Tuesday, September 25, 2012

O Mito do Redentor na Literatura Gnóstica Pré-Cristã

por Milton L. Torres, PhD

Observação: na discussão abaixo, a palavra “mito” não tem o sentido comum de “ficção” ou “lenda”. Trata-se, em vez disso, de um termo técnico, em teologia, para descrever uma unidade mais ou menos discreta que, tomada separadamente, expressa a ocorrência de um evento revelatório e autoritativo.

INTRODUÇÃO

Uma característica predominante da teologia que vinha sendo desenvolvida até a Segunda Guerra Mundial era o fato de se afirmar categoricamente que os “conceitos” presentes no Novo Testamento (doravante NT) não tinham qualquer conexão com o helenismo. As palavras podiam ser gregas, mas seu conteúdo originava-se no hebraico do Antigo Testamento. Desde então, duas grandes descobertas arqueológicas têm contribuído para mudar essa perspectiva: os achados de Qumram e Nag Hammadi.

A descoberta dos Rolos do Mar Morto nas cavernas de Qumram possibilitou a compreensão de que o judaísmo e o gnosticismo eram mais diferenciados do que se supunha a princípio. Por outro lado, os treze códices escritos em copta encontrados em Nag Hammadi, em 1946, nos deram uma melhor compreensão do gnosticismo. Até então todo o conhecimento de que dispúnhamos acerca do gnosticismo era derivado das polêmicas asserções dos padres ortodoxos. No entanto, quando esses códices foram decifrados, pela primeira vez tivemos acesso a uma literatura gnóstica produzida pelos próprios gnósticos.

O sítio de Nag Hammadi localiza-se, no Alto Egito, a cerca de 400 km de Cairo. Os códices datam do séc. IV AD e constam de cerca de 1200 páginas. As obras são evangelhos apócrifos, atos de apóstolos e apocalipses. Mas o que mais auxiliou numa nova interpretação do gnosticismo foram as cartas, os diálogos e os tratados religiosos, os assim chamados “livros secretos do gnosticismo”.

QUEM ERAM OS GNÓSTICOS

Se até os achados de Nag Hammadi o gnosticismo era visto como um movimento de caráter filosófico, agora não restam dúvidas de que seu caráter era essencialmente religioso.

Segundo Lührmann (1989, p. 51),

os gnósticos de forma alguma devem ser concebidos como um grupo periférico do Cristianismo; em vez disso, eram uma variante cristã de uma religião mundial abrangente - o “Gnosticismo” - que existiu antes e com o Cristianismo, partilhando tal condição com toda a comunidade cristã na esfera helenística e grande parte do judaísmo.

Os gnósticos integravam, portanto, um movimento religioso extremamente sincrético que disputava com o Cristianismo incipiente a condição de religião mundial. Dois elementos contribuíram grandemente para sua difusão: a estima de filosofia que lhe era atribuída e o sincretismo que facilitava sua penetração mesmo entre os adeptos de outras religiões.

O dualismo cósmico era de fundamental importância para o gnosticismo. O mundo físico e o espiritual se opõem um ao outro, excluindo-se mutuamente. O mundo material é negativo e foi criado por um deus inferior, o demiurgo, sem a autorização do deus superior. O mundo do verdadeiro deus é o mundo do espírito e da luz.

Na cosmologia gnóstica, o mundo material é compreendido como uma prisão. A masmorra mais profunda de tal prisão é a terra, o mundo dos seres humanos. Sobre a terra há uma série de esferas cósmicas que impedem que o ser humano escape e obtenha a salvação. São sete as esferas cósmicas, correspondendo a sete planetas, cada um deles vigiado e controlado por um “arconte”, uma espécie de anjo ajudador do demiurgo.

É por ser o produto de uma criação inferior que o homem necessita ser redimido dessa condição de escravidão à matéria.

O MITO DO REDENTOR

Para os gnósticos, a redenção significa um retorno da matéria à esfera de luz, e isso só pode ocorrer através da descida de um “redentor”, que coleta as centelhas de luz que se encontram dispersas no caos e as eleva ao mundo superior. Essas centelhas nada mais são do que as almas humanas.

A redenção chega por intermédio do conhecimento, a gnose, através de uma revelação. Essa revelação acerca de deus, do mundo e do destino da humanidade ocorre através de ritos especiais. O redentor assume uma vestimenta corporal exterior a fim de penetrar nos domínios do demiurgo e libertar o homem. Sua função é levar o homem ao conhecimento verdadeiro. A redenção se concretiza quando, por ocasião da morte, os espíritos humanos são libertos e, de posse da gnose salvadora, retornam à esfera iluminada.

A compreensão do modelo gnóstico tem repercussão imediata para o Cristianismo. Se tal modelo é pré-cristão, então tanto a cristologia de São João quanto de a São Paulo devem ser necessariamente interpretadas como contendo um “background” gnóstico. Por isso, segundo Lührmann (1989, p. 52), Reitzenstein afirmou categoricamente que Paulo era gnóstico e Rudolf Bultmann delarou que o Cristianismo primitivo era um fenômeno sincrético.

A CONTROVÉRSIA SOBRE A ANTERIORIDADE DO MITO

O termo “redenção” (apolytrôsis) é pouco atestado na literatura secular. Empregava-se em relação aos prisioneiros de guerra, escravos e criminosos condenados à morte. Büchsel o define como “libertação realizada através do pagamento de um resgate” (KITTEL, 1967, v. 4, p. 352). “Redentor” (lytrôtês) é quem paga um resgate e o uso dessa palavra surgiu duzentos anos antes da era cristã.

Instalou-se, assim, nos meios teológicos, uma controvérsia acerca da anterioridade do “mito do redentor”. Foi o Cristianismo que tomou o mito de empréstimo ao gnosticismo ou, ao contrário, foram os gnósticos que incorporaram o conceito de redenção a partir de um background cristão?

Para tornar a situação ainda mais difícil, o conceito está ausente em São Mateus, São Marcos, São João, nas Epístolas Católicas e no Apocalipse. Seu uso em São Lucas é muito ocasional e mesmo em São Paulo o conceito é muito menos importante do que o de dikaiosynê (“justificação”) ou katallagê (“reconciliação”). Além disso, mesmo na Septuaginta, a tradução do Antigo Testamento para o grego, feita pelos próprios judeus, apolytrôsissó é empregada uma vez (Dan. 4:34), num verso que difere consideravelmente do Texto Massorético.

No entanto, apesar disso, os estudos feitos até aqui indicam que possivelmente o conceito do redentor tenha sido incorporado pelos gnósticos no séc. II ou III da era cristã. G. Quispel (RODRÍGUEZ, 1995, p. 31), por exemplo, afirma que

         Parece haver boa base para se supor que o conceito da redenção e a figura do redentor foram tomados do Cristianismo pelo gnosticismo. Um redentor pré-cristão talvez nunca tenha existido.

A religião greco-romana pré-cristã não faz uso de um redentor ou salvador do tipo gnóstico. Por isso, parece mais provável que os gnósticos tenham seguido o modelo cristão de Jesus.

Contudo, mesmo que o modelo do redentor seja pré-cristão, minha tese é de que isso seria teologicamente irrelevante na compreensão da fé cristã. Para chegar a tal conclusão, eu me baseei em dois aspectos: no conceito teológico de mito e na diferença abissal entre o mito do redentor no gnosticismo e no Cristianismo.

O CONCEITO TEOLÓGICO DE MITO E A SINGULARIDADE DO REDENTOR CRISTÃO

O que é teologicamente importante acerca das Escrituras é um conjunto vasto de unidades mais ou menos discretas que, tomadas separadamente, expressam a ocorrência de um evento revelatório. Esses elementos autoritativos podem ser chamados de “imagens”, “símbolos” ou “mitos”. O aspecto mais geral de tais elementos é o fato de assinalarem a ocorrência do evento revelatório.

A revelação é um evento no qual o homem se renova, no qual ele se torna uma nova criação. Os homens têm expressado sua experiência nesse evento de forma concreta e icônica. As Escrituras são uma coleção de tais expressões. Essas não precisam necessariamente declarar as crenças que produziram a mudança nem descrever a dinâmica da mesma, emboram possam, é claro, fazer as duas coisas.

A análise dessas expressões deve, portanto, se aproximar mais da análise de simbolismos literários do que da análise conceitual. Já que o evento revelatório-salvífico ocorre na história, o expressivo testemunho das Escrituras toma a forma narrativa. Mas o que é religiosamente significante acerca do evento não é nenhum conjunto de fatores acessíveis a um historiador apenas. Assim, as Escrituras não são teologicamente importantes porque contam uma estória, mas porque, ao expressar a ocorrência do evento revelatório-salvífico, elas, de alguma forma, nos ligam àquele evento.

A divina restauração do homem caído é mais bem compreendida como um exercício da criatividade divina e Jesus Cristo é paradigmático dessa criatividade. Um estudo da redenção é um estudo da criação, e ambos são cristocêntricos. A redenção se tornou necessária porque o caos invadiu a criação. E, se o caos invadiu a criação, a criatividade personificada pelo Deus-homem só pode sobrepujar o caos entrando nele. Esse conceito de criatividade é essencialmente cristão e se relaciona diretamente com a forma através da qual a vitória divina nos é apresentada nas Escrituras.

Deve-se especificamente atentar para a mistura estranha de glória e humilhação que caracteriza a criatividade divina, no “mito” cristão, quando esta supera o caos. A redenção é uma continuação da criação. A criatividade transcendente prevalece sobre o caos à medida em que desce à própria presença do caos de modo a capacitar o homem a ascender a uma vida nova e integral.

Se lytrotês é quem paga um resgate, Jesus foi o único Redentor que pagou o resgate com Sua própria vida.

A forma que as Escrituras empregam normalmente para expressar a revelação é a “imagem simbólica”, o mito, isto é, eventos simbolicamente descritos, e não a declaração formal. Mesmo quando nos deparamos com declarações aparentemente formais, elas são mais importantes porque se encontram impregnadas de poder sugestivo por causa das imagens que evocam.

Thornton (1952, p. 15) compara a Bíblia a um álbum em que todas as fotografias expressam um processo criativo cósmico. Porque todas elas expressam aspectos diferentes do mesmo processo, essas imagens se entretecem numa teia complexa que dá ao álbum uma unidade interna. O tema que dá a Bíblia essa unidade é, precisamente, a “redenção”. Além disso, porque cada imagem tem seu valor simbólico enquanto parte dessa teia de relações que inclui outras imagens, o valor simbólico do todo está implícito em qualquer uma das imagens tomada separadamente.

Nos escritos de São Paulo, por exemplo, há a imagem da “reconciliação” e esta apresenta dois lados: um objetivo e outro subjetivo. O aspecto objetivo da reconciliação é aceitação factual do pecador por Deus (declaração cerigmática). O aspecto subjetivo é a cessação da hostilidade do pecador para com Deus (declaração teológica).

CONCLUSÃO

Para Paul Tillich (1963, v. 3, p. 201),

         o assunto da teologia são os símbolos dados pelas experiências revelatórias originais e pelas tradições nelas baseadas. O teólogo deve mostrar que os símbolos cristãos oferecem respostas para as indagações existenciais atualmente formuladas pelos homens.

Justamente por isso, a encarnação da criatividade divina em Jesus Cristo é central posto que Jesus é o único elo entre o “foreground” humano da história e o “background” cósmico nesse processo criativo.

O que ocorreu no Calvário, por exemplo, é, em princípio, o que tem estado acontecendo no foreground histórico desde a queda, isto é, um afastamento da luz em direção ao caos. Destarte, quando a criatividade divina na pessoa do Deus-homem prevalece sobre o caos, entrando nele, ela o supera seguindo uma lei eterna do cosmos, isto é, “é morrendo que se vive”.

Texto originalmente apresentado ao Grupo de Estudos Interdisciplinares Mythos, da Universidade Federal da Bahia, em 1996.

HELMBOLD, A. K. The Nag Hammadi gnostic texts and the Bible. Grand Rapids: Eerdmans, 1967.

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LÜHRMANN, Dieter. An itinerary for New Testament study. London: SCM, 1989.

RODRÍGUEZ, Angel M. Introduccion a la epistola a los Hebreus. Silver Spring: Andrews University, 1995.

TILLICH, Paul. Systematic theology. Chicago: University of Chicago, 1963.

THORNTON, L. S. The dominion of Christ. London: Dacre, 1952.

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