Entre
1998 e o ano 2000, eu morei em frente a um campo de golfe. Isso me deu a
oportunidade de catar várias bolas de golfe que teimavam em se extraviar de seu
destino pretendido e pousavam no meu quintal como aves cansadas. Nem sempre
aqueles que as lançavam naquela direção vinham reclamá-las. Talvez pensassem
que não valia a pena atravessar a rua movimentada para tentar recuperar o que
haviam perdido. As bolas de golfe variavam em cores, principalmente brancas,
vermelhas e amarelas, mas eram de tamanho uniforme, pois aquilo podia acontecer
com qualquer uma. Algumas se perdiam em seu primeiro voo e pareciam
imaculadamente perfeitas. Outras traziam as marcas das tacadas da vida e
apresentavam pequenas deformações. Ainda outras vinham manchadas ou sujas. Além
disso, em geral, continham um número, de zero a cinco.
Eu
nunca me interessei pelo golfe e confesso que não compreendo a razão dos
números, das cores e outras características peculiares às minhas amigas
esféricas. Apesar disso, eu guardei aquelas bolas de golfe e elas me acompanham
há quase 20 anos. Conservo-as em casa, em um balaio de vime, que vem resistindo
bem à passagem do tempo. Nem sei explicar exatamente por que conservo essas
lembranças de um tempo que veio e se foi. Não sofro de nenhuma nostalgia
inexplicável por não mais morar em frente ao campo de golfe e sua paisagem
sedativa.
O
que sei é que esses globos em miniatura passaram a fazer parte da minha vida e
que, toda vez que olho para eles, me ensinam a mesma lição: os relacionamentos
são esféricos e sem alças. Não há como nos apegarmos a eles pela bruta força de
mãos e braços. Em sua circularidade quase perfeita, os relacionamentos nos exigem
investimentos cíclicos e recorrentes. Como as bolas de golfe, lançamos nossas
emoções em vários sentidos e direções. Como resultado dessa audácia, essas
emoções e os relacionamentos aos quais se filiam acabam se comportando como as
pelotas coloridas do meu balaio de vime. Ao sofrerem as tacadas da vida, em seu
voo primeiro ou enésimo, acabam sujas, manchadas, deformadas. Extraviam-se e se
perdem. Para recuperá-las, é necessário transpor não apenas uma rua
movimentada, mas o fosso profundo que se interpõe entre nós e as pessoas amadas
ou toleradas.
Nunca
tentei consertar as bolas de golfe do meu balaio de vime. Mas não acho que seja
possível desentortá-las, nem lhes eliminar as manchas. O máximo que fiz foi
lavá-las para conservá-las limpas e apresentáveis, uma espécie de maquiagem
postiça a fim de atenuar as cicatrizes profundas de golpes e colisões. No final
das contas, após anos e anos de convivência com os equívocos redondos de meus
relacionamentos, esse balaio de gatos em que se transformou o meu coração,
concluí que é inevitável sofrer com marcas e manchas. Descobri, porém, que há
uma razão existencial por que as bolas de golfe são numeradas. Esses números
sugerem nossas prioridades. A prioridade “zero” são os relacionamentos efêmeros
aos quais nunca deveríamos dar o poder de nos magoar. A prioridade “cinco” são
os relacionamentos periféricos, insignificantes, que não conseguiriam nos
magoar mesmo que tentassem. A prioridade “dois” são os relacionamentos
secundários, que não são importantes o bastante para requerer sacrifícios e
esforços múltiplos de manutenção. Entretanto, há a prioridade “um”, aqueles
relacionamentos sem os quais seria impossível continuar a vida como a
conhecemos e desejamos. No caso dessas bolas de golfe número 1, por elas vale a
pena atravessar a movimentada rua do tempo, em que um calendário autoritário ou
um relógio arrogante, como automóveis desgovernados, nos ameaçam os gestos e as
afeições. Por elas, vale a pena cruzar o fosso das mágoas, por mais profundo
que seja. Vale a pena correr todos os riscos, inclusive o da vulnerabilidade. Vale
a pena fazer sacrifícios e imolações, apesar das manchas e cicatrizes. Vale a
pena recuperá-las para impedir que vão parar em um balaio de vime, em um canto
qualquer e, em vez disto, acomodá-las majestosa e intencionalmente no trono do
nosso coração, à vista de todos, à vista de Deus.
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