por Milton L. Torres
Já sonhou que estava voando? Os braços abertos, as
pernas rigidamente impulsionando o voo, como se o céu fosse uma piscina azul e
as nuvens boias clandestinas empurrando a imaginação até a próxima parada...
Até o pouso? Já se sentiu no palco iluminado, marcando o ritmo da canção, da
sua canção, cantada em uníssono por milhares de vozes na plateia, enquanto você
aguarda o fim do coro, esperando a sua vez de retomar a melodia, de elevar a
voz até o mais agudo tom, antes de receber os aplausos intermináveis daqueles
que, extáticos, observam? Já se imaginou invencível, inquebrável, imbatível,
indomável, infringível? Já acordou alguma vez, no meio da noite, com o peito encharcado
de sonhos e visões além do alcance da memória, além das fabulosas fronteiras da
fantasia? Já se viu como o centro de tudo, o vértice de convergência do
universo, a ponte invisível e infinita que liga todos os pontos e que atribui
sentido à vida, ao prazer, à eternidade? Já sorveu atordoado o néctar inebriante
de miragens e poções que vão lá, ao longe do futuro, fora do abraço das mãos,
mas perto da boca, dos olhos e do coração?
Quer saber o porquê disso tudo? Somos iguais a anjos!
Não estamos aqui para rastejar, nem para imitar o passo lerdo dos bípedes que
se amontoam à nossa volta. Deveríamos ruflar as asas e subir, subir, subir, até
o sol, até as estrelas, até a escuridão silenciosa e confortante do espaço
sideral. Daí, os nossos sonhos de grandeza, a nossa vontade de ser os protagonistas
da história universal, esta necessidade que temos de voar, cantar, vencer,
sonhar, viver. Somos iguais a anjos! E por que não o fazemos? Por que nos
limitamos a seguir, sem pressa, em nenhuma direção? Por que ficamos patinhando
e definhando e nos debatendo exaustos no entorpecido lago da insignificância?
Sim, somos iguais a anjos, mas anjos desengonçados, atrapalhados, desajeitados
e canhestros. Como eles, nós caímos do céu e agora, desconjuntados, nos
contentamos em viver a vida terrena dos répteis! Nós nos tornamos reptilianos.
Sonhamos como anjos, mas andamos, vivemos e agimos como répteis. À moda das
serpentes, o que franqueamos aos outros é peçonha e frieza...
Precisamos recuperar as nossas asas, reconquistar a nossa
condição igual a anjos! Eu sei. Você já está pronto para contestar, e protestar
e bradar suas objeções religiosas e metafísicas. Não cabe em nossa tradição
essa ideia de que seres humanos e angélicos se misturem. Somos só humanos,
feitos do pó da terra e condenados à poeira da estrada da vida. Quando erramos,
a culpa é dos demônios que nos tentam incessantemente. Quando acertamos,
atribuímos qualquer minúsculo e improvável acerto aos astros, ao destino. O
nosso princípio mais solícito é, em todo caso, nos eximir sempre e totalmente de
qualquer responsabilidade. Mas você não sente a ânsia? Não lhe lateja a vontade
de ruflar as asas? Qualquer metafísica que se preste tem que nos dar pelo menos
um átimo de esperança! Você crê? Sabe o que faria um anjo? Anjos são ventos e
labaredas de fogo, que saem ao encontro das pessoas! O pão dos anjos chega na
exata hora da mesquinha fome... Percebe o que nos falta para sermos anjos? Há
anjos desengonçados e toscos, e eu quero ser um deles. Quero chegar na hora exata
do sofrimento corriqueiro, da dor insuportável, do desespero, da desesperança e
da morte. Desjeitoso e pesado, quero sair ao encontro das pessoas... Quero de
volta as minhas asas... Quero ser igual aos anjos!
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