Friday, January 06, 2017

Anjos Desengonçados

por Milton L. Torres

Já sonhou que estava voando? Os braços abertos, as pernas rigidamente impulsionando o voo, como se o céu fosse uma piscina azul e as nuvens boias clandestinas empurrando a imaginação até a próxima parada... Até o pouso? Já se sentiu no palco iluminado, marcando o ritmo da canção, da sua canção, cantada em uníssono por milhares de vozes na plateia, enquanto você aguarda o fim do coro, esperando a sua vez de retomar a melodia, de elevar a voz até o mais agudo tom, antes de receber os aplausos intermináveis daqueles que, extáticos, observam? Já se imaginou invencível, inquebrável, imbatível, indomável, infringível? Já acordou alguma vez, no meio da noite, com o peito encharcado de sonhos e visões além do alcance da memória, além das fabulosas fronteiras da fantasia? Já se viu como o centro de tudo, o vértice de convergência do universo, a ponte invisível e infinita que liga todos os pontos e que atribui sentido à vida, ao prazer, à eternidade? Já sorveu atordoado o néctar inebriante de miragens e poções que vão lá, ao longe do futuro, fora do abraço das mãos, mas perto da boca, dos olhos e do coração?
Quer saber o porquê disso tudo? Somos iguais a anjos! Não estamos aqui para rastejar, nem para imitar o passo lerdo dos bípedes que se amontoam à nossa volta. Deveríamos ruflar as asas e subir, subir, subir, até o sol, até as estrelas, até a escuridão silenciosa e confortante do espaço sideral. Daí, os nossos sonhos de grandeza, a nossa vontade de ser os protagonistas da história universal, esta necessidade que temos de voar, cantar, vencer, sonhar, viver. Somos iguais a anjos! E por que não o fazemos? Por que nos limitamos a seguir, sem pressa, em nenhuma direção? Por que ficamos patinhando e definhando e nos debatendo exaustos no entorpecido lago da insignificância? Sim, somos iguais a anjos, mas anjos desengonçados, atrapalhados, desajeitados e canhestros. Como eles, nós caímos do céu e agora, desconjuntados, nos contentamos em viver a vida terrena dos répteis! Nós nos tornamos reptilianos. Sonhamos como anjos, mas andamos, vivemos e agimos como répteis. À moda das serpentes, o que franqueamos aos outros é peçonha e frieza...

Precisamos recuperar as nossas asas, reconquistar a nossa condição igual a anjos! Eu sei. Você já está pronto para contestar, e protestar e bradar suas objeções religiosas e metafísicas. Não cabe em nossa tradição essa ideia de que seres humanos e angélicos se misturem. Somos só humanos, feitos do pó da terra e condenados à poeira da estrada da vida. Quando erramos, a culpa é dos demônios que nos tentam incessantemente. Quando acertamos, atribuímos qualquer minúsculo e improvável acerto aos astros, ao destino. O nosso princípio mais solícito é, em todo caso, nos eximir sempre e totalmente de qualquer responsabilidade. Mas você não sente a ânsia? Não lhe lateja a vontade de ruflar as asas? Qualquer metafísica que se preste tem que nos dar pelo menos um átimo de esperança! Você crê? Sabe o que faria um anjo? Anjos são ventos e labaredas de fogo, que saem ao encontro das pessoas! O pão dos anjos chega na exata hora da mesquinha fome... Percebe o que nos falta para sermos anjos? Há anjos desengonçados e toscos, e eu quero ser um deles. Quero chegar na hora exata do sofrimento corriqueiro, da dor insuportável, do desespero, da desesperança e da morte. Desjeitoso e pesado, quero sair ao encontro das pessoas... Quero de volta as minhas asas... Quero ser igual aos anjos!

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