Tuesday, September 25, 2012

A Tumba de S. Pedro e a Sucessão Apostólica

por Milton L. Torres, PhD


Quando o Papa Pio XII anunciou, através de um discurso radiofônico, em 1942, a descoberta, debaixo da Basílica de São Pedro, no Vaticano, da tumba de São Pedro, as reações variaram da euforia acerbada ao frio ceticismo. A tumba seria parte de uma extensa necrópole pagã (20 x 65 m) descoberta, em 1939, por acaso, cerca de 9,9 m abaixo da maior igreja do mundo, quando Monsenhor L. Kaas procurava um lugar para a instalação do sarcófago de Pio XI e alterações estavam sendo feitas a fim de se prover espaço para tal finalidade. As escavações tiveram início imediato e duraram quase duas décadas. O discurso de 1942 foi, na verdade, uma precipitação do pontíficie, que acabou tendo de, repetidas vezes, responder às objeções dos arqueólogos não católicos quanto às conclusões às quais chegou o comitê nomeado por ele para tal fim e constituído de B. M. Apollonj-Ghetti, A. Ferrua, E. Josi e E. Kirschbaum. O volumoso relatório das escavações, publicado sob o título de Esplorazioni, não peca, contudo, por falta de escrúpulos, uma vez que inclui uma competente descrição do processo, mas, em contrapartida, tampouco deveria ter dado lugar às estrapolações que se seguiram.

Arqueólogos de ponta, à época, como A. M. Schneider, A. von Gerkan, P. Lemerle, H. Marrou e H. Torp, entre outros, afirmaram que a evidência é inconsistente com a identificação da tumba do apóstolo. Eles rejeitaram, portanto, o relatório oficial (em parte ou em sua totalidade). T. Klauser levantou a objeção de que nunca, de fato, tenha existido qualquer tumba real de São Pedro no Vaticano. De acordo com ele, foi apenas no ano 165 A.D. que os cristãos de Roma se interessaram pela primeira vez em possuir uma tumba do apóstolo. A razão real para tal teria sido a sucessão apostólica, o desejo de dar à Igreja de Roma uma posição privilegiada no Cristianismo ocidental. A despeito dos protestos de H. Torp de que os arqueólogos do Vaticano haviam datado o cemitério sob a basílica de São Pedro cinquenta anos mais cedo do que deviam, a descoberta de outra necrópole debaixo do estacionamento do Vaticano provou que a área já estava sendo usada como cemitério pelo menos no ano 67 A.D., o que se encaixa bem na cronologia da morte do apóstolo. O problema é que, de acordo com o relatório oficial, a estrutura identificada como sendo o assim-chamado troféu (mencionado por Gaio em sua disputa com Proclo) deve ser datada entre os anos 160 e 175 A.D., fazendo com que uma lacuna de cem anos exista entre a morte de Pedro e a construção do monumento. Eusébio, em História eclesiástica 2.25, refere-se à afirmação de Gaio, segundo a qual os túmulos de Pedro e Paulo teriam sido erigidos em Roma. Embora T. Klauser objete às conclusões do relatório oficial, ele admite que o monumento recuperado sob a basílica seja mesmo o troféu de Gaio. Sua posição, contudo, é que o troféu não se encontra sob a tumba de Pedro conforme alegado pelo relatório.

O assim-chamado Liber pontificalis (uma coleção de biografias papais, compilada entre o quarto e o nono séculos) dá um detalhado, mas às vezes confuso, relato da obra feita, na Antiguidade, a pedido do Papa Silvestre e sob a autoridade do Imperador Constantino, na suposta tumba de São Pedro: “a pedido de Silvestre, Constantino Augusto construiu uma basílica para o bendito apóstolo Pedro próxima ao templo de Apolo, encobrindo, assim, o sepulcro do corpo de São Pedro. Ele fechou a tumba mesma em todos os lados com bronze cíprio, tendo-a construído com alvenaria... Adornou, então, o altar acima com colunas de porfírio, e fez uma cruz do ouro mais puro, pesando 150 libras, que colocou acima do bronze que encapsulava o corpo de Pedro.” O texto da inscrição gravada por Constantino e Helena se encontra preservado em uma inscrição (no. 4093 do segundo volume de Inscriptiones christianae urbis Romae septimo saec. Antiquiores). Nada disso foi encontrado junto à estrutura identificada pelo relatório oficial como sendo o troféu de Gaio. O que temos é um graffito grego na assim-chamada “Parede Vermelha” com as letras PETR e outro graffito latino na tumba dos Valérios (Tumba H) com as letras PETRU, a cerca de 30 m de distância da estrutura, acompanhado de duas pinturas, uma sobre a outra: o busto de Cristo (acima) com a legenda “vivo” e o símbolo da fênix, e o busto de Pedro acompanhado de uma epígrafe de cinco linhas de extensão. A. von Gerkan explicitamente discorda do relatório, afirmando que tal estrutura não pode absolutamente alojar uma tumba, mas – quem sabe – um cenotáfio, um memorial sem túmulo construído para comemorar a morte do apóstolo. Mas nem mesmo esta sugestão soluciona o problema uma vez que o termo grego troféu jamais se refere, na literatura, a um cenotáfio. Com efeito, os estudos de J. Bernardi provam, com base em passagens de Eusébio, Gregório de Nisa, Basílio, Gregório Nazianzo e Prudêncio, que o termo se referia, de fato, ao corpo ou às relíquias de um mártir.

Os arqueólogos católicos obviamente não se interessaram pela proposta de A. von Gerkan de que o troféu seja mesmo apenas um cenotáfio, pois implicaria que a Igreja de Roma não teria o corpo de Pedro, mas que apenas teria construído um monumento dedicado ao apóstolo. Com isso, recaiu sobre os católicos o fardo de explicar a lacuna de pelo menos cem anos entre a morte do apóstolo e a edificação do troféu, e a lacuna de outros quase cem anos entre a construção do monumento e a inauguração da basílica dedicada ao apóstolo. jérôme Carcopino propôs uma interpretação da segunda lacuna com uma referência à tradição antiga de que o corpo de Pedro teria sido enterrado, durante certo tempo, na catacumba de São Sebastião, em Roma, a fim de poupar o corpo do apóstolo da perseguição dos pagãos. Os restos do apóstolo teriam sido clandestinamente removidos de seu suposto sepulcro original no Vaticano, em 258 (quando o Imperador Valeriano decretou que os cemitérios cristãos não mais poderiam ser visitados), e trasladados para São Sebastião, onde ficariam até 336 quando, por ocasião do término da construção da basílica de Constantino, teriam retornado ao sepulcro supostamente associado ao troféu. As relíquias do apóstolo teriam, então, permanecido em frente do troféu até o sexto século, quando o Papa Gregório, o Grande, as teria transferido para um local menos conspícuo por causa de seu temor de uma invasão dos godos. Carcopino, no entanto, nem sequer sugere que os ossos encontrados debaixo do nicho do troféu tenham sido os do apóstolo, uma vez que a invasão dos bárbaros saracenos comprometeu a integridade do sepulcro no século nono. Segundo os arqueólogos católicos, as relíquias de Pedro podem ter sido, em vez disso, transferidas, nessa época, para a Igreja de São Paulo, no Palácio Laterano, em Roma, um lugar conhecido como sancta sanctorum. De fato, há referências a essa tradição (aparentemente rival à do sepultamento no Vaticano) desde o séc. XII: as cabeças de Pedro e Paulo teriam sido sepultadas no Laterano enquanto os demais restos dos dois apóstolos teriam recebido sepultamento no Vaticano.

Todas essas especulações pressupõem que o corpo de Pedro tenha sido colocado sob os cuidados dos cristãos, uma vez que a lei romana exigia que os corpos de criminosos fossem atirados às águas do Tibre. Contudo, se o sepultamento do corpo de Pedro foi mesmo permitido, sua sepultura seria protegida pela lei romana por se constituir naquilo que os romanos chamavam de locus religiosus, uma vez que a religião pagã considerava invioláveis os sepulcros. Por isso, E. Schäfer se opõe veemente à teoria da trasladação das relíquias de Pedro em 258. Ele argumenta que não teria havido necessidade para tal transferência uma vez que a tumba de Pedro se localizaria num cemitério pagão e não estaria, portanto, sujeita à proibição do Imperador Valeriano, que havia transformado os cemitérios cristãos em lugares proibidos. Além disso, é bem improvável, em se considerando o alto respeito que os romanos tinham pelos mortos, que estes tenham cometido quaisquer atos de desrespeito aos corpos sepultados nos cemitérios cristãos mesmo durante os períodos de perseguição. A presença de graffiti na catacumba de São Sebastião, na via Ápia, referindo-se a Pedro pode ser bem explicada, em vez disso, como evidência de um culto rival que considerava aquele sítio como local original do sepultamento do apóstolo.

De acordo com um edito do Imperador Valeriano citado na Acta Cypriani, a veneração das relíquias dos mártires já existia, em Roma, por volta de 258 A.D. Assim, pode-se estabelecer, de fato, uma longa tradição associada ao sepultamento de Pedro e Paulo em Roma. O argumento mais forte em favor à existência da tumba de Pedro no Vaticano diz respeito à construção da basílica constantiniana ali. Em vista do fato de que Constantino construiu sua basílica sobre um cemitério pagão, quando este era considerado inviolável pela elite pagã romana, e quando os cristãos já possuíam seus próprios cemitérios, e em vista do fato de que, para construí-la ali, Constantino teve que superar formidáveis dificuldades arquiteturais, o imperador certamente pensava que o apóstolo estava enterrado ali. Tal conclusão é corroborada pelo fato de que, em 349 A.D., o Imperador Constante passou uma lei que proibia severamente o violatio sepulcri (violação de sepulcros), fazendo-a, inclusive, retroativa aos dezesseis anos anteriores. A razão para isso é que, em 333, Constantino havia dado as ordens de destruição da necrópole pagã no Vaticano a fim de ali construir sua basílica, o que gerou uma espoliação generalizada das sepulturas ali existentes.

A conclusão é que são tantas as incógnitas associadas à categórica afirmação do Vaticano de que a tumba de São Pedro jazeria sob a basílica dedicada ao apóstolo que causa estranheza a insistência de Pio XII, à época, de que Pedro estaria enterrado ali. O que parece é que o pontífice fez uso de uma investigação arqueológica de grande interesse para meramente renovar a alegação católica de que a sucessão apostólica confere autoridade ao Vaticano. Seu esforço falhou em duas instâncias: fica a dúvida arqueológica de que o Vaticano tenha sido mesmo o lugar de sepultamento do apóstolo e fica, outrossim, a aparência mal disfarçada de que o Vaticano não tem nada mesmo que lhe confira primazia sobre as demais igrejas. De acordo com os objetores, não seria esta a primeira vez que o Vaticano estaria tomando medidas extremas para garantir moral e legalmente um lugar de destaque entre os cristãos do ocidente, já que, em 760 A.D., durante o papado de Paulo I e com sua provável conivência, foi criada a notória “Doação de Constantino”, um documento forjado pelo Vaticano através do qual o Imperador supostamente teria outorgado ao papa, por ocasião da mudança da capital de Roma para Constantinopla, o controle político de Roma e do ocidente.

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