Friday, July 15, 2016

Mentalidade de Morcego


por Milton L. Torres

           Não sou de reclamar da vida. Prefiro gastar minhas energias, celebrando-a. Hoje quero, porém, falar com o ombudsman. Como a gente só vive uma vida, tem que acertar tudo da primeira vez. Se a gente pensar bem, não parece certo. Por isso, tanta gente acredita em reencarnação, divórcio e vida após a morte. O que todo mundo quer, afinal das contas, é uma segunda chance...
          Não seria muito melhor se a gente tivesse a possibilidade de um ensaio antes de a coisa ser para valer? A gente nascia, crescia, fazia todas as asneiras que a gente sempre faz, parava, apertava reset e começava tudo de novo, pelo menos uma vez. Eu sei, muita gente ia querer ficar apertando reset toda hora. Ia ser preciso limitar. A gente colocava explícito nas regras: uma única vez, que nem acontece com os salvo-condutos que os calouros ganham nos programas musicais da televisão.
        Outra condição: a gente ia precisar lembrar de tudo. Assim, não seria difícil repensar as escolhas e, na segunda vez, fazer a coisa certa ou menos errada. Com isso, a gente descarta as encarnações e as almas penadas. Para que serve viver outras vidas? Eu não tenho vocação para barata, nem avestruz, nem bezerro. Não quero virar o Gasparzinho da esquina. O que eu quero é viver a minha vida de novo, melhor, mais sábio, mais perspicaz. O que eu preciso é de mais intuição, a sensação, ainda que tênue, de que há alguma lógica no que acontece conosco, de que dá para evitar as trapalhadas, quando eu tropeço nos meus próprios passos, e as atrapalhadas, quando eu faço as outras pessoas tropeçarem.
           De fato, quando paro para pensar, eu me sinto um morcego, olhando o mundo de cabeça para baixo, sem conseguir consenso, nem simpatia. E é como se eu fosse o último morcego do mundo, o único da minha espécie, dependurado ali na viga que sustenta a vida, com os olhos arregalados e míopes.
          Acho que a vida é especialmente injusta com os jovens. Eles têm que tomar tantas decisões importantes quando estão menos preparados para fazê-lo. Sorte a do Benjamin Button, que escapou disso! E não adianta a gente falar. A razão, inclusive, por que não se deve falar a surdos é que eles não ouvem...
Quer saber de uma coisa? Eu sou favorável às segundas chances. Devíamos inventar um novo tipo de divórcio, um divórcio para filhos. Seria mais ou menos assim: depois de passar a infância ou a adolescência com os pais, os filhos deviam poder entrar com pedido de divórcio e, depois disso, procurar pais novos, mais do seu agrado! Podiam fazer que nem Heródoto falou dos leilões de Babilônia em relação às belas e às feias. Compareceriam, acompanhados, ao leilão os filhos que queriam se divorciar dos pais e os pais que queriam se divorciar dos filhos. Os filhos ofereceriam os pais descartáveis para adoção. Assim, os filhos que também estavam sendo descartados podiam adotar esses pais. Depois, os que haviam feito o descarte podiam se adotar mutuamente. Isso poria fim às incompatibilidades e todos poderiam ser felizes, sem dores, a não ser a do descarte. Mas o que é uma dorzinha de nada quando a cirurgia plástica vai resolver o seu problema de um nariz protuberante e grotesco?
Não precisa fazer cara de espanto. Estou mesmo levando a sério essa história de mentalidade de morcego. Se você não concordar comigo, não se preocupe. Simplesmente continue a viver a dignificada vida de ser humano normal, sem dar muita atenção aos guinchos que ecoam da minha parte escura do poleiro. Porém, se você se sente às vezes assim, seja bem-vindo. Tem muito espaço aqui do meu lado. Mas aviso logo: de cabeça para baixo, a gente está sujeito a vertigens...

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