Friday, October 05, 2012

A Dimensão Escatológica dos Pequenos Grupos

por Milton L. Torres, PhD


Muito se tem escrito acerca dos pequenos grupos desde que a Igreja Adventista se conscientizou de que a prática comum, em outras denominações evangélicas, de valorizar o evangelismo relacional e a provisão de cuidado em um ambiente socialmente acolhedor (PRIME, 2007) estava em harmonia com as orientações dadas por Ellen White aos pioneiros adventistas: “a formação de pequenos grupos como base do esforço cristão, é um plano que foi apresentado diante de mim por Aquele que não pode enganar-se” (WHITE, 1985, v. 3, p. 84). No entanto, embora o título de uma das obras mais populares (JOHNSON, 2000) acerca dos pequenos grupos, no meio adventista, faça referência ao tempo do fim, essa obra mais trata de como devem ser os pequenos grupos e quais são os seus fundamentos do que acerca das dimensões escatológicas dos pequenos grupos. Por isso, ainda é preciso que reflitamos sobre a relação entre os pequenos grupos e a escatologia adventista.

Há riscos intrínsecos à empreitada de tratar da escatologia. Aliás, tal perigo aparece de forma embrionária na própria etimologia do termo “escatologia”, aplicado, em português, a duas vertentes bastante distintas do estudo dos textos antigos e de suas implicações para a compreensão do passado, do presente e do futuro. Dependendo da origem etimológica da palavra, ela pode se referir tanto ao estudo das antigas comédias gregas, dizendo respeito especialmente às propensões dos comediógrafos antigos de recorrerem, com frequência, a anedotas sobre situações que envolviam os excrementos de seus personagens (o substantivo neutro da terceira declinação skôr, skatos significa, em grego, “fezes”), quanto às doutrinas pertinentes aos últimos acontecimentos a ocorrerem na terra, segundo as convenções do antigo gênero apocalíptico (o adjetivo triforme eschatos, eschatê, eschaton significa, em grego, “último”). Como se percebe, quando tentamos fazer incursões em uma dimensão tão ardilosa quanto a escatologia, podemos ter o mérito de fazer precisas observações sobre o futuro do mundo e da igreja ou, inversamente, podemos incorrer na temeridade de construir castelos de areia, casas de palha ou, o que é pior, pilhas de esterco. Aos castelos de areia, qualquer vento de doutrina pode derrubar; às casas de palha, qualquer lobo em pele de cordeiro pode soprar; e as pilhas de esterco só atraem as moscas varejeiras. Ou seja, a escatologia pode decepcionar por não ter sustentação adequada ou, por outro lado, por não ser vigorosa e imaginativa o bastante para nos atrair a atenção e nos fazer refletir acerca do futuro que nos aguarda.

Em junho de 2009, eu estava traduzindo as palestras do Pr. David Cox, no Clube Estoril, em Campo Grande (MS), quando esse distinto especialista adventista em pequenos grupos e autor de um de nossos primeiros livros sobre o assunto (COX, 2000) indagou às quase mil e duzentas pessoas que compareceram ao evento se Deus necessitava dos pequenos grupos para concluir a obra de pregação do evangelho. Diante de uma retumbante resposta positiva do auditório, Cox os decepcionou momentaneamente ao afirmar que Deus não necessitava de nada nem ninguém para realizar seus desígnios. Os líderes e supervisores de pequenos grupos que estavam ali presentes perceberam, então, que a obra que realizam é um privilégio que lhes é franqueado por Deus e não o barco salva-vidas que há de, unicamente, conduzir a igreja até o seu triunfo final. Por outro lado, Cox deixou clara sua crença de que os pequenos grupos fazem parte do plano de Deus para a consumação escatológica do presente século.

Jolivê Chaves (2008, p. 29-34) fala de “tempos favoráveis” aos pequenos grupos. Devo confessar que é uma tentação mostrar, neste capítulo, exatamente isso: que os pequenos grupos se encaixam perfeitamente numa estratégia efetiva de evangelismo, capaz de alcançar essa tão indecifrável mentalidade pós-moderna. Os pequenos grupos proporcionam um admirável ambiente para a expressão de um dos valores mais prezados pelos pós-modernos: o valor da autonomia, contribuindo para a compreensão de que a cada um compete uma obra e fomentando a liberdade necessária para a realização da mesma (RIBEIRO; ANDRADE, 2008, p. 91-100); ao mesmo tempo, esvazia o contexto cristão de uma das ameaças mais temidas de nossa época: a do abuso de autoridade. Meu esforço para resistir a essa disposição advém, principalmente, do reconhecimento de que essa verdade já foi suficientemente estabelecida entre os adventistas (CUTRIM, 2007, p. 91-108). Nossa compreensão dessa vantagem indiscutível dos pequenos grupos já informa nosso discurso sobre crescimento de igreja e impregna nossa prática eclesiástica (RODE; RODE, 2007, p. 59-69).

Recentemente, o psicólogo adventista Mario Pereyra chamou a atenção para três aspectos da dimensão psicológica da escatologia adventista. Citando um texto do Novo Testamento: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre as nações em perplexidade por causa do bramido do mar e das ondas; haverá homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo; pois os poderes dos céus serão abalados. Então se verá o Filho do homem vindo numa nuvem, com poder e grande glória” (Lucas 21:25-27), Pereyra (2006) afirma que Jesus usa três frases que descrevem sinais diferentes, mas relacionados, para se referir ao tempo do fim. A expressão “angústia das nações”, indicando uma ansiedade coletiva; “o rugido do mar e das ondas”, com referência a um estado confuso de perplexidade; e “homens desmaiando de medo e na expectativa do que virá ao mundo”, advertindo de um desfalecimento humano. Segundo ele, “esses sinais ligados com a vida parecem predizer aspectos globais de conduta e estilo de vida, que envolvem saúde mental”. Em uma descrição gráfica, Lya Luft (2009, p. 26) fala desse estado de confusão e desse arrefecimento da vontade de viver: “convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado”.

Em verdade, a ansiedade relacionada à salvação e às incertezas do futuro representa um elemento que afeta não apenas a cultura mundial como um todo, mas também a apreciação adventista do estilo de vida abraçado pelos membros da igreja. É necessário que haja um ambiente acolhedor e propício para que os adventistas possam dar vazão a seus temores, inseguranças e perplexidades. Segundo Émile Durkheim (2003, p. vi), considerado um dos pais da sociologia moderna, “é um postulado essencial da sociologia que uma instituição humana não pode repousar sobre o erro e a mentira, caso contrário não pode durar”. Dessa forma, podemos entender que a crise hoje vivida pela instituição do casamento deriva do fato de que o relacionamento conjugal está cedendo às pressões imediatistas e relativistas de nossa época, tornando-se apenas uma fachada. Por outro lado, a vitalidade da Igreja como instituição social resulta principalmente de sua habilidade de dar sustentação legítima a relacionamentos sinceros e duradouros, embasados em características humanas tão importantes quanto a esperança, a consolação e o espírito de comunidade.

É natural que as pessoas demonstrem ansiedade quando confrontadas com perigos reais e iminentes. As Escrituras, de fato, fazem referência a momentos, mais adiante na história humana, que podem ser descritos (por falta de uma expressão mais politicamente correta), no mínimo, como “tensos”. Em razão disso, os pequenos grupos adquirem certa importância terapêutica. Segundo Ellen White (1995a, p. 274), “os pequenos grupos que se reúnem para estudar a Bíblia desenvolvem músculos espirituais”. Que os tempos tolerantes da pós-modernidade não nos enganem. As perseguições religiosas ocorreram no passado recente da humanidade e, dadas as condições voláteis do fenômeno religioso, voltarão a ocorrer no futuro. No caso dos países em que, mesmo hoje, não há liberdade religiosa, os pequenos grupos já desempenham o papel fundamental de prover um espaço dinâmico para a expressão da fé adventista e do sentimento de solidariedade que geralmente a acompanha.

A perseguição religiosa tem sido um temor histórico dos adventistas. Assim, Ellen G. White via nos pequenos grupos e no isolamento social intencional uma sólida proteção contra a perseguição mais exacerbada. Ela declara:

Vi os santos deixarem as cidades, e vilas, reunirem-se em grupos e viverem nos lugares mais solitários da Terra. Anjos lhes proviam alimento e água, enquanto os ímpios estavam a sofrer fome e sede. Vi então os principais homens da Terra consultando entre si, e Satanás e seus anjos ocupados em redor deles. Vi um impresso, espalhado nas diferentes partes da Terra, dando ordens para que se concedesse ao povo liberdade para, depois de certo tempo, matar os santos, a menos que estes renunciassem a sua fé estranha, abandonassem o sábado e guardassem o primeiro dia da semana” (WHITE, 1995b, p. 282).

A “fé estranha” dos adventistas não permite que sejamos incluídos entre os conformistas de nossa época. Em vez disso, anunciamos um evangelho de transformação radical que conclama as pessoas a abandonarem o materialismo, a passividade social, a sensualidade, o consumismo voraz, o imediatismo, o culto anoréxico à aparência e outros comportamentos icônicos de uma sociedade que ostenta o slogan da morte de Deus. Por essa razão, devemos esperar oposição intransigente por parte de muitos, especialmente daqueles cuja cosmovisão já se pode dizer incompatível com as elevadas realidades espirituais do evangelho. Polanyi (1958, p. 380) dá uma boa descrição dessa forma equivocada de ver o mundo:

A lei nada mais é do que o que os tribunais decidirem; a arte, nada mais do que um emoliente dos nervos; a moralidade, nada mais do que uma convenção; a tradição, nada mais do que inércia; Deus, nada mais do que uma necessidade psicológica. Assim, o homem domina um mundo no qual o próprio homem não mais existe. Ao abrir mão de suas obrigações, também abriu mão de sua voz e esperança. Foi deixado para trás e não tem sequer significado para si mesmo.

De fato, a predição bíblica é que, nos últimos dias, os homens se tornarão cada vez mais perversos e “irão de mal a pior, enganando e sendo enganados” (2 Tm 3:13). Basta que analisemos, com um pouco mais de atenção, as configurações sociais a que os processos de globalização nos têm levado para que percebamos a realidade dessa declaração. O neoliberalismo hegemônico tem produzido desemprego generalizado, um mercado predatório no qual poucos conseguem se estabelecer, profundas desigualdades sociais, a valorização de bens supérfluos que podem ser consumidos pelos mais abastados em detrimento da produção de alimentos, violência espontânea e aumento no número de pessoas com dependência química ou deprimidas. Como lidar com essas insuportáveis pressões do mundo que nos rodeia Esses são os sinais dos tempos. Para enfrentá-los, é necessário que desenvolvamos uma rede confiável de apoio, à qual possamos recorrer nos momentos de crise. Enquanto é verdade que as pessoas estejam hoje mais preocupadas em salvar a pele do que em salvar a alma, podemos criar e manter um núcleo de pessoas espirituais e dedicadas à preservação da fé e da esperança, sensíveis às necessidades individuais do povo de Deus e do ser humano de modo geral, diante da hostilidade do meio social em que existimos.

Além da segurança escatológica provida pelo ambiente protetor dos pequenos grupos, estes ainda contribuem com a dinâmica ideal para que possamos funcionar como comunidade e, ao mesmo tempo, cumpramos os desígnios de Deus para o seu povo no tempo do fim. A Bíblia deixa isso claro quando a parábola do banquete de casamento (Mt 22:1-14) identifica quais são aqueles que estão realmente esperando pela segunda vinda de Cristo: aquelas pessoas que aprenderam a não se preocupar exclusivamente com assuntos de interesse pessoal, sua família, seu trabalho e seu lazer. Da mesma forma, a parábola das virgens (Mt 25:1-13) enfatiza que é impossível saber a hora exata da volta de Jesus e, por isso, os cristãos precisam viver em uma constante expectativa. Nesse sentido, a parábola dos talentos (Mt 25:14-30) nos ensina que o modo correto de esperar pelo retorno de Jesus é usando os talentos, de forma desinteressada, em benefício do semelhante (DAILY, 1994, p. 169-180). Finalmente, a parábola dos bodes e das ovelhas (Mt 25:31-46) enfatiza que a obra de esperar pelo Salvador é caracterizada, principalmente, por uma atitude de humildade. Uma igreja organizada em pequenos grupos tem muito mais chances de prover os meios ideais e as condições necessárias para que a espera da volta de Jesus seja uma experiência enriquecedora que construa relacionamentos e aproxime as pessoas. A proximidade proporcionada pela criação de uma comunidade comprometida com os princípios do reino de Deus é um bem cuja importância não pode ser subestimada. A sensação de expectativa e o desejo premente de experimentarmos o amor de Deus em sua plenitude contribuem para uma convivência harmoniosa e significativa.

De acordo com Manning (2007, p. 83), a “religião restrita e separatista é um lugar isolado, um Éden coberto de mato, uma igreja na qual as pessoas vivem em uma alienação espiritual que as distancia de seus melhores talentos humanos”. Os pequenos grupos constituem, exatamente, um antídoto para esse tipo de religião. Parafraseando Eugene Peterson (2005, p. 17), eu diria que os pequenos grupos não existem para entreter; nem para divertir; nem para a cultura; não são a chave que destranca segredos do futuro, mas existem para demonstrar que a intimidade com Deus e uns com os outros é essencial. Nesse contexto, Manning (2007, p. 157) relata a história do homem que vivia dentro de um contêiner, na Austrália, para fugir da vida. Quando o contêiner foi perfurado por balas, que também atingiram seu morador, orifícios se abriram pelos quais este foi capaz de observar a vida comum das pessoas ao seu redor. Isso o recuperou para a vida em sociedade: as feridas são, de fato, necessárias. Nesta época, às vésperas do cumprimento escatológico das profecias bíblicas, necessitamos de uma experiência trinitária. Precisamos constatar que não estamos sozinhos “na estrada de tijolos amarelos”. Ser discípulo é compreender que paixão significa sofrimento e, assim, ter um vislumbre da vulnerabilidade de Deus, que chegou a todos os extremos movido pelo desejo de nos salvar para a vida em comunidade.

Os pequenos grupos podem, dessa forma, cooperar com as forças espirituais do bem para o triunfo da vontade de Deus nos derradeiros momentos da história deste mundo. Ellen White (1967, p. 92) nos dá o seguinte conselho:

Que pequenos grupos se reúnam à noite, ao meio-dia ou cedo pela manhã para estudar a Bíblia. Que eles experimentem um período de oração para que sejam fortalecidos, iluminados e santificados pelo Espírito Santo. Se você abrir as portas de seu lar para recebê-los, grandes bênçãos lhe serão concedidas. Anjos de Deus estarão presentes na reunião. Será como se você se alimentasse das folhas da árvore da vida.

A dimensão escatológica dos pequenos grupos recobre, portanto, os campos de batalha em que se trava a luta contra as trevas deste século: a comunidade, a igreja, o lar e o coração das pessoas. A sua solução para os dilemas do ser humano, embora simples, jaz no cerne da própria realidade das coisas espirituais: se não pudermos viver em íntima comunhão nesta vida, neste lugar e neste momento, aprendendo a nos suportar mutuamente (Cl 3:13), nossos sonhos escatológicos e nosso desejo esperançoso por um futuro que não mais esteja às avessas não passarão de gracejos cruéis, devaneios insubstanciais e miragens vazias.

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Publicado originalmente em: GODINHO, Paulo (Coord.). Aprofundando a caminhada: programa de formação de líderes. Niterói: Juizforana, 2010. p. 14-17.

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