Wednesday, September 19, 2012

Os Lestrigões do Reino de Deus

por Milton L. Torres, PhD

O crescimento piramidal, no Brasil, das igrejas evangélicas que pregam o evangelho da prosperidade não nos causa estranheza. O povo brasileiro é sabidamente religioso, sincrético e afeito à busca do sobrenatural. A piedade e a devoção deste povo confiado e disposto a confiar não devem ser lamentadas. Não se trata de uma credulidade ingênua que nos torna vítimas da manipulação persuasiva de quem quer tirar vantagem dessas boas qualidades que marcam os brasileiros. De fato, eu prefiro mil vezes pertencer a este povo de boa fé a conviver com o cinismo e a desconfiança peculiares a algumas das nações supostamente mais desenvolvidas do que a nossa. Entretanto, é necessário estabelecer limites intelectuais à retórica pretensiosa de quem vende salvação e paz espiritual travestidas em uma fórmula infalível de prosperidade material. É preciso expulsar os cambistas do templo. Para isso, empunho agora o chicote da alegoria.


De acordo com Homero, Ulisses e seus companheiros de viagem aportaram um dia em Telépio, a capital da Lestrigônia. Os lestrigões tinham uma sociedade ativa, diligente, praticamente incansável. Homero conta que, sempre com as portas abertas, de dia e de noite, os pastores entravam e saíam. De fato, o pastor que entrava saudava o pastor que saía, e o pastor que não sucumbia ao sono dobrava, durante a noite, o seu salário. Os lestrigões eram assim mesmo, pastores ávidos, insistentes, sempre atentos à possibilidade de lucro, sempre dispostos a, em mais de uma maneira, devorar as ovelhas.

O rei dos lestrigões se chamava Antífates, o Contra-fama, aquele que gosta de fazer as coisas por debaixo do pano, discreta e clandestinamente, nos bastidores, delitescente! Homero é minucioso ao descrever como o bispo máximo dos lestrigões apreciava os templos de teto alto, as mansões esplêndidas. Dali, com um grito, nos diz Homero, podia soar o alarme dos lestrigões, fazendo com que, assim, os pastores lestrigões acorressem, destemidos, de todas as partes. Dessa forma, o rei dos lestrigões nunca era pego de surpresa, desprevenido.

Segundo Homero, na terra dos lestrigões não havia campos arados, nem hortas, nem pomares, nem jardins, pois os pastores lestrigões não precisavam semear para viver. Eles, de fato, se alimentavam de seus próprios rebanhos. Só o que havia na terra dos lestrigões, além dos pastores lestrigões e de suas ovelhas de velo branco, era fumaça. A fumaça subia da terra, a fumaça subia dos templos, a fumaça subia das bolsas dos pastores lestrigões. Porém, o que Homero não diz, mas nós sabemos, é que onde há fumaça há fogo.

Na história dos lestrigões, Ulisses e seus companheiros de viagem procuraram abrigo no palácio dos lestrigões. Foram recebidos com festa pela linda filha do bispo Antífates. Os interessados a encontraram no que Homero chama de “fonte do urso” e que ele bem poderia ter chamado de “fonte do amigo-urso”, onde ela sempre vinha para se abastecer, pois todos os lestrigões, mesmo as simpáticas obreiras, não cuidam de outra coisa senão ganhar dinheiro e se abastecer. Ela fez questão de levá-los aos templos de teto alto. O bispo estava em reunião com seus asseclas. Mesmo assim, decidiu recebê-los, pois, para os lestrigões, é sempre hora de devorar aqueles que os procuram. Os canibais fisgaram os homens de Ulisses como os pescadores fisgam os peixes. Foi aterrador, gritos de morte, estalos de tábua, maquinetas de cartão de crédito, engolindo e devorando. Eram milhares. De homens eles não tinham nada. Eram gigantescos na exploração, desalmados. Do alto de seus templos-penhascos, arremessavam pedras em quem resistia. Era muita pressão: os homens e seus bens foram dilapidados.

Na história de Ulisses, foi difícil cortar as amarras. Pereceram quase todos. Poucos tiveram a sorte de escapar e se distanciar da terra fatídica dos lestrigões. Se você conseguiu, fique feliz por estar vivo e triste por quem sucumbiu aos lestrigões. Se você nunca visitou os lestrigões, mas se sente curioso toda vez que vê um de seus palácios de teto alto, lembre-se que a curiosidade matou o gato. Segundo Homero, o porto da Lestrigônia tem uma entrada magnífica, mas a fenda da saída é pequeníssima. Evite, portanto, qualquer contato com os lestrigões do reino de Deus.

(escrito originalmente em 2/10/2009)

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