Wednesday, September 19, 2012

Minha História de Vida


por Milton L. Torres, PhD



Origens

“Vede, não desprezeis a qualquer destes pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de meu Pai celeste” Mt 18:10 (ARA).

Meu pai abandonou-nos antes de eu completar oito anos. Todas as lembranças que tenho dele pertencem, portanto, aos oito primeiros anos de minha vida. Até pouco tempo, a única fotografia que nos restou desses tempos perdidos na névoa da existência me mostra tímido, tentando esconder-me atrás de outras pessoas. Ao fundo, um cômodo de táboas que hoje sei ter sido minha primeira residência. Não tínhamos banheiro ou água corrente. Não me recordo se havia eletricidade.

Desses oito primeiros anos, não me lembro com detalhes. Sei que, bêbado, meu pai me dava, às vezes, uma arma carregada para que corresse atrás de minha mãe e a assustasse. Sei que, certa vez, obrigou-me a fazer uma longa caminhada, sozinho, a fim de depositar, debaixo de uma ponte, uma galinha morta, que eu carregava para uma de suas feitiçarias. Lembro-me de tê-lo visto espancar minha mãe mais de uma vez. Obrigava-me, vez por outra, a comer carnes pouco convencionais: macacos, tatus, jiboias, gatos. Sei que, antes de meu pai nos deixar, tentei, em vão, fugir de casa. Lembro-me das fobias noturnas, que me deixavam insone, imaginando fantasmas e monstros, primeiros exercícios da minha imaginação. O meu mundo fazia parte de um universo escuro e inseguro, cuja única luminosidade provinha das visitas que fazia à igreja e do contato amigo dos sacerdotes. Minha única esperança era que houvesse um Deus capaz de se compadecer de nosso sofrimento constante, das privações de comida e afeto, das incompreensões e abusos.

Quando meu pai se foi, percebi ser aquela a oportunidade para que construíssemos um lar novo. Assumi, imediatamente, a responsabilidade pela família, saindo com uma caixa de engraxate e com um pacote de doces a fim de complementar o salário mínimo que minha mãe recebia por contar vacinas na Secretaria de Saúde do estado. A despeito de todas as vicissitudes, sentia-me um predestinado, capaz de superar as dificuldades a fim de continuar vivo. Na aurora da vida, em meio a um turbilhão de problemas, Deus me foi um “alto refúgio e proteção no dia da minha angústia” Sal 59:16 (ARA), e nunca deixei de me dar conta disso.


Mudanças

“Não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira” Cant 3:5 (ARA).

A adolescência é sabidamente um período difícil. São alterações demais para que a mente comum consiga escapar às diversas ansiedades geralmente associadas com as mudanças. Mudanças no tom de voz, mudanças na estatura, mudanças na quantidade de pêlos espalhados pelo corpo, mudanças hormonais, mudança do primeiro para o segundo grau, mudanças em relação à atitude para com o sexo oposto, mudança da fisionomia de criança para a fisionomia amorfa de quem não é mais criança mas ainda não chegou à idade adulta. Você já passou por isso e sabe do que estou falando... Tudo isso fica ainda mais complicado quando essas mudanças são acompanhadas de uma “queda”. Você já teve uma “queda” por alguém? Você já se sentiu desesperadamente ignorado e sem forças para mudar a situação? Era exatamente assim que me sentia quando, em plena puberdade, tive uma “queda” por uma menina mais velha. Agora, não me entendam mal. Oito meses representam uma diferença de idade considerável quando se está aos quatorze anos e se começa a gostar de uma menina de quinze!

Outros fatores fizeram com que a dificuldade fosse ainda maior. Tania (escrito sem acento como ela sempre preferiu) era diferente de mim em praticamente todos os sentidos. Era popular, vestia-se bem, tinha uma religião diferente, andava com rapazes mais velhos do que eu, estava mais adiantada na escola e tinha uma condição sócio-econômica consideravelmente superior à minha. Além disso, todas as vezes que se aproximava de mim, deixava-me mais destituído de energia do que o super-homem quando exposto à criptonita. As palavras ficavam confusas, as mãos começavam a suar e o cérebro simplesmente emperrava, obrigando-me a fazer um “reset” tão logo ela se afastava. Se você já passou por uma situação semelhante, acho que você vai gostar das meditações desta semana. Enquanto isso, lembre-se do que está escrito na Bíblia: “se não me fizerdes saber o sonho, uma só sentença será a vossa” (Dn 2:9); ou seja, quando temos um sonho, é preciso contá-lo para que se concretize. No caso dos sonhos de amor, é preciso contá-lo, primeiro, a Deus e, depois, à pessoa com a qual sonhamos.


Falando com os olhos e com a boca

“Esquentou-se-me o coração dentro de mim, enquanto eu meditava se acendeu um fogo; então falei com a minha boca” Sal 39:3 (BRP).

Como é possível falar do inenarrável? Como é possível descrever o indescritível? Como se pode falar de sentimentos cuja profundidade é determinada mesmo pelo fato de serem sentidos pela primeira vez? Como se pode falar de amor a uma jovem? Pode haver uma ocasião ideal para isso? Não os vou enganar. Não sei as repostas para essas perguntas e nem sei se essas perguntas têm respostas padronizadas, aplicadas, sem distinção, a todos os casos. Vou contar-lhes apenas como fiz, mas tampouco sei se isso será suficiente.

Primeiramente devo dizer-lhes que não planejei nada. Queria que aquele momento fosse espontâneo. Não decidi nem a hora e nem o local. Fiquei simplesmente aguardando uma oportunidade, um momento em que ela sorrisse, quem sabe o sol irradiasse seu calor aconchegante ou, se fosse à noite, uma estrela mais brilhante do que as outras nos alegrasse com sua presença. Tudo o que lhes posso dizer é que eu soube quando esse momento havia chegado. Não foi a mais romântica das horas e nem sei se o que aconteceu conspirou imediatamente para a minha felicidade ou simplesmente inaugurou uma era de incertezas, sofrimentos e angústias. No entanto, posso assegurar-lhes que foi um momento extático, embora curto.

Quando se gosta silenciosamente de uma pessoa, fazem-se todos os esforços para que gravitemos em torno dela, assim como as mariposas são atraídas para a luz que as cega e confunde. Esperava-a todos os dias no ponto do ônibus. Não me importava com o fato de que, às vezes, vários ônibus vinham e iam até que ela chegasse. Ao vê-la, procurava fazer uma fisionomia de casualidade, como se fosse a maior das coincidências que sempre voltássemos da escola no mesmo ônibus.

O ônibus quebrou no caminho, perto da casa dela, e, enquanto caminhávamos juntos os poucos blocos que nos separavam da casa que ainda não havia sido capaz de identificar exatamente, tomei-lhe a mão e caminhamos de mãos dadas. Ali, sozinhos, ela consentiu...Eu não precisava de palavras para lhe revelar os meus sentimentos. Descobri, depois, contudo, que o evento havia tido muito mais significado para mim do que para ela, “mas quem poderia conter as palavras?” (Jó 4:2).


Esperança confusa

“Aguardava eu o bem, e eis que me veio o mal; esperava a luz, veio-me a escuridão” Jó 30:26 (ARA)

Andar de mãos dadas com a menina dos meus sonhos foi, para mim, um dos eventos mais significativos da adolescência. Digo “para mim”, pois descobri, logo depois, que esse mesmo evento não havia tido nenhuma repercussão extraordinária para ela. Nós nos víamos, conversávamos, passávamos um bom tempo juntos. Era óbvio que havia, da parte dela, algum interesse por mim. No entanto, quando estávamos com algum dos seus amigos ou com algum dos meus amigos, ela se transfigurava, tornando-se outra pessoa: fria, distante, alheia. Era como se eu, por alguns momentos, deixasse de existir.

Aqueles foram os piores dias, aqueles foram os melhores dias. Quando sozinhos, desfrutava de sua atenção absoluta. Íamos a lugares, conversávamos sobre todos os assuntos, ríamos de nós mesmos e dos outros. Mas, quando na presença de um conhecido, a lua entrava em eclipse até que a sombra partisse. Completamente confuso, eu alternava momentos de esperança e de perplexidade. As únicas razões por que continuava me subtendo a essa interminável alternância de esperança e perplexidade eram, em primeiro lugar, que havia uma frágil certeza de que ela nutria algum tipo de sentimento por mim e, em segundo lugar, porque não havia como não fazê-lo. Agarrava-me como podia ao mastro, mas, ainda assim, fascinava-me o canto da sereia. Sentia-me como um camundongo indefeso com quem se divertia um bichano sem se dar contas de sua alegre perversidade. Naquele tempo, quando eu tinha cabelos longos, perdi as forças sem que ela tivesse que cortá-los. Quem nunca sofreu dos males do amor que atire a primeira pedra!

No entanto, a “minha esperança era a sinceridade dos meus caminhos” Jó 4:6. A verdade é que nunca joguei jogos, nunca lhe fui insincero e nada fiz para reverter a situação que não partisse da sinceridade de um coração espontâneo. A recompensa disso foi o primeiro beijo, na chuva, aos quatorze anos, no mesmo dia em que, por falta de recursos financeiros, tivera arrancado da boca o único dente que hoje me falta. De novo, a redenção não veio em um momento romântico. Ainda assim, aqueles foram os melhores dias.


Traído pelo coração

Texto: “Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo; esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei” Sal 69:20 (ARC).

Quando me disseram ter visto a minha namorada saindo do cinema com um outro rapaz, havia diversas razões para que não cresse nisso. Tania pertencia a uma religião estranha para a qual ir ao cinema era tabu. Não entendia muito acerca dos adventistas, mas sabia que eles não recomendavam que os jovens fossem ao cinema. Em segundo lugar, a despeito dos momentos em que ela ficava espiritualmente distante de mim (que só ocorriam quando estávamos na presença de outras pessoas), ela geralmente me olhava de um jeito que deixava claro que, algum dia, eu saberia por que as coisas precisavam ser assim. Ou seja, eu confiava nela. Além disso, boatos sempre aparecem quando os outros percebem que exalamos uma atmosfera de contentamento.

Fui imediatamente à casa dela e confrontei-a. Tania morava em uma casa ampla com uma varanda agradável e localizada ao fim de uma passarela construída entre dois espaços em que se cultivavam árvores, hortaliças e flores. Antes de passar pelo portão entreaberto em um muro alto, era necessário certificar-me de que o cachorro estava acorrentado, pois o monstro intimidava mesmo as pessoas mais destemidas. Ao percorrer aquele caminho, nunca ficava à vontade, temeroso de que uma sombra negra se materializasse e tivesse que fugir à toda, como já acontecera uma vez.

Confrontei-a e ela não me disse palavra. Ameacei ir embora, caso ela continuasse calada. Ela me respondeu, sem demonstrar emoção: - Feche o portão, ao sair. Fui embora, pois os brios assim o exigiam. Saí apressado e confuso: tanto tempo com ela e ainda não a conhecia. Fiquei oito meses sem vê-la. Evitava todos os lugares onde pudesse encontrá-la. Diziam-me que estava namorando. Diziam-me que estava feliz. Um dia apareceu, sem anunciar, à porta da minha casa. Não falou de arrependimentos ou decepções. Falou-me apenas que sentia minha falta, que nossas canções faziam-na lembrar-se de mim, que me queria de volta. Pela primeira vez, uma nuvem negra me encheu o coração, dizendo-me: - Por que não? Por que não lhe dar uma dose de seu próprio veneno? “O dia da vingança estava no meu coração” (Is 63:4), e esta é uma das poucas coisas de que me envergonho no meu relacionamento com a mulher com quem havia de me casar um dia...


Vingança insípida

“Visto como os filisteus usaram de vingança e executaram vingança de coração com malícia, para destruírem com perpétua inimizade... eis que eu estendo a mão contra os filisteus” Ez 25:15-16 (ARC).

Há dias que deveriam ser simplesmente riscados da história, mesmo de uma história de amor. Eu não havia, ainda, me recuperado do fato de que Tania havia ido ao cinema com outro rapaz. E o que estava pela frente era ainda pior. Magoado, eu buscava uma oportunidade de ficarmos quites, e eu encontrei essa oportunidade. O pior é que já não éramos mais os adolescentes ingênuos que havíamos sido. Depois de recomeçarmos o nosso namoro, ela estava mais madura e afetuosa, e já não mudava de temperamento na presença de outras pessoas. Andava entusiasmada com a formatura do segundo grau e fazia todos os planos para que comparecêssemos, em roupa de gala, ao evento. Apesar de eu ter ainda pela frente mais um ano de estudos antes de poder participar da minha própria formatura, ela me havia escolhido para entrar com ela. Acho que eu seria o acompanhante mais jovem entre todos os que participariam, pelo menos assim pareceu durante os ensaios.

Tania estava radiante e, antes de o programa começar, desfilava, sorridente, entre as amigas mais íntimas. Por um motivo fútil, criei uma situação de desavença e acabei me afastando dela para flertar com uma de suas colegas de classe. A moça correspondeu e passei a dar-lhe toda a atenção, como se fosse, de fato, a única presente no salão. A surpresa, com um misto de decepção, atingiu Tania em cheio. Não mais sorria, andava, pálida, com passos trôpegos, e me olhava com olhos chamejantes, como se quisesse me apagar da memória. O ato de vingança surtiu efeito pior em mim. Agradou-me magoar aquela que havia me machucado tanto. Fiquei rememorando, quase que saboreando, os louros daquela vitória. A partir daquele momento, eu não mais seria a mesma pessoa. Tornara-me um ser confuso, inseguro quanto às aspirações e dividido entre o perdão e a vingança. Eu ainda não conhecia, de verdade, o Senhor que é “bom e pronto a perdoar, e abundante em benignidade para com todos” Sal 86:5 (ARC).


Salvos pelos avós

“Lembra-te do dia de sábado, para o santificar” Êx 20:8.

A formatura de Tania ocorrera no final de 1979 e nosso relacionamento não se restabelecera completamente depois disso. No entanto, algo se passou no início de 1980 que nos deu um novo alento. Ela, por várias vezes, havia me convidado para que assistisse a uma programação em sua igreja. Mesmo com toda a influência que ela exercia sobre mim, eu tinha tanto preconceito com respeito às igrejas evangélicas que nunca aceitara o convite. A mãe dela já me obrigara a ler o livro O lar adventista como condição para que apoiasse nosso namoro, mas ir a uma igreja evangélica era um outro nível de envolvimento para o qual eu não estava preparado. Apesar disso, quando os avós insistiram para que fosse, com eles, à igreja no primeiro sábado de janeiro, não tive como me esquivar.

O ambiente da Igreja Adventista de Concórdia, em Belo Horizonte, acabou sendo mais agradável do que eu havia previsto. A música tinha um ritmo peculiar, mas agradável, e, além disso, impressionei-me com a eloquência de um homem dando explicações sobre “A redenção no livro de Romanos”, título que pude perceber em um impresso com formato de lição. O culto em si não me agradou muito. Um homem sem muita cultura insistia na importância da mordomia cristã, uma expressão que, naquela época, me soava como uma verdadeira contradição de termos.

Um incidente significativo ocorreu, contudo, quando o avô de Tania me indagou se eu conhecia os dez mandamentos. Comecei a recitá-los para ele até que me interrompeu, dizendo que havia me equivocado em relação ao quarto mandamento. Segundo ele, os cristãos deveriam guardar o sábado e não o domingo. Quando aquele homem semi-analfabeto abriu a Bíblia e começou a mostrar-me que a guarda do sábado era uma importante indicação da qualidade de nosso relacionamento com Deus, interessei-me pelo assunto e passei a frequentar a igreja assiduamente. Isso foi fundamental naquele momento, pois senti-me forte o bastante para recuperar um pouco da auto-estima perdida durante o ato estranho que havia cometido durante a formatura de Tania e, ao mesmo tempo, deu a ela a esperança de que as coisas pudessem melhorar entre nós.


Jeans remendados e cabelos despenteados

“Falarás também a todos os homens hábeis a quem enchi do espírito de sabedoria, que façam vestes para Arão para consagrá-lo, para que me ministre o ofício sacerdotal” Êx 28:3 (ARA).

Fui batizado e admitido à igreja adventista na primavera de 1980, aos dezessete anos. A religiosidade sempre havia sido uma parte importante de minha vida. Os parentes diziam que eu ia ser padre, pois a minha própria presença fazia com que os outros jovens evitassem linguagem descuidada ou brincadeiras inadequadas. Capitão do time de futebol, exercia uma influência positiva sobre os jovens do bairro. Mesmo como membro da igreja adventista, continuava a usar jeans remendados, mantinha a camisa semi-aberta e o cabelo comprido e sem pentear. Assim, cheguei a professor da Escola Sabatina da igreja do Planalto, em Belo Horizonte, sob o olhar de aprovação de Tania, cada vez mais convicta de que nosso relacionamento tinha um futuro.

Ao participar de um concurso de oratória eclesiástica, classifiquei-me para a final, na igreja de Timbiras. Os competidores, elegantemente vestidos, fizeram seu melhor para impressionar os jurados, então dirigidos pelo Pr. Alejandro Bullón. Não recebi prêmio algum, mas, ao sair da igreja, o Pr. Bullón me interceptou e me disse ter se impressionado com meu discurso. Lamentou que eu não estivesse vestido adequadamente e me disse que deveria considerar uma carreira no ministério adventista.

Recebi, certa vez, a visita de um líder da igreja local. Ele me informou que eu não poderia continuar a ser professor da Escola Sabatina uma vez que minhas roupas não se adequavam às expectativas da igreja. Enquanto tentava recuperar-me das más notícias e já havendo tomado a decisão de não ceder à pressão, o líder buscou no carro um embrulho. Tratava-se de elegante terno, incluindo camisa e gravata, tudo novo e cheirando a loja. Disse-me que não me forçaria a conformar-me aos padrões da igreja, mas, caso quisesse, poderia usar o presente e continuar com minhas funções no sábado. Não preciso dizer que, no fim de semana seguinte, fui à igreja de cabelo cortado, penteado e vestido a rigor.


Salvando o natal

“Porque morando eu em Gesur, na Síria, votou o teu servo um voto, dizendo: Se o Senhor outra vez me fizer tornar a Jerusalém, servirei ao Senhor” 2 Sm 15:8 (ARC).

Antes do final de 1980, minha irmã também havia se unido à igreja adventista do Planalto e, por isso, participar dos cultos havia se tornado uma atividade muito mais festiva para nós. De fato, minha irmã estava namorando um jovem carismático e talentoso, de muita influência na igreja. Era o único que conseguia ter acesso a minha mãe e à irmã caçula, que se mantinham fechadas a qualquer aproximação do evangelho. Vânia, a irmã de Tania, namorava o tesoureiro da igreja, um rapaz dinâmico e espiritual, que passava por um momento difícil, pois pesava sobre ele a suspeita (e acusação) de estar se apropriando indevidamente dos fundos da igreja.

Quase todos nós teríamos alguma participação especial no programa de natal e, por isso, o namorado de minha irmã convidara minha mãe e irmã caçula, hoje casada com um pastor adventista, para que viessem assistir à programação. Sua gentileza e contínuos obséquios garantiam que elas nunca lhe negassem um pedido. Minha incapacidade musical me privara da oportunidade de participar do programa, mas Tania, Vânia, Mônica e os namorados cantariam. Tudo pronto para o início do musical, o evento foi interrompido pela chegada de policiais que prenderam e levaram o namorado de Mônica.

Ninguém compreendia o que estava acontecendo e minha mãe exigia, com veemência, que alguém fizesse alguma coisa pelo namorado de minha irmã. Quando se esclareceu que ele era o real culpado pelo consistente desaparecimento de fundos na igreja, minha mãe calmamente anunciou sua decepção com o gênero humano. Aquele havia sido o único adventista no qual ela confiara. O natal acabara para ela e para a igreja. Em meio ao clima de funeral, senti que era o momento de fazer algo para salvar a situação. Anunciei, resolutamente, que, se o Senhor me abençoasse, partiria para o seminário a fim de me tornar pastor adventista. Sem compreender, ainda, as implicações disso, Tania e minha mãe foram contagiadas pelo espírito de júbilo que tomou conta da igreja. O natal estava salvo e as palavras do Pr. Bullón, concretizadas no meu gesto espontâneo, anunciavam que, naquele momento, eu assumira um compromisso sério de servir a Deus.


Rumo ao desconhecido de Deus

“Espera no Senhor, segue o seu caminho, e ele te exaltará para possuíres a terra” Sal 37:4 (ARA)

Da resolução de ir para o seminário até a concretização do ato, pouco tempo se passou. Trabalhava em uma autarquia federal onde desfrutava de prestígio incompatível com minha função subalterna. Começara, ali, como estafeta e havia conquistado a confiança dos demais funcionários pela rapidez e eficiência no desempenho de minhas tarefas. O chefe da autarquia era também o diretor da Coseg, a polícia de elite de Belo Horizonte. Informado de minha decisão, envidou esforços para que permanecesse no trabalho. Chegou a oferecer-me um curso de perito criminal com as despesas pagas e salário durante os estudos. Quando não cedi a sua insistência, concordou em demitir-me para que pudesse usar o dinheiro da indenização a fim de me transferir para Pernambuco.

Antes de partir, informei a Tania que não mais seria possível que ficássemos juntos, uma vez que minha decisão implicava em romper elos e começar uma vida nova. Sendo arrimo de família, minha partida significava que minha mãe e irmãs estariam, mais do que nunca, entregues à misericórdia do Senhor. Ninguém, em minha família ou na de Tania, apoiou ou mesmo concordou com minha decisão, uma vez compreendidas suas implicações. Eu acabara de completar dezoito anos e minha partida me assustava bastante. Exceto por uma viagem ao litoral do Espírito Santo, nunca havia saído de Minas. Dentro do ônibus, pronto para iniciar o trajeto, vendo minha mãe chorar do lado de fora, fiz uma rápida oração a Deus, pedindo-Lhe um sinal de que cumpria Sua vontade. Tomei a Bíblia e a abri, providencialmente, no texto: “eis que eu envio um anjo adiante de ti, para que te guarde pelo caminho e te leve ao lugar que tenho preparado” Êx 23:20 (ARA). Convicto de que aquela era uma resposta de Deus, acenei minhas despedidas enquanto o ônibus se afastava. Ao longo do caminho, escolhi uma estrela brilhante para simbolizar o meu anjo e fixei nela o meu olhar durante o trajeto.

Tania não veio à rodoviária. Ainda que novamente abatida pela decepção, não desistira de mim. Eu não sabia disso, mas nem mesmo centenas de quilômetros seriam suficientes para separar duas pessoas cujos corações estavam entrelaçados à altura da alma e do espírito, das juntas e da medula, dos pensamentos e das intenções.


Sapos fervidos e uma garrafa térmica

“As minhas entranhas fervem e não estão quietas; os dias da aflição me surpreendem” Jó 30:27 (ACF).

Durante meu primeiro ano no seminário, fiquei compenetrado nos estudos. Numa época em que não havia emails e as ligações telefônicas eram economicamente proibitivas, recebia cartas diárias de Tania. Inconformada com minha decisão de romper o namoro, ela se esforçava por me convencer de que eu tomara uma decisão equivocada. No ano seguinte, ela veio estudar no seminário. A partir daí, teve início uma verdadeira rapsódia em que ela buscava reatar o namoro e eu, confuso, ora lhe dava esperanças, ora tirava-lhe todas as perspectivas.

Os meus amigos do seminário, a quem ela conquistou logo com sua simpatia e perseverança, se incomodavam com a instabilidade de nosso relacionamento. Em uma certa noite de sábado fui duro com Tania como poucas vezes havia sido. Ao narrar o relato para o Braguinha, o mais íntimo de meus amigos, demonstrei certa indignação quanto ao modo inseguro como reagia em relação à antiga namorada. Ao contar-lhe as palavras ríspidas que lhe dissera, o Braguinha decidiu vingar-se.

Ajoelhado ao pé da cama, fazia a oração costumeira antes de dormir, quando ouvi um clique metálico e senti um peso frio nas pernas. O Braguinha havia me algemado à cama com o pretexto de dar-me tempo para refletir acerca de minhas inseguranças. Assim fiquei por vinte e quatro horas, sem direito a confortos ou condescendências. As refeições me traziam os outros amigos, divertindo-se com minha vicissitude. Às necessidades, porém, não havia como satisfazer. Em um momento de apuros, lembrei-me da garrafa térmica do Braguinha, que me serviu de urinol. O Braguinha nunca perdeu o amigo. No entanto, deu adeus à garrafa térmica. Naquele tempo ele nada sabia sobre sapos fervidos. Mas, por causa do desconforto, me fez sentir como um. Era como se o Braguinha tivesse atendido à ordem dada por Deus a Ezequiel em relação a Jerusalém, antes da invasão babilônia: “amontoa muita lenha, acende o fogo, ferve bem a carne, e tempera o caldo, e ardam os ossos” Ez 24:10 (ACF). Essa é uma descrição precisa da reflexão que fiz, naquele dia, sobre minha confusão mental, resultante da constatação de que ainda nutria sentimentos em relação a Tania, ao mesmo tempo em que temia que um de nós dois pudesse trazer ainda mais sofrimento e decepção ao outro, o que não me parecia condizente com a minha condição de futuro pastor.


O pedido

“Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor” Cant 2:5 (ARA).

Tania acabou voltando para Belo Horizonte no final de 1983. Em nossa despedida, perguntou-me, segundo ela, pela última vez, se deveria nutrir, ainda, algum tipo de esperança em relação a mim. Minha resposta foi negativa.

Tendo saído para colportar, isto é, para vender livros evangélicos de porta em porta, a fim de conseguir os fundos necessários à minha manutenção na escola no ano seguinte, o último do seminário, retornei a Belo Horizonte, no início de 1984, para o casamento de Vânia, a irmã de Tania. Não nos falamos durante a cerimônia, embora tivesse me incomodado o fato de vê-la com um rapaz da igreja, um jovem e promissor estudante de medicina. Ao chegar em casa, recebi a visita de um colega de colportagem que me disse ter acabado de ver Tania abraçada com o rapaz no ônibus. Segundo ele, se não agisse rapidamente, perdê-la-ia para sempre.

Nesse momento, as palavras ficaram confusas, as mãos começaram a suar e o cérebro simplesmente emperrou, efeitos que, outrora, experimentara tantas vezes na presença de Tania. Fui imediatamente à casa dela, mas descobri que se encontrava na festa de casamento do pai do rapaz. Dois casamentos ocorriam no mesmo dia, e eu corria o risco de perder o meu. Fui até lá e encontrei-os flertando à porta. O rapaz gentilmente se ofereceu para buscar-me algum refresco. Enquanto, ele entrava pela casa, fiz uma única pergunta a Tânia: quer se casar comigo? Ela olhou-me nos olhos e respondeu com uma outra pergunta: quando? Marcamos a data, demo-nos as mãos e saímos imediatamente.

O que me faltara fôra uma decisão. Tania se tornara cada vez mais carinhosa e, desde que nos casamos alguns meses depois, temos desfrutado de um companheirismo sincero em que nos dedicamos intensamente um ao outro. É possível dizer, como nos contos de fadas, que vivemos felizes para sempre. Por favor, não tentem me analisar, não me falem dos caprichos da personalidade masculina: “eu dormia, mas o meu coração velava” Cant 5:2.


Missionários

“Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um país remoto” Prov 25:25 (ARA).

Uma das qualidades que mais aprecio em Tania é que posso contar com ela em quaisquer circunstâncias da vida. Ela é uma pessoa que não procura evadir-se aos golpes dos infortúnios, mas enfrenta-os de frente, com coragem e fé, sem esmorecer e sem reclamar. Quando indaguei-lhe sobre sua opinião acerca da obra missionária em terras distantes, ela me respondeu que se dispunha a acompanhar-me aonde quer que fosse.

Contei aos amigos que me candidatara a uma vaga de obreiro bíblico em uma série metropolitana de evangelismo na cidade de Anchorage, no Alasca, mas riram-se de mim como Sara havia rido do anjo. Recebi, em vez da chance em Anchorage, um chamado da Associação do Alasca para ser o pastor da Igreja Adventista de Delta Junction e aceitei-o prontamente. Deixara, no entanto, de lhes mencionar que eu não preenchia dois dos requisitos que exigiam para o cargo: não era solteiro e não sabia dirigir.

Nos poucos dias que tive para fazer os acertos de viagem, consegui obter a carta de habilitação. Em Pernambuco, naquela época, exigia-se que a baliza fosse feita em menos de dois minutos. Como nunca havia dirigido um automóvel, não conseguia, por mais que tentasse, fazer a baliza dentro do tempo previsto. Decidi ir ao exame, de qualquer modo, uma vez que o mesmo já estava agendado. Enquanto esperava a vez, assistia, na televisão, à partida entre Brasil e Alemanha pelos jogos olímpicos de 1988. No exato momento em que o goleiro brasileiro defendeu um pênalti, no final da partida, chamaram o meu nome. A adrenalina me ajudou, esta única vez, a fazer a baliza nos dois minutos.

A parte difícil seria dizer à Associação do Alasca, que visava à economia, que eu era casado e que eles deveriam também enviar-me uma passagem aérea para Tania. Pensei em desistir de tudo, mas um amigo me veio em socorro, afirmando que Deus nunca abençoa pela metade e que, se eu perseverasse, isso não seria um impecilho para servi-Lo. Falei com o Alasca e a outra passagem nos foi enviada. Partimos, então, para uma de nossas maiores aventuras. Deus recompensou-nos os esforços e tivemos um ministério profícuo naquela região, com tantas histórias que estas não caberiam aqui.


A herança do Senhor

“Eis que os filhos são herança do Senhor” Sal 127:3 (ARC).

O frio do Alasca nos fez bem e Tania ficou grávida. No entanto, na sexta-feira da paixão, perdeu o bebê por causa de uma toxoplasmose que adquirira enquanto visitávamos as pessoas, convidando-as para que viessem a nossa igreja. Era comum, naquela região, manter os animais de estimação dentro de casa, o que facilitava a proliferação da doença. Os médicos já haviam me dito, no Brasil, que eu só teria 50% de chances de ser pai. Por isso, não tomei as devidas precauções nas longas noites árticas e Tania ficou grávida pela segunda vez. Havia riscos para o novo bebê, uma vez que Tania ainda tinha resquícios da enfermidade.

Oramos para que Deus nos abençoasse com uma criança sadia e decidimos não fazer nem mesmo uma ultra-sonografia, deixando tudo aos cuidados de Deus. Tania me pediu, contudo, que voltássemos para o Brasil a fim de que tivesse o bebê junto de sua mãe. Tendo conseguido um convite para trabalhar em Salvador, tratamos de viajar para o Brasil quando ela estava prestes a dar à luz. Nossa viagem foi interrompida porque um vulcão entrou em erupção e os vôos foram cancelados por uma semana. Depois disso, ainda tivemos que convencer os médicos e as companhias aéreas a que nos permitissem voar, dada a condição interessante em que Tania se encontrava. Nosso filho Kérix Édrey acabou nascendo, saudável, em São Paulo.

Tanto Kérix quanto Krícis, a menina que nasceu dois anos depois em Belo Horizonte, são a herança que Deus nos legou. E são exatamente aquilo que pedimos ao Senhor: crianças normais. Por isso, não exigimos deles brilhantismo em nenhuma área, não os obrigamos a desenvolver nenhum talento artificial, não lhes impomos nenhum fardo além de sua habilidade. Nós os aceitamos exatamente como são e, assim, os amamos. Essa história que lhes contei é, em certa medida, o relato de minha vida com Deus e com Tania. Essa vida procuro pautar pela ordem bíblica em um de meus versos favoritos: “a ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei” Rm 13:8 (ARC).

(escrito originalmente em 4/10/2009)

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