Tuesday, December 22, 2015

Embaraços do Professor

por Milton L. Torres

 Em trinta anos de magistério, algumas coisas embaraçosas já me ocorreram em sala de aula. A primeira aconteceu, em Pernambuco, no início da década de oitenta, quando, por causa de uma indisposição intestinal, tive que avisar os alunos do ensino médio que era provável que me ausentasse repentina e inexplicavelmente da sala. Mostrei-lhes o rolo de papel higiênico que carregava ostensivamente em um dos bolsos do guarda-pó, indumentária essencial, naquela época, para nos proteger dos danos do pó de giz, e especifiquei o tipo de atividade que deveriam desenvolver durante a minha ausência. O que, de fato, aconteceu... algumas vezes.
 Passaram-se mais de vinte anos até que me defrontasse com outra situação igualmente embaraçosa. Na Bahia, chamei um aluno do curso de fisioterapia à atenção e o forte rapaz empurrou a carteira para o lado, marchando resoluto em minha direção. Temi o pior e me encolhi à espera do golpe que eu já considerava inevitável. Ele se aproximou, me tomou pelos ombros e, com muita solenidade, me imprimiu um beijo no rosto, fazendo a promessa veemente de que não mais me causaria problemas.
 Não foi até há duas semanas que dois novos episódios voltaram a me deixar embaraçado. No primeiro deles, um aluno de grego me procurou enquanto eu aplicava uma prova a outra turma. Expliquei-lhe que não seria possível atendê-lo naquele momento e ele retrucou com voz grave: - O que tenho a lhe dizer precisa ser dito e você precisa ouvi-lo. Pedi, então, que ele voltasse no final da prova. Ele apareceu de novo cerca de meia hora antes do término da prova e ficou à espera do lado de fora da sala. Quando finalmente lhe dei atenção, o aluno me disse, em particular, que minhas aulas o haviam feito se sentir como se fosse um covarde. Segundo ele, a forma como eu conduzira as classes e o medo que ele tinha da tarefa intimidadora de aprender uma língua morta, fizeram com que ele se calasse diante do que entendia ser uma forma autoritária e humilhante de ensinar. Por um momento, o chão me faltou. Ele explicou que não havia outra pessoa de quem tivesse mais aversão e me prometeu que, se me encontrasse em qualquer outra situação da vida, ele me enfrentaria da forma que fosse necessária e que nunca mais se acovardaria diante de um abuso de autoridade. Sem reação, eu só consegui lhe fazer a pergunta: - Você se sente melhor? Ele me respondeu que sim e eu lhe disse: - Então, vá em paz.
 Jesus disse que a verdade liberta. Mas, se há verdade nas palavras daquele rapaz, ela não me fez sentir livre. Pelo contrário, como disse Melina Marchetta, em Saving Francesca, “eu me senti esquisito, embaraçado e indefeso, corando diante de minha petrificação e vulnerabilidade”. O rapaz se foi prontamente e eu fiquei remoendo aquelas palavras por duas semanas. Duas semanas exatamente até a minha próxima experiência embaraçosa.
 Ontem fui procurado por uma aluna do curso de tradutor no meu gabinete. Os corredores da faculdade já estavam praticamente desertos. Ela estava acompanhada de um colega de classe que queria que eu assinasse algumas fichas de estágio. Depois de colher minhas assinaturas, o rapaz passou a aguardá-la na antessala, conversando com minha secretária. Ela, de forma muito respeitosa, sacou um envelope com algumas fotos e me entregou uma longa carta, impossível de transcrever, na íntegra, aqui. Menciono apenas um trecho escolhido: “A sua vida marcou o meu coração. Tortura-me o pensamento de um dia não poder vir até sua sala, aconchegar-me ali e chorar, ou sorrir. Há um agradável, agradável, agradável deleite em sua presença. Posso sentir algo de Deus ao olhar para você: graça e paz!” Sem reação, ofereci fazer uma oração para que Deus a abençoasse. Ela me respondeu: - Calma! Ainda não terminei.
 A moça desembrulhou, então, um frasco de perfume, enquanto comentava: - É o meu perfume favorito e deixa partículas de brilho! Pediu, em seguida, que eu estendesse as mãos e começou a me derramar o perfume nas mãos, enquanto dizia: - Você não é Jesus. Por isso, derramo o perfume nas mãos e não nos pés. Depois disso, a moça tomou os longos cabelos anelados e, com eles, passou a me enxugar as mãos. Oramos, então, e ela me entregou um minúsculo cartão púrpura, com os versos: “Uma flor / flor será / se souber apreciar / o próprio perfume!
 Steve Jobs disse antes de morrer: “todas as expectativas, todo orgulho, toda vergonha de embaraços e fracassos, tudo isso empalidece diante do rosto da morte, deixando apenas o que é verdadeiramente importante. A morte o ajuda a evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há razão para não seguir os ditames do seu coração!” Por isso, não tenho medo de revelar meus momentos embaraçosos, as situações que anunciam os meus fracassos. Não acredito que, como uma máquina fotográfica, esses momentos embaraçosos me roubem a alma. Nenhum dos dois alunos tem razão. A verdade é que não sou tão mau quanto afirma o estudante de grego e nem tão bom quanto me considera a aluna de tradução. Só posso dizer, para salvação ou perdição, que continuo sem medo de embaraços, continuo disposto, em todas as circunstâncias da minha vida, a seguir os ditames do coração. Não tenho medo da verdade, porque ela está no meu coração e só aqueles que conseguem olhar dentro dele podem ter um vislumbre de quem eu sou realmente. A diferença não está em mim, mas no olhar das pessoas. Eu ainda sinto, vagamente, aquele perfume nas mãos. Vão em paz!

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