de apreciar o sabor do muffin gratuito quando ganhar um...





Alma boa


Milton L. Torres

                Você já se deparou com uma “alma boa”? Eu descobri que essas pessoas extraordinárias existem quando ouvi uma declaração, espécie de desabafo, do Bob Marley, que eu entendi da seguinte forma: só uma vez na vida, você encontra uma pessoa capaz de, inocentemente, virar o seu mundo de ponta a cabeça. Você conta para essa pessoa coisas que não contaria para outras pessoas e ela absorve tudo e ainda quer ouvir mais. Você lhe fala do futuro, de sonhos que nunca vão se realizar, de alvos que nunca vai alcançar, das decepções que já sofreu na vida e essa pessoa nunca fica com vergonha de chorar com você ou dar gargalhadas com você, mesmo quando você está agindo como um perfeito idiota. Uma alma boa nunca fere seus sentimentos, nem lhe dá a impressão de que você não vale nada. Em vez disso, ela mostra para você o que você tem de único e especial. Você quase acredita que é mesmo lindo... Uma alma boa nunca coloca pressão, nem demonstra inveja, nem qualquer tipo de competição, mas apenas uma espécie de calma que distribui aos lugares que vai. Você pode ser você mesmo, sem se preocupar com o que essa pessoa vai pensar, pois uma alma boa ama você do jeito que você é. E coisas aparentemente insignificantes para outras pessoas, como um abraço, uma caminhada, uma comidinha que vocês repartem, se tornam lembranças que nada consegue apagar. As memórias da infância voltam tão claras e vívidas, que é como se você fosse jovem de novo. Coisas que não o interessavam antes se tornam importantes porque você sabe que essa alma boa se importa com elas. E você não consegue evitar de se lembrar dessa pessoa quando vê um céu límpido e azul ou sopra uma brisa fresca. Você lhe abre o coração, pois sabe que não há a menor chance de o seu velho coração, cheio das marcas do tempo, ser quebrado por essa pessoa. Você fica vulnerável, mas isso só lhe traz carinho e gozo. Você se fortalece, pois percebe que pode contar com essa alma boa, que vai estar com você até o fim, quando ele vier. Por essa razão, a vida parece diferente, mais alegre e segura. Para isso, basta saber que essa alma boa vai sempre fazer parte de sua vida!
                Eu concordo com o Bob Marley que as almas boas são raras. Entretanto, não acho que esse encontro só ocorra uma vez na existência. Tenho encontrado algumas delas ao longo da minha vida. E eu sei quando encontro uma, pois toda vez que isso acontece, isso me dá uma sensação de bem-estar. Há certa paz e serenidade que me revelam a sua presença... No meu caso, esse encontro veio muito cedo na minha vida, antes dos dias rebeldes da juventude, antes dos dias de trabalho duro e excessivo da maturidade, antes dos dias vagarosos e sonolentos da velhice. Minha irmã Mônica foi a primeira alma boa que eu encontrei. Eu tive sorte: a presença de uma alma boa na minha vida, próxima e constante, desde os dias tenros da minha infância. Tudo o que posso desejar para as outras pessoas, hoje, é que todas elas também sejam abençoadas com a presença de almas boas em sua vida, tão próximas e constantes, como o sorriso simples e meigo, sem fingimentos, de uma irmã, pois todos merecemos, senão, carecemos, de uma alma boa em nossa vida!





As vantagens do carro popular


Milton L. Torres


                Até o carro que dirigimos e a roupa que usamos podem aproximar ou afastar as pessoas. Essas duas coisas são o que costumamos chamar de indicadores de status. Em geral, quanto maior o status, mais afastados e remotos os indivíduos se tornam, isto é, difíceis de alcançar. Eu dirigi carros populares toda a minha vida adulta e cheguei à conclusão de que sempre fiz a melhor escolha. Há muitas vantagens sociais nos carro populares. Em geral, são mais econômicos e de fácil manutenção. Além dessas vantagens práticas, os carros populares sempre me ajudaram em outros importantes aspectos da vida. Como não têm muita potência, eles me ajudam a não exceder os limites de velocidade e não me dão tanta impressão de segurança, que eu esteja disposto a entrar em disputa com os outros veículos na pista. De fato, eu me considero um motorista bastante comedido e jamais competi com quem quer que seja ao volante. Saio do caminho de quem está com pressa e não fico melindrado quando alguém faz uma manobra inesperada ou arriscada. Em vez disso, simplesmente dirijo defensivamente e deixo cada um cuidar de sua vida, sem buzina, impropérios ou gestos intempestivos.
                Outra vantagem dos carros populares é que ninguém os trata como divas ou ídolos a quem tenhamos que prestar reverência. Qualquer um pode entrar no meu carro, independente de ter os pés limpos ou não. Qualquer um pode lhe bater a porta. Qualquer um pode comer em seu interior. Meu cachorro anda nele e, se eu tivesse gato, ele também seria bem-vindo. Minha mulher o dirige e também os meus filhos. Quando aparece um arranhão na lataria, só percebemos isso a custo e nem sabemos dizer de quem é a culpa. E, a menos que o dano seja considerável, isso simplesmente não importa... Portanto, posso dizer que meu carro contribui para que eu tenha uma vida menos estressada e, sendo assim, posso me relacionar melhor com as pessoas. Não me entenda mal. Não estou insinuando que, só porque alguém tenha outro tipo de carro, essa pessoa não possa ser desprendida em relação aos bens materiais. No entanto, parece-me que é mais difícil sê-lo quando se investe muito em determinado bem.
                O que eu mais gosto no meu carro popular é que ele diz para as pessoas que eu sou exatamente como elas e que não me considero melhor do que ninguém. Repito: não estou criticando aqueles que têm carro de luxo. Só estou dizendo que eles podem dar a falsa impressão de que um ser humano é melhor do que o outro. Acreditar nisso seria uma grande tolice... Numa época em que as pessoas ficaram tão carentes de atenção, é melhor ser abraçado por quem se considera igual a nós do que ser gratificado pela impressão solitária de que somos superiores aos outros em alguma coisa. Portanto, o meu carro popular me ajuda até com minha autoestima. Sou importante não porque sou melhor, mas porque sou igual aos outros, humano, e todo ser humano é importante!
                Da minha parte, andaria de bicicleta ou de ônibus, se fosse necessário, com a mesma felicidade, desde que eu tivesse um mínimo de convicção de que ninguém está me explorando. Na minha república platônica, ciceroniana, ideal, todos os que pudéssemos, andaríamos a pé, sem pedágios e políticos. Está vendo? Até nisso o meu carro popular me ajuda: a ter utopias...



Friday, April 14, 2017

Os Verdadeiros Ovos de Páscoa: A Páscoa Não Acaba Nunca


por Milton L. Torres

            A história humana está cheia de heróis anônimos e epônimos que optaram por entregar a própria vida a renegar uma causa, trair os próprios princípios ou tolerar a opressão dos inocentes. Entre os mais famosos, estão pessoas como Sócrates, executado, em Atenas, por aqueles que desejavam se beneficiar do obscurantismo e da ignorância; Mário Graco, executado pelo senado romano por causa de seus ideais democráticos e igualitários; Tiradentes, executado pela metrópole portuguesa por causa de sua defesa da liberdade; Dietrich Bonhoeffer, executado pelos nazistas, na Alemanha, depois de falhar seu plano de eliminar Hitler; Antônio Gramschi, executado pelo regime fascista na Itália; Martin Luther King, assassinado pelos opositores da igualdade racial nos Estados Unidos; e Nelson Mandela, longamente aprisionado por causa de sua militância contra o Apartheid na África do Sul. Esses heróis vêm de todas as partes e lutaram pelas razões mais diversas. Em comum, têm, senão a morte inglória e cheia de sofrimento, pelo menos o ideal de resistência e corajosa defesa de princípios dos quais não podiam abrir mão...
            Nenhum deles é, porém, o que poderíamos chamar de herói pascoal. Eles lutaram na esperança de triunfar e subverter o status quo. Lutaram porque tinham a esperança de vencer e sair incólumes do preço que a derrota os faria pagar. Por favor, não entendam mal. Eles sabiam que podiam perder. Sabiam que, em caso de derrota, enfrentariam algum tipo ignominioso de morte. Mas havia a fresta de esperança que os fazia vislumbrar o triunfo de seus ideais e o reconhecimento de seus esforços. Pode ser que, ao se deparar com a cicuta, Sócrates tenha se dado conta de que voluntariamente abraçava um caminho de morte e extinção, mas não antes. Até aí, acreditava na absolvição. Por isso, não guardou silêncio no tribunal e se defendeu como pôde. Até Mahatma Ghandi tinha estreitas gretas pelas quais entrevia o sucesso de sua filosofia de resistência pacífica. Ele sonhava com isso. Era isso que o alimentava e impelia...
            Jesus foi o único herói pascoal da história de nosso mundo. Convencido, como estava, de que não tinha a menor chance de escapar dos abusos, da tortura e da morte, ainda assim não hesitou em enfrentar a violência de seus algozes e superar o abandono covarde dos amigos. Ninguém o defendia e Ele tampouco se defendeu. Era uma ovelha muda, pronta para o abate. Seu nível de sujeição às forças cruéis que o intimidavam e torturavam não teve, nem tem precedentes. Continua como exemplo único e inigualável do poder do amor, pois só o amor o movia. Jesus não morreu porque tinha que morrer. Ele morreu porque queria morrer. Não queria, porém, morrer como morrem os suicidas. Não morreu para abandonar a vida ou estancar o sofrimento. Não abraçou a morte porque desistiu de lutar, mas abdicou da luta por algo infinitamente maior: a franquia do perdão.
            Nós fizemos de tudo com Jesus, desde a cusparada nojenta e cheia de desprezo e escárnio, até a exposição vergonhosa de sua nudez, e mais, muito mais, as pancadas, os espinhos, os pregos, a lancetada que lhe atravessou o pulmão, o vinagre que o emudeceu... Só não lhe quebramos os ossos. Isto é, não literalmente. Fomos nós que fizemos essas coisas, e continuamos a fazê-las, toda vez que praguejamos contra Deus ou esfolamos o nosso semelhante (amigo ou inimigo, próximo ou distante, da nossa intimidade ou gente que nem conhecemos), nas guerras combatidas com armas no campo de batalha ou nas guerras travadas com os penetrantes punhais de palavras desproporcionais e indiferentes, no conforto do lar, nos saguões das igrejas, nas vias públicas ou na ambiciosa empreitada de galgar a escada social. E o que ele, Jesus, nos fez e faz? Com o herói pascoal, não se trata de desforra ou desagravo, mas de chances: oportunidades de recomeçar, a cada páscoa, a cada dia. Estamos na páscoa. Este é o território do herói pascoal. É sua dimensão e reino. Sua causa e sua vida. Por que não abraçamos, juntos, a oportunidade que ele nos oferece? Vamos tornar esta páscoa em algo mais do que a troca sem graça de ovos coloridos e de sabor docemente narcótico. Não são ovos de páscoa que Jesus nos convida a distribuir. Vamos aceitar o exemplo de perdão e entrega de nosso herói pascoal, e submeter-nos mais a sua vontade, entregando-lhe o coração. E entregar o coração a Jesus é entregá-lo a todos aqueles por quem ele morreu... Os verdadeiros ovos de páscoa são as ações de gentileza e abnegação que Jesus deseja que pratiquemos durante a páscoa, e a páscoa nunca vai acabar, enquanto Jesus sofrer por nós... e nós, por ele!




Sunday, April 02, 2017

Rosto desfigurado

por Milton L. Torres

          Talvez você ache estranha a grande quantidade de relatos da violência praticada no contexto do flerte não correspondido, que nos chega dos antigos gregos. A própria obra máxima daquela literatura, a Ilíada, tem como premissa o rapto da belíssima Helena, uma ação tão brutal que gerou a guerra de Troia, combate de dez longos anos entre gregos e troianos, que Eratóstenes situa entre 1194 e 1184 a.C. Aliás, os antigos gregos contam que Helena foi raptada duas vezes: uma por Páris e outra por Teseu. E os relatos gregos não param nela, sendo igualmente famosos, entre tantos outros, os raptos de Ariadne, Antíope e Hipólita (por Teseu) e Medeia (por Jasão). Sem contar os casos em que a moça era levada como espólio de guerra ou para consumar um amor consensual proibido pela família, esses casos nos assustam pelo estatuto heroico dos raptores, alguns dos quais, como Teseu, por exemplo, parecem não viver para outra coisa, senão raptar mulheres indefesas.
          Um caso que merece menção especial nos é relatado por Partênio de Niceia, o tutor do grande poeta Virgílio, que, na época de Cristo, escreveu uma obra poética intitulada Erotiká pathêmata (“sofrimentos de amor”), na qual narra diversos episódios de amor não correspondido. Trata-se da história de Apríate, supostamente a primeira mulher a reagir a uma tentativa de rapto. Apríate vivia na ilha de Lesbos, onde acabou atraindo a atenção de um rapaz fogoso chamado Trambelo. Diante das constantes recusas da moça, o rapaz decidiu raptá-la e estuprá-la. Apríate reagiu com valentia e acabou assassinada pelo rapaz, que lhe jogou o corpo ao mar. Obviamente, o poeta errou ao incluir essa história em seu catálogo. Afinal, quem ama não destrói o objeto de seu amor. De qualquer forma, o crime lhe custou a vida nas mãos de Aquiles, o herói da guerra de Troia. Se a narrativa tem algum cerne de verdade, a história nos remete à tentativa de estupro ocorrida 1200 anos antes de Cristo. Em geral, rapto e estupro eram vistos como ações de hybris, invariavelmente punidas, senão pelos cidadãos, pelo menos por divindades vingativas e pelo destino.
          No livro apócrifo conhecido como Atos de Pedro, em um trecho preservado apenas em cóptico, a multidão recrimina o apóstolo por ter curado inúmeras pessoas, mas ter negligenciado a própria filha, cujo lado direito do corpo sofria de uma paralisia aparentemente incurável, que lhe desfigurava o rosto. O apóstolo ora, então, a Deus, e este restaura a menina à condição anterior de beleza. Logo em seguida, o apóstolo faz outra prece e a moça torna a ficar com a face paralisada. Ele, então, explica aos boquiabertos espectadores, que pedira a Deus que desfigurasse a filha, depois de esta ter sido raptada por um cidadão rico chamado Ptolomeu. Sua intenção era de preservá-la de novos avanços. No final da narrativa, o ricaço se arrepende e, antes de morrer, deixa, em testamento, seus bens para a moça, que os repassa à igreja. Em outro livro apócrifo, a epístola de Tito, que pode ter preservado mais um trecho dos Atos de Pedro, conta-se que um jardineiro pediu a Pedro que lhe abençoasse a filha. O apóstolo orou pela menina, mas ela logo morreu. Inconformado, o jardineiro pediu que o apóstolo orasse de novo. Depois da segunda oração, a menina voltou a viver. No dia seguinte, porém, foi estuprada por um escravo.
          As antigas histórias de rapto e estupro se multiplicam, e parece que os velhos métodos de coibição nunca surtiram efeito, pois continuam a acontecer atualmente, talvez até em maior proporção. Em 2015, foram cinco estupros por hora no Brasil, um deles no estado de São Paulo. É impressionante que os antigos gregos fossem tão adiantados em filosofia, educação, música, medicina, ciência e política, mas não tenham conseguido impedir que homens tão inteligentes se comportassem como animais. Mais perto de nossos dias, o filósofo Nietzsche lamentou, em Assim falou Zaratustra, que um ente tão sublime quanto o ser humano continue a ser feio e se pareça com um animal selvagem... Certamente falava só dos homens. Eu também. É inadmissível que o descontrole de alguns homens continue a obrigar as moças a viverem vidas desfiguradas na esperança de deter o próximo ataque. Falo também às autoridades. É inadmissível que continuemos a ser tão coniventes com aqueles que praticam esse tipo de violência ou qualquer outro. A esse respeito, precisamos adotar uma política de tolerância zero.






Wednesday, March 22, 2017

A poesia da vida

por Milton L. Torres

Pare e pense! Não vale a pena se preocupar demais em entender a vida. Não vale a pena quebrar a cabeça para compreender todos os seus intrincados mistérios. Carlos Drummond de Andrade diz que, em vez disso, se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida. Isso significa que temos que nos contentar com uma dessas possibilidades: ou desvendamos mistérios ou sentimos a poesia. Satisfazemos a curiosidade ou a sensibilidade. Vivemos em função do cérebro ou do coração.
Isso não significa que os mistérios não nos possam intrigar, só que não precisam nos deter, nem nos imobilizar. Diante deles, o queixo cai, mas os olhos precisam imediatamente contemplar o efeito estético de sua presença. Aí, a gente precisa voltar a viver, voltar a sentir. Um exemplo prático disso acontece quando nos deparamos com a morte, especialmente se ocorre de modo repentino, prematuro ou com uma pessoa por quem temos muita afeição. O mais importante, nessa hora, não é receber explicações, entender a cadeia de causalidades que precipitou a tragédia, mas refletir sobre a beleza da vida de quem se foi. Não se trata tanto de entender o significado dessa vida, mas sua significância. As pessoas tendem a se indagar por que Deus permite essas coisas, mas a pergunta que faz mais sentido é como essa vida que se foi enriqueceu a vida de quem fica. O que precisamos fazer, em meio às lágrimas da despedida, é celebrar a ventura de ter convivido com aquela pessoa.
Mas não é apenas a morte que representa, para nós, um enigma difícil de decifrar. O que dizer do amor não correspondido? Por que o coração, os olhos, o corpo todo nos dispõem para uma alma da qual nos sentimos gêmeos, só para que esta nos inflija rejeição e constrangimento? O que dizer da paternidade? Por que alguns filhos se parecem tanto com os pais, enquanto outros lhes são diametralmente opostos? Quem inventou essa química? Que gênio maldoso se encarregou de rodar essa roleta maluca?
É melhor desistir dessa álgebra improvável. A teoria do caos está criptografada no próprio pulsar da vida. Em vez de quebrar a cabeça e o coração, é preferível quebrar os preconceitos, assumir atitude de apreciador da arte de viver,  aceitar que não há só um jeito de ser feliz, abrir o coração e os olhos para as possibilidades e, finalmente, não se deixar possuir por nenhuma única grande e insubstituível ideia. Em vez de se obcecar pela solução da vida, busque enxergar a poesia da vida…





Saturday, February 18, 2017

O que é viver?

por Milton L. Torres

Pare e pense: o que é viver? Quais são as coisas que faço que me deixam ter a certeza de que estou vivo? Comer? Namorar? Andar de bicicleta? Dançar? Beber? Fumar? Comprar uma dúzia de ovos no supermecado? Será que uma dessas coisas prova mesmo que estou vivo? Será que todas elas juntas provariam isso?
O que é um dia perdido? Um dia em que não comi, não namorei, não bebi, nem fumei? Quais são os ingredientes necessários em 24 horas para que, no final do dia, eu possa dar um soco no ar e dizer: - Hoje eu vivi!?
Ou será que a vida é definida pelos negativos? Eu estou vivo porque não tenho doenças, não estou sofrendo, não estou na cadeia, não quebrei a perna, não estou de luto, não arranquei um dente e, por todas essas razões, eu posso me esbaldar na vida...
Ou, aliás, será que a vida é definida pelos picos de êxtase? Será que eu preciso de uma tonelada de adrenalina para que tenha a impressão de ter vivido bem o meu dia? Montanha russa, arranha-céu, a rasante no helicóptero, a escalada do Evereste, a disputa de pênaltis, shoplifting, a curva a 120 km por hora...
Quantos dias você já perdeu na vida? Se é que já perdeu algum! Uma vez mesário nas eleições? Duas ou três tentativas na prova do ENEM? Um dia inteiro tentando marcar uma consulta? Uma semana inteira de cama? Três meses com a perna engessada? Uma vez por ano fazendo a declaração do imposto de renda? Uma hora por dia preso no engarrafamento? Oito horas por dia dormindo... Você está mesmo vivo nessas horas?
Será que a gente precisa viver cada dia diferente? Será que conta como vida viver o mesmo dia várias vezes? Do mesmo jeito, nas mesmas condições, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, respirando o mesmo ar, vendo o mesmo céu, fazendo as mesmas coisas? E aí? A minha vida é o que eu faço ou deixo de fazer? A minha vida são as pessoas com quem eu COM-VIVO? A minha vida é o que me dá prazer? A minha vida é o que me dá sentido? Talvez sua resposta seja diferente da minha. Afinal de contas, não somos a mesma pessoa, nem temos a mesma vida. Não sei como você computa seu grau de satisfação com sua vida, com os dias que você está vivendo. Qual é a sua unidade de contagem? O número de banhos que você toma por dia? A quantidade de dinheiro que gasta ou ganha? O número de refeições? Quantas vezes você faz sexo? Quanta gente nova você conhece? Quantas ordens você dá? Quantos olhares de inveja você recebe? Tudo isso? Nada disso? Eu só fico aqui imaginando...
Eu não sou de Marte. Eu sei o que é respirar com prazer o ar que me mantém vivo. É isso! As coisas simples é que conto no meu cômputo de satisfação com os meus dias, com a minha vida. O arroz dormido que tiro da geladeira e esquento. O suor da caminhada banal até o trabalho. O copo d’água frio e refrescante. Uma ou duas pessoas que me olham todo dia como se eu fosse a pessoa mais importante deste planeta. O esconderijo no qual me refugio para ficar a sós e apreciar, devidamente, qualquer pequena surpresa que me faça o coração saltar. E como salta o meu coração!





Saturday, February 11, 2017

Cabanas do Alasca

Eu fui missionário no Alasca e escrevi um livro sobre minha vida naquele lugar inóspito de invernos rigorosos. Uma coisa que não pus no livro, mas deveria ter posto, é a descrição das cabanas do Alasca. Ali, as pessoas não compravam simplesmente uma casa. Na época em que vivi no Alasca, esperava-se que o dono construísse a própria cabana, geralmente de madeira e, à semelhança de uma palafita, elevada acima do terreno para que o calor dela não derretesse o chão de permafrost, uma mistura de gelo e terra.
Um verdadeiro morador daquela região gelada sentia uma empáfia difícil de conter quanto ao resultado confortável de seus esforços de construtor. E, mais do que isso, sentia orgulho do fato de que as portas nunca eram trancadas e de que havia sempre um aviso, em placa elegantemente pintada, em papel de caixa improvisado, em madeira ou em latão, mas sempre visível, que dizia: “entre, use o que precisar e deixe tudo como encontrou”.
É que as pessoas daquele lugar virtualmente abandonado por Deus tinham a plena consciência de que a vida fora de algum abrigo providencial não se sustinha por muito tempo. O inferno gelado invadia e entorpecia os membros, a cabeça e os órgãos internos. Era como se, o tempo todo, cortejássemos a morte. Em uma questão de minutos, perdiam-se a compostura e a vida. Por isso, essa hospitalidade forçosa, infalível, inapelável.
         O que eu aprendi no frio debilitante do polo norte é que as pessoas deviam ser como cabanas do Alasca. Um encontro com o outro é como uma reação química que produz calor e energia. Quem dera se, em nossos encontros, o outro abrisse a porta do nosso coração para nele se esquentar sob a temperatura afável de sua lareira, deixando, então, tudo como encontrou. Afinal de contas, o mundo lá fora é hostil e traiçoeiro. Só o aconchego de um coração terno pode nos proteger do vento frio que sopra por toda parte, dos vendavais e tempestades, das nevascas, geadas e granizo, da vida! Da próxima vez que você ouvir os uivos do temporal que se aproxima, experimente fazer-se de cabana para quem estiver sob ameaça da borrasca. Provavelmente, o calor desse encontro será suficiente para aquecer a ambos...





Quatro conselhos para os corações desenganados e cambaleantes

por Milton L. Torres

Alguém já decepcionou você? Já deixou você para trás e foi embora sem nunca nem se voltar para ver como você ficou? Você ainda sofre com isso? Sabia que só depende de você a decisão de mudar e não mais sofrer com os desapontamentos da vida?
A Bíblia diz, em 2 Coríntios 5:17, que “quando alguém se torna cristão, vira uma pessoa totalmente nova. Já não é mais a mesma pessoa, pois tem início uma nova vida”. O que muita gente não entende é que essa declaração não é uma exigência, mas uma promessa. Deus não exige, pura e simplesmente, que reformemos toda e qualquer coisa em nossa existência porque Ele entende que a vida que vivemos, sem Ele, é uma vida de quebrantamento em que nos deparamos o tempo todo com promessas quebradas e corações partidos. Por isso, Ele não manda, mas sugere que optemos por uma vida em que essas coisas não mais perdurem.
Embora não o exija, Deus espera que experimentemos transformação, pois Ele sabe das coisas. Ele nos observa e vê que podemos ter vidas melhores. Podemos juntar os cacos de nossa existência depauperada e triste, e viver uma vida sem medos e lamentações mórbidas. Por isso, Ele nos dá essa opção. Ele sabe que somos capazes de aprender e, se conseguimos aprender, é porque podemos também mudar. Ele entende que sofremos e, se estamos sofrendo, Ele sabe que vamos querer mudar. Por isso, Ele nos ajuda. Mas a decisão é nossa. Podemos optar por uma contínua rotina de sofrimento e prostração ou decidir que as pessoas não podem mais nos magoar porque não mais lhes damos esse poder, essa capacidade.
Quatro conselhos que podem fazer a diferença em sua experiência como ser vivo no planeta Terra: ame a quem ama você! ajude a quem precisa de você! perdoe a quem já magoou você! esqueça-se de quem deixou você! Eu sei. Meus conselhos não soam tão nobres e espirituais quanto os preceitos do sermão do monte. Parecem até o resultado do desejo de autopreservação. Não se engane. Só estou tentando dizer a mesma coisa de uma forma mais suportável para nosso coração desenganado e cambaleante. No final das contas, não se exige nada de nós a não ser o amor: por Deus, pelo próximo e por nós mesmos.




Steve Jobs e a autenticidade da vida

por Milton L. Torres

No dia 12 de junho de 2005, Steve Jobs fez um discurso de formatura na Universidade de Stanford que já se tornou um clássico. Não sou especialmente fã de Steve Jobs nem vou repetir o discurso. O que me afasta da Apple não é, porém, o seu CEO, mas o esnobismo de muita gente que usa os seus produtos. Mesmo assim, vou me ater a uma frase na qual Jobs expressa uma grande verdade. Ele disse (abro aspas): Seu tempo é limitado. Não perca tempo vivendo a vida de outra pessoa. Não se deixe prender pelo dogma. [E ele, então, dá sua definição de dogma: viver a vida segundo o raciocínio alheio...] Tenha coragem de seguir o próprio coração (fecho aspas). Ele tem razão. Não vale mesmo a pena viver uma vida pautada nas opiniões dos outros.
A fala de Jobs me lembra um poema de Walt Whitman, a quem estimo e admiro muito mais. Abro aspas de novo: O que você deve fazer é amar a terra, o sol e os animais; menosprezar as riquezas; dar esmolas a quem pedir; proteger os tolos e os incapazes; dar parte de seu tempo e renda ao próximo; detestar tiranos; nunca brigar por causa de Deus; não tirar o chapéu para nada, nem ninguém; ficar à vontade entre os poderosos, os sem-cultura e as mães; reexaminar tudo o que você aprendeu na escola, na igreja ou nos livros e abrir mão do que insulta a alma (fecho aspas).
Não vou tentar interpretar essas falas para você. Não é preciso. Mas existe sim uma relação entre o que Jobs e Whitman disseram e a forma como encaramos nossos dias, um após o outro. Não viver dogmas e abandonar o que insulta a alma são gestos equivalentes, postura de quem quer assumir responsabilidade pelas próprias decisões, pela própria vida. Tenho a impressão de que Jobs nunca foi verdadeiramente feliz. Nesta vida, não existem garantias para a felicidade. Mesmo um homem tão bem sucedido profissional e financeiramente pode chegar vazio ao final de sua existência. Aliás, as pessoas podem ser felizes e, então, morrer, mas ninguém morre feliz. Isso não impede, porém, que aproveitemos a sabedoria que essas pessoas coletaram ao longo da vida. Whitman e Jobs sugerem que a forma mais significativa de viver é a autenticidade. Espero que cheguemos lá! Eu e você.




Tuesday, February 07, 2017

O aniversário de um filho

por Milton L. Torres

O aniversário de um filho é a celebração da propagação da vida, que se alastra e contagia a casa, a natureza, o mundo... É um reacender de esperanças, um alçar voo para além do confinamento de dias corriqueiros e monótonos, cobrindo de purpurina e brilho o que nos resta de nossos sonhos e aspirações. É a oportunidade para interromper a corrida louca das horas para perceber que nossa existência produz frutos que valem a pena semear, cuidar e colher.
O aniversário de um filho é nossa elevação à condição de seres perenes, cujo reflexo não desaparece no tempo, mas teima em reaparecer nos gestos banais, no sorriso inesperado, no olhar, na fala, no andar e no jeito de encolher os ombros ou esticar os braços. Quando essas coisas nos surpreendem, nós compreendemos o segredo da vida e nos contentamos com os poucos anos que são concedidos a cada geração, pois sabemos que, de uma forma ou outra, nossa mortalidade encontra seu cumprimento no próprio amor que dedicamos aos gestos banais, sorriso inesperado, olhar, fala, andar e jeito de encolher os ombros ou esticar os braços daquele cujo aniversário festejamos com alegria tão grande quanto a do nascimento...
Tente imaginar a vida sem aniversários! Você terá que pensar na vida das criaturas de Deus que não medem o tempo. Nem pássaros, nem cães, nem bois... só os seres humanos comemoram o momento glorioso de sua passagem anual para situações mais enigmáticas e desafiadoras, de sua iniciação à vida e aos mistérios do envelhecimento. Ao mesmo tempo, só nós podemos sucumbir ao medo paralisante que nenhuma outra criatura sente: o medo de que o tempo vá acabar! Mas não no dia do aniversário de um filho. Nesse dia, não há medo. Nesse dia, não importa se passaremos ou não, pois haverá alguém lá, alguém cuja contínua existência é mais importante e preciosa para nós do que nossa própria sobrevivência e destino.
De fato, no aniversário de um filho, perdemos todos os receios: de morrer de câncer, de virar vegetais, de viver à pálida luz de uma enfermidade ou de não ter coragem de viver a vida que desejamos. Não importa quão ocupados, quão cegos, quão alienados, quão entediados, nesse dia, paramos e fazemos nossas preces. Lançamos ao vento o punhado de areia que tínhamos na mão, apostando em uma longa vida, com momentos de felicidade e fartas ocasiões em que poderemos dizer: - Feliz aniversário, filho!



Friday, January 27, 2017

O meu amigo Braga disse

por Milton L. Torres

O meu amigo Braga me disse que a gente só precisa de quatro coisas para ser feliz: viver com paixão, praticar o bem, pagar o preço e sentir-se abençoado. Eu acho que eu consigo resumir isso em quatro palavras. O que a gente precisa para fazer essas coisas que ele sugere é paixão, bondade, perseverança e bênção. Para viver com paixão, obviamente a gente precisa de paixão. Para praticar o bem, a gente precisa de bondade. Para pagar o preço que tudo isso exige, a gente precisa de perseverança. Finalmente, para se sentir abençoado, é preciso, antes, receber e aceitar a bênção. Sem querer ser engraçado, concluo que, para ser feliz, a gente precisa de PBPB: paixão, bondade, perseverança e bênção!
A paixão vem do coração; a bondade, da alma; a perseverança, dos músculos; e a bênção, de Deus. Claro que a gente não tem controle sobre essas coisas o tempo todo. O que o meu amigo Braga quis dizer é que a gente tem que ter consciência de que precisa dessas coisas. Por isso, para ser feliz, é necessário estar em paz com o coração, com a alma, com o corpo e com Deus. E essa serenidade não falta ao meu amigo Braga, que aprendeu, a duras penas, a sobreviver com um coração largo, maior do que a envergadura total do corpo, maior do que a boca escancarada, que o crânio grande de homem cerebral e o pulmão ofegante de aventuras. Essa serenidade não lhe falta à alma pura de amigo inveterado, à prova de qualquer traição ou desapontamento, acima de qualquer torpeza ou fracasso. Essa serenidade não lhe falta ao corpo enorme, do tamanho de seus sonhos e ideais. Essa serenidade não lhe falta à fé e à certeza de que religião se vive amando, pregando a Palavra com gestos simples e pequenas atenções, não com retórica artificial e vazia, da boca para fora.
Por isso, creio no meu amigo Braga quando ele me diz que, para ser feliz, eu preciso de paixão, bondade, perseverança e bênção. Ele me mostra como essas coisas fazem a diferença na vida feliz de quem as vive. E é isso exatamente o que quero: mais entusiasmo prazeroso pelas efemérides de meus dias corridos; mais carinho nos relacionamentos, às vezes tão apressados e superficiais; mais elasticidade diante da rejeição sumária, da inveja tão perniciosa a ponto de verter agressões verbais e psicológicas, mais espiritualidade para cumprir a missão de amar, ajudar e inspirar aqueles que, por algum motivo fútil, tenham se alienado das minhas convicções ou das suas próprias.
O meu amigo Braga me disse que a gente só precisa de quatro coisas para ser feliz. Discípulo de Joshua Abraham Norton, imperador dos Estados Unidos da América e protetor do México, ele sabe das coisas. Quatro coisas são necessárias. Por que, então, a gente inventa tanta coisa extra, tantas exigências autoimpostas, tantas desculpas esfarrapadas só para continuarmos infelizes e de cara amarrada? Acho que isso nem o meu amigo Braga, apesar de sábio, pode responder...




Não oramos por amor

por Milton L. Torres

Pedimos a Deus um monte de coisas, mas não oramos por amor. Queremos vida longa, uma conta robusta no banco, uma saúde de ferro, o emprego dos sonhos! Oramos por dinheiro, pelas pessoas, por coisas, por planos, por vontades e fantasias, mas não oramos por amor. Oramos até para que o time de futebol ganhe o campeonato, para passar no teste, para comprar o sapato certo, para sobreviver à cirurgia, para melhorar da doença, para pagar as dívidas, para converter os ateus e pela paz no mundo. Oramos para ter o que comer, mas não oramos por amor.
Se fosse por altruísmo que não orássemos por amor, no desejo de deixá-lo para os mais carentes, os indigentes desprovidos de amor... Se houvesse por aí uma quantidade restrita de amor, limitada, difícil de encontrar como ouro, caviar, lanterna chinesa, jacaré albino ou peixe voador... Se necessitasse muito esforço para arranjar... Se fosse muito longe para buscar, ou muito fundo, ou muito alto... Se fosse pesado demais para carregar, ou muito feio, ou difícil de guardar... Então, eu entenderia por que não oramos por amor!
Mas, não! O amor é lindo e fácil de guardar. Não se compra, nem se vende, mas tem para todo mundo, pois é simples de achar. Hipoteticamente. O difícil do amor é que ele exige compromisso, como uma flor que a gente tem que regar. Todos os dias. Se não, murcha. Se não, morre! E a gente não quer esse trabalho... E, por isso, em vez de orar pelo que seria suficiente para acabar com a maldade e oferecer felicidade, gastamos nossas orações com quilos de coisas e toneladas de ambição, como se Deus atendesse a egoísmos.
Deveríamos orar é por amor, amor para perdoar, para aguentar, para tolerar... Amor para mim, para você, para o outro, o semelhante, para os inimigos, para o mundo. Eu até garanto que, se orássemos pelos inimigos, sinceramente, nem teríamos inimigos, nem úlcera, nem câncer, nem ódio. Seríamos santos, pois, no amor, tudo se cria e nada se perde. Se orássemos por amor, teríamos amor e vida. Se orássemos por amor, seríamos amor e vida.




Uma vez me chamaram de louco

por Milton L. Torres

Uma vez me chamaram de louco, não metaforicamente. Eu sei que a pessoa sabia que eu não sou louco. Mas ela falou sério. Sua intenção era provavelmente desacreditar qualquer coisa que eu tivesse a dizer sobre o que eu estava dizendo. A loucura lhe pareceu o caminho mais curto e direto. Afinal de contas, os loucos não têm mesmo muita credibilidade. Além disso, a pessoa também pode ter tido a intenção de me desestabilizar. Eu já fui chamado de muitas coisas, mas confesso que ser chamado de louco me incomodou. Foi um tijolo a mais na parede quadrada que, às vezes, se erige rápida à nossa frente, contra a nossa vontade e sob os nossos protestos.
Uma vez me chamaram de louco, no sentido de débil mental. Isso é pior do que ser chamado de tolo, inconveniente, mal-educado ou sem noção. Essas outras coisas a gente consegue recuperar, estão ao alcance das mãos, dos braços, das pernas e dos pés. A gente pode agarrá-las ou chegar lá, mas quando a sanidade parece tergiversar, não nos restam muitas opções além da camisa de força e da babugem nojenta que nos escorre pelo rosto.
Incomodar-me com essas coisas é a minha prova de que, apesar da imputação cáustica, não sou louco. Ou melhor, não sou inteiramente louco. Eu me reservo a regalia de, ocasionalmente, contrariar o senso comum, desafiar o mundo e não me render às pressões das opiniões alheias. Se você concorda comigo que, às vezes, precisamos mesmo dessa certeza rebelde de que nossa própria ponderação vale tanto quanto o julgamento do resto do mundo, meio a meio na balança, com 50% de chances de você estar certo e o resto do mundo errado, então posso dizer que você é meio louco, como eu. Mas não desanime – você podia ser chamado de coisas piores: indiferente, alienado, desligado ou insensível; uma pessoa sem opinião, Maria-vai-com-as-outras, essa Maria que também era louca, mãe de D. João VI, incapaz de governar, só podendo sair de casa na companhia dos outros.
Uma vez me chamaram de louco, não metaforicamente. Embora constrangido, pensando bem, chego quase a me conformar. Pode ser que haja aí, de fato, certa verdade. Será que há um lado inofensivamente bom na loucura? O que fazem os loucos? Intercalam desvario e lucidez, criam caso e têm dificuldade de se conformar às expectativas alheias, mas falam com sinceridade. Têm fantasias e assomos de grandeza, mas não sofrem quando contrariados. Não contestam quando acusados, apontados e marcados; em vez disso, retribuem à provocação com sorrisos serenos e francos. É quase como que, mesmo loucos, soubessem de seu valor intrínseco...

Quando me chamaram de louco, foi isto o que eu fiz: agi como louco e simplesmente sorri. Vamos espalhar esta loucura de não revidar às afrontas e insultos? Da próxima vez que o chamarem de louco, ou de qualquer outra coisa, não contraponha argumentos de autodefesa e comiseração. Só ria. Talvez rir seja suficiente para vindicá-lo. Se não for, tudo bem. Há quem diga que o mundo precisa dos loucos.

Tuesday, January 17, 2017

Pretendo viver uma vida longa ou As vantagens de dizer o que se pensa

por Milton L. Torres

                Pretendo viver uma vida longa. Não sei o que você pensa disso, mas eu simplesmente adoro viver. Eu gosto de futebol, sou fã de sorvete, fico horas conversando com alguém que seja bom de papo, não perco nenhuma refeição, paro para admirar o sorriso das pessoas e, principalmente, não abro mão da música. Nada me incomoda: nem o latido do cão, nem o mormaço da tarde, nem a chuva inesperada, nem o canto do grilo, nem a coceira no pé, nem a buzina impaciente, nem o engarrafamento na hora da pressa, nem mesmo as reclamações dos outros. Nunca sofro de dor de cabeça, não tenho falta de ar, nunca padeço de tédio. Tudo, para mim, é diversão: o trabalho, a briga, os estudos, o ócio, a leitura, a hora de lavar os pratos! Está bem, há uma coisa que não coloco na minha lista: exercício físico, se não for para competir.
                Pretendo viver uma vida longa. Não guardo rancor, não fico remoendo os erros, não tenho medo de chutar o balde, não me acomodo com o que sei; porém, digo, logo de cara, o que me limita e, por isso, faço tudo do meu jeito, quer você queira ou não. Se não houver lugar para mim, o problema é seu. Vai perder a companhia! Eu não vou ficar sozinho. Tenho, afinal, esse instinto, faro para encontrar o outro, habilidade para ralar o coco, e o sorriso de uma lata aberta, sem medo, nem remorso! Não ligo para roupa, nem carro, nem smartphone, nem outro badulaque que encha os olhos do habitante comum da cidade. Eu não sou comum, nem troco ouro por espelho.
                Há vantagens na roupa velha e sem grife, pois corta o caminho do cálculo ambicioso, de quem só gosta das roupas e das grifes. Há vantagens em dizer o que se pensa: só se aproximam aqueles que já nos pesaram as palavras e sentiram que estão na mesma maré irresistível que nos puxa para o mar, nos mesmos sonhos alados, aguados, banhados com os raios do sol e com a luz das estrelas, a mesma vocação para o espaço aberto e os mergulhos profundos, sem ar, sem claridade, no meio dos tubarões. Há vantagens em dizer o que se pensa: esvazia-se a garrafa velha, limpa-se o antigo armário, cheio de vestes puídas e fantasias emboloradas, onde a traça corrói e o verme não se cansa nunca. Há vantagens em dizer o que se pensa: adeus, sentimentos sufocantes, lastimosos, comiserações e frustrações molestas!

                Pretendo viver uma vida longa. Não sei o que você pensa disso, mas é isto o que pretendo: setenta, oitenta, noventa, a dentadura no copo, o amparo da bengala, de mãos dadas, sem enxergar direito, tateando, trôpego, olhar morcegal, mas vivo! De pena trêmula na mão, o olhar fixo na página, um sorriso nos lábios e as certezas no coração, que ainda bate e palpita em um brinde à vida. Pretendo viver uma vida longa. Se não der, porém; se não me for possível, porém, alcançar a coroa longeva da minha fortuna, não me lamente! Valeu mais ter vivido feliz até hoje do que apenas projetar uma sombra imóvel e indistinta na parede esburacada do tempo, no tapume encovado de um futuro com o qual só posso sonhar, imaginar e desejar... Quem vive feliz nem precisa, de fato, viver muito, pois não há como viver mais, só viver melhor!