Saturday, June 15, 2013

A intenção de errar e fazer errar

por Milton L. Torres, PhD

                A pesquisa, quer seja científica, quer tenha caráter exclusivamente intuitivo, sendo, portanto, destituída de uma metodologia rigorosa que tenha sido desenvolvida a partir de longa reflexão e experimentação coerente, constitui uma forma cada vez mais comum de buscarmos uma interpretação plausível para a realidade como a contemplamos. De certa forma, quando recorremos ao Google para descobrir alguma coisa, estamos fazendo pesquisa. Nesse processo, raramente temos a intenção de errar. O que nos motiva à pesquisa, em vez disso, é o desejo de explorar possibilidades, isto é, o anseio de acertar. Para estabelecer a confiabilidade de nossas conclusões é vital que tenhamos sido fiéis a esse anseio e, principalmente, que tenhamos sido honestos ao interpretar nossas fontes.
                O uso de fontes serve para fundamentar e melhorar a qualidade de nosso trabalho de pesquisa. As citações concedem autoridade às conclusões às quais nossa pesquisa nos tenha levado, pois mostram que outras pessoas trilharam caminhos semelhantes aos nossos e, por essa razão, passaram a interpretar a realidade de maneira semelhante à nossa. Além disso, oferecem ao leitor da pesquisa condições de comprovar que o que dizemos tem fundamentação, dando-lhe, inclusive, a oportunidade de se aprofundar no tema em discussão. Nenhum estudioso deveria, portanto, fazer mau uso de suas fontes, pois isso comprometeria a confiabilidade de suas conclusões e levantaria suspeitas quanto a sua competência como pesquisador. O mau uso de fontes sugere, no mínimo, que o pesquisador foi precipitado em relação às conclusões a que chegou.
                A razão por que menciono essas coisas é que recentemente chegou à minha atenção a notícia de que uma afirmação minha foi empregada para dar sustentação a uma ideia que aqueles que me conhecem sabem que não apoio. Um site intitulado “Nova Aliança – Desde 1888” afirmou o seguinte:

É tanta a contradição de nossa mentalidade com a expressa por Paulo que não poucos entre nós consideram Paulo quase um inimigo da Igreja e desabafos como o Dr. Milton Torres que foi professor de teologia e hoje foi afastado para lecionar letras no UNASP aparecem entre nós: “me sinto aliviado de não ter mais que lecionar o livro de Romanos ao seminário teológico”.

O autor do texto passa a impressão de que considero o apóstolo Paulo um inimigo da Igreja e de que estou feliz por não mais ter que ministrar aulas sobre seus escritos. Nenhuma informação, porém, é dada acerca do lugar, data ou contexto em que eu tenha feito essa afirmação. Além disso, aqueles que acompanham o que escrevo sabem que a verdade é o oposto disso: considero o apóstolo como um dos pensadores mais intrigantes da Igreja primitiva e o admiro tanto que já escrevi dois livros sobre ele: Sã doutrina: medicina nas epístolas pastorais (2007) e Amor exagerado: a exorbitante pregação do apóstolo Paulo (2013).
                Não vou entrar em outros méritos da declaração como, por exemplo, a ideia de que fui afastado do seminário para dar aulas de letras. Fui afastado do seminário na mesma proporção em que qualquer pastor é afastado do distrito que pastoreia a fim de assumir novas responsabilidades em outra área. Nós, pastores, nos sentimos chamados por Deus e atendemos a seus mandados, mesmo que isso implique em deixar o conforto de nossas preferências a fim de segui-Lo aonde Ele nos enviar. Sem, então, entrar no mérito desse aspecto da citação, posso garantir que sinto falta das aulas de Romanos, como sinto falta de ministrar aulas de grego bíblico, a língua em que o Novo Testamento foi escrito e pela qual tenho paixão de intensidade comparável à que sinto quando estou ministrando aulas de literatura clássica, no Curso de Letras, ou aulas de Interpretação Intermitente, no Curso de Tradutor e Intérprete do UNASP. Essa saudade só foi mitigada quando, neste primeiro semestre de 2013, o SALT-UNASP me solicitou que, devido a uma situação imprevista, eu assumisse as aulas de Grego III, às quais seis heroicos estudantes compareceram e durante as quais se empenharam para deixar orgulhoso o velho professor: Almir, Áthila, Eduardo, Herald, Manoel Felipe e Maurício.
                 Não me lembro das palavras exatas de minha declaração de despedida aos alunos do quarto ano de teologia do SALT-IAENE, turma que concluiu seus estudos em 2008. Eles me concederam a oportunidade de lhes dirigir a palavra várias vezes naquele ano, principalmente a honra maior de fazer o sermão de consagração em sua cerimônia de formatura. Mantenho, ainda, contato com muitos deles e gosto de imaginar que hei de sempre poder contar com o carinho que eles me demonstraram durante as aulas, em nossos contatos informais no campus do IAENE e em nossas trocas de email e telefonemas até o dia de hoje. Apesar de não me recordar das palavras exatas, sei muito bem qual foi o seu teor: “estou aliviado de não ter mais que dar aulas no seminário”. Nessa declaração, nunca fiz referência a Paulo ou a Pedro, mas a afirmação continua: “estou aliviado de não ter mais que dar aulas no seminário porque julgo ser esta uma tarefa que exige grande entrega e pela qual sou muito cobrado – estou cansado de que pessoas mal intencionadas me torçam as palavras e exijam respostas prontas para suas dificuldades de interpretação da Bíblia quando, de fato, suas indagações não são oriundas do interesse sincero de aprender, mas da intenção de errar e fazer errar”.
                Diante do uso gratuito e inconsequente de minhas palavras, alteradas e postas fora de contexto, no site “Nova Aliança – Desde 1888”, em que se percebe mais a intenção de ferir e rebaixar do que de edificar e promover a investigação sincera das Escrituras, só me resta concluir que, embora não seja mais professor do seminário, não existe, de fato, nenhuma razão para que eu me sinta aliviado. Esse sentimento de alívio só existirá quando eu puder perceber que aqueles que se dizem irmãos, que se dizem meus irmãos, prescindirem dessa comichão de errar e fazer errar. Contra minha expectativa existe, porém, a percepção de Aristófanes (Aves 169-179) de que "o homem é uma ave (ho anthrôpos ornis): instável, fugaz, inconsequente e incapaz de permanecer em um só lugar".

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