Monday, December 17, 2012

Resenha: Deus, um Delírio

DAWKINS, Richard. Deus: um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 520 p.




por Milton L. Torres



O novo livro de Dawkins, como suas obras anteriores Rio do Éden e O capelão do diabo, é um inclemente e contínuo ataque à crença em Deus e no criacionismo. Não obstante, ao assumir essa postura beligerante, Dawkins se afasta daquele a quem tem atribuído o papel de mentor: o próprio Charles Darwin. Escrevendo a seu filho, em 1880, Darwin afirmou ter pouco interesse em combater o cristianismo e o teísmo. Segundo ele, era melhor evitar os confrontos com a religião e confinar seus escritos à ciência. Dawkins, por outro lado, não se contenta com o fato de que a boa ciência gradualmente solapa as bases da religião cega, ele quer uma mudança imediata de regime. Seu desejo, por isso, é destruir todas as formas de religiosidade. Diferentemente de T. S. Eliot que escreveu que a humanidade não pode suportar uma dose muito grande de realidade, Dawkins proclama que a compreensão de que a religião é uma fraude é o tipo de realidade que faria bem a todas as pessoas. Por essa razão, muitas pessoas têm definido Dawkins como um campeão da moralidade, um profeta da ciência. E a visão que ele nos oferece é bastante trágica: o propósito da vida é a própria vida e a entropia é o fim de todas as coisas.



De fato, ao tecer o breve comentário abaixo sobre a obra de Dawkins, meu objetivo não é combater o homem e, se possível, por essa razão, tentarei evitar o tipo de argumento ad hominem que agrava as diferenças em vez de suplantá-las. Devo reconhecer que a leitura de Deus: um delírio me levou a uma reflexão séria e, às vezes, árdua sobre a minha própria religiosidade. A insistência de Dawkins quanto à influência negativa da religião na história da humanidade me soou tão sincera e vigorosa quanto a voz profética de um Isaías ou Jeremias. No entanto, é impossível não deixar de perceber a truculência da denúncia de Dawkins. Aliás, a palavra “truculência” é um de seus termos favoritos para descrever a reação de muitos religiosos a seus escritos. Sem tentar isentar de culpa esses religiosos, a mim me parece que, em nosso mundo imperfeito, truculência gera truculência. Além disso, o livro de Dawkins é valioso porque nos mostra, de forma intensificada, como muitos integrantes da comunidade científica enxergam hoje os religiosos. É possível que Dawkins seja apenas uma versão exacerbada de outros cientistas mais comedidos. E isso nos adverte, de forma bastante clara, que nós teólogos e religiosos não estamos sendo suficientemente sábios em nosso contato com esses intelectuais. Não se pode deixar de sentir certo grau de pejo quando somos confrontados com uma visão tão negativa de nosso ofício, nossas intenções e nossa participação na história do mundo.



Os prefácios (p. 11-32) da edição em brochura, publicada posteriormente à edição em capa dura, apresentam a resposta do autor às críticas que já estavam sendo feitas ao livro. Devo confessar que essa foi a parte que menos me empolgou do livro e que, de fato, quase me fez desistir da ideia de ler a obra. Senti-me como se alguém tivesse me contado o desfecho da trama sem me dar a oportunidade de assitir ao filme. Ali, Dawkins critica seus opositores, argumentando que muitos intelectuais acreditam na “crença” mesmo sem professar formalmente qualquer religião. Por isso, fazem recurso a frases prontas do tipo “sou ateu, mas...” Dawkins analisa, então, os sete principais argumentos propostos contra seu livro. Para responder ao argumento de que não se pode criticar a religião sem ler os grandes teólogos, ele diz que está sendo coerente com o fato de que se pode perfeitamente criticar a religião pastafariana, que prevê a existência de um ser sagrado feito de macarrão, sem ler suas obras teológicas. Por que o cristianismo mereceria tratamento diferente? Para responder ao argumento de que ataca o que há de pior na religião, esquecendo-se do que ela tem de melhor, o autor afirma que a religião decente e contida é numericamente irrelevante. Para responder ao argumento de que mesmo os ateus querem se distanciar de sua linguagem intolerante, Dawkins defende sua própria linguagem, alegando que ela é menos destemperada que a dos políticos ou dos críticos de arte. Para responder ao argumento de que seu propósito é convencer aqueles que já concordam com ele, afirma que muitos ateus ainda estão “no armário” e precisam de sua ajuda para sair dele. Para responder ao argumento de que é tão fundamentalista quanto aqueles a quem critica, argumenta que o fundamentalismo implica na impossibilidade de se ser convencido do contrário, enquanto o autor afirma que está pronto para se tornar criacionista quando quer que alguém lhe apresentar uma evidência convincente favorável ao criacionismo. Para responder ao argumento de que a religião vai persistir a despeito dos esforços dos ateus, afirma que esse argumento só prova que mesmo aqueles que não têm religião gostam da ideia de que outros a tenham. Para responder ao argumento de que as pessoas precisam da religião, afirma que se trata de um argumento condescendente que defende a infantilidade de o universo deve nos suprir algum consolo. Segundo ele, historicamente a arte tem nos oferecido mais consolo do que a religião. Além disso, a compreensão de que existe uma loteria do nascimento nos consola mais do que a crença em deuses inexistentes. Por isso, chega à conclusão de que as pessoas se apegam à religião não por sua necessidade de consolo, mas devido à educação que receberam. Assim, o autor propõe quatro conscientizações: (1) que o ateísmo é viável; (2) que a explicação de Darwin é devastadoramente superior à criacionista; (3) que a religião é fruto da doutrinação na infância; e (4) que os ateus são muito numerosos, mas vivem “no armário”. Após lidar com as objeções ao título do livro, o autor encerra o prefácio apresentando as fontes para o livro: as observações de seus colegas, um documentário que produziu para a tv britânica, suas palestras em Harvard e seu site na internet.



No capítulo 1 (“Um descrente profundamente religioso”), Dawkins se defende da acusação de ser um homem profundamente religioso. Para ele, a admiração pelo universo é uma reação comum do cientista; tudo é uma questão de semântica. Por isso, tem o cuidado de definir termos importantes como Deus (“criador sobrenatural adequado à nossa adoração”), ateu (“alguém que crê que não há nada além do mundo natural e físico”) e religião einsteiniana (“reverência panteísta” pela natureza). Dentro dessa concepção, o panteísmo é um “ateísmo enfeitado” e o deísmo é um “teísmo amenizado”. A seguir, Dawkins afirma que a religião é um assunto passível de se discutir como qualquer outro. Por isso, ele reclama que há um respeito excessivo à religião: imunidade às ofensas, dispensa do serviço militar, eufemismos para os conflitos religiosos (geralmente descritos como “limpeza étnica”), primazia dos religiosos nas questões morais e justificativa para a discriminação dos homossexuais. Para provar seu argumento, o autor evoca o recente caso das caricaturas de Maomé.



No capítulo 2 (“A hipótese de que Deus existe”), o autor define que não tratará da existência do Deus desagradável do AT ou do insípido Jesus do NT, mas da versão mais defensável de Deus: “uma inteligência sobrenatural que projetou e criou deliberadamente o universo e tudo o que nele há, incluindo nós”. Antes disso, porém, ele ataca a doutrina da Trindade, chamando-a de imposição divisória da teologia, traço obscurantista característico da teologia, abracadabra dos charlatães, panteão dos católicos e assunto irrelevante para o feminismo (pois não há diferença entre um homem que não existe e uma mulher que não existe). Dawkins reitera que o foco do capítulo é o monoteísmo: seu desenvolvimento e a indistinguibilidade das três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo). A seguir, o autor procura mostrar o caráter secular da história norte-americana e afirma que, nos Estados Unidos, há um mercado aberto: o que serve para o sabão em pó, serve também para Deus. Dawkins evoca o agnosticismo como forte elemento presente no secularismo norte-americano. Para ele, não há nada errado no agnosticismo (termo, segundo ele, inventado por T. H. Huxley) quando não existem evidências conclusivas contra ou a favor de um fenômeno. No entanto, trata-se de uma estratégia pobre quando essas evidências existem. Depois de analisar o espectro das possibilidades, o autor propõe que o cristianismo tenha o mesmo ônus de prova que seria enfrentado por aqueles que cressem em um bule celeste, na fada do dente, no unicórnio ou no monstro de espaguete voador. Dawkins defende que o ateísmo nada mais é do que levar o monoteísmo a suas últimas consequências. Ou seja, o monoteísmo suplantou o panteão do politeísmo greco-romano; o que é necessário agora é que nos livremos de mais um deus. Na seção seguinte, o autor busca desqualificar a teoria dos magistérios não interferentes (NOMA), proposta pelo cientista S. J. Gould, segundo a qual a ciência trata das rochas e a religião da Rocha Eterna; a ciência estuda como funciona o céu e a religião como ir para o céu. Segundo Dawkins, essa teoria, sustentada por clichês chatos, é uma gentileza de alguns cientistas. No entanto, porque alguns cientistas não estão preocupados com assuntos morais, não significa que devamos dar “carta branca” para que os religiosos tomem todas as decisões morais. Embora extremamente conveniente para os teólogos, sua vantagem é uma concórdia amigável, uma barganha de duas vias. No entanto, o autor deixa claro que não vê sustentação lógica para que a ciência poupe a religião de seu escrutínio. A seguir, Dawkins define a oração pelos enfermos como sendo “pedir que as leis do universo sejam anuladas em nome de um único requisitante, confessadamente desmerecedor” (p. 92) e apresenta experiências científicas que, segundo ele, provam que tais orações não afetam o resultado de uma enfermidade: um experimento levado a cabo por Francis Galton, primo de Darwin, e outro conduzido pelo físico Russell Stannard. No caso desta última, patrocinada pela Fundação Templeton, órgão confessamente cristão, depois de se gastarem 2,4 milhões de dólares, as conclusões publicadas no American Heart Journal, de 2006, indicaram que não houve diferenças entre os pacientes que foram alvo de preces e os que não foram. O autor apresenta, então, as explicações do teólogo Richard Swinburne, da Universidade de Oxford, acerca das razões por que o experimento da Fundação Templeton falhou: (i) Deus só atende as preces feitas por bons motivos; (ii) o sofrimento faz parte do plano de Deus; e (iii) se Deus quisesse provar sua própria existência, teria meios melhores de fazê-lo. Inclui, ainda, as justificativas de dois outros teólogos: (i) Deus quis mostrar que a religião não é competência da ciência (R. Lawrence) e (ii) a ciência ainda não descobriu um método capaz de entender o fenômeno religioso em sua plenitude (Bob Barth). Para mostrar que o agnosticismo nunca deveria ser um posicionamento absoluto, Dawkins desenvolve a tese de que, hoje, por exemplo, somos menos agnósticos sobre a existência de vida extraterrestre. A razão disso seria (i) que a famosa equação de Drake (que exigia estimativas para sete termos, se quiséssemos calcular o número de civilizações que teriam se desenvolvido de forma independente no universo) é hoje muito menos intimidadora; (ii) que o “princípio da mediocridade” especifica que não deve haver nada de especialmente incomum no lugar em que, por acaso, vivemos no universo e (iii) que a descoberta do efeito Doppler nos deu uma ideia muito mais precisa acerca da natureza do universo. Dawkins fecha, então, o capítulo com a tese de que, mesmo se descobríssemos que os deuses eram astronautas, isso não provaria a existência de deuses, pois (i) tecnologia não é magia; (ii) sobre-humano não é a mesma coisa que sobrenatural; (iii) guinchos não são a mesma coisa que guindastes; e (iv) origem desconhecida não é a mesma coisa que origem divina.



No capítulo 3 (“Argumentos para a existência de Deus”), Dawkins divide os argumentos favoráveis à existência de Deus em dois grandes grupos. No grupo dos argumentos a posteriori (argumentos baseados na observação do mundo) ele inclui as provas de Tomás de Aquino: (i) os três argumentos da regressão (isto é, não existe causa sem causa), (ii) o argumento de grau (a perfeição da beleza é o que chamamos de Deus), o argumento teleológico ou do design (as coisas só podem parecer projetadas se tiverem sido projetadas). No grupo dos argumentos a priori (baseados puramente na lógica), Dawkins inclui, primeiramente, o argumento ontológico, de Anselmo da Candelária, segundo o qual o próprio fato de pensarmos que Deus existe garante sua existência. Dawkins considera que o argumento ontológico já foi suficientemente refutado por Gaunilo (contemporâneo de Anselmo), Bertand Russell, David Hume, Immanuel Kant, J. L. Mackie e Douglas Gasking. O autor menciona, então, o argumento para cegar, usado por Êuler contra Diderot: “(a+bn)/n = x, portanto Deus existe, rebata!” Trata-se de um tipo de argumento ad hominem, que explora a ignorância do objetor e que, em tempos mais recentes, parece estar funcionando ao contrário. A seguir, o autor lista outros argumentos a priori: (i) o argumento da beleza (o homem não pode ter produzido música/arte tão bela, por isso, deve ter sido Deus quem o inspirou); (ii) o argumento da experiência pessoal, contra o qual Dawkins invoca o poder de simulação do cérebro, os sonhos, a imaginação, as alucinações e as visões em massa; (iii) os argumentos da confiabilidade do que está escrito, contra o qual o autor aponta para a natureza oral da tradição evangélica (o que ele chama de muitas gerações de “telefones sem fio”), o impacto de agendas religiosas, suas contradições evidentes e sua canonização arbitrária; (iv) o argumento da religiosidade dos cientistas, contra o qual ele alega que os cientistas só foram predominantemente religiosos até o século XIX e que hoje há um verdadeiro desespero para encontrar cientistas religiosos (dos quais há pouquíssimos ganhadores do Nobel); (v) o argumento da assimetria das consequências de Blaise Pascal (é melhor acreditar em Deus, pois, se você estiver certo, ganhará a vida eterna, mas, se estiver errado, será amaldiçoado para sempre), contra o qual Dawkins argumenta que estaria na natureza de um Deus perfeito respeitar o ceticismo honesto; (vi) os argumentos bayesianos (um mecanismo matemático para combinar muitas estimativas de probabilidade e chegar a um veredicto final, que possui a sua própria estimativa de probabilidade), contra o qual Dawkins argumenta que as pessoas religiosas são sabidamente incapazes de distinguir a verdade daquilo que gostariam que fosse verdade. No caso de sua objeção ao processo, segundo ele, aleatório e pouco confiável da transmissão do texto, o autor parece contra a opinião dos especialistas em crítica textual (mesmo os ateus) que afirmam que “sempre que um manuscrito é copiado, é quase certo que se cometem alguns erros. Mas a transmissão manuscrita não é um mero processo mecânico de acumulação de erros” (WEST, 2002, p. 13). O autor recorre a David Hume para dizer que “nenhum depoimento é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o depoimento seja de tal natureza que sua falsidade seria mais milagrosa que o fato que ele pretende explicar” (p. 130) e chega à conclusão de que “um Deus projetista não pode ser usado para explicar a complexidade organizada porque qualquer Deus capaz de projetar qualquer coisa teria que ser complexo o suficiente para exigir o mesmo tipo de explicação para si mesmo” (p. 153).



No capítulo 4 (“Por que quase com certeza Deus não existe”), Dawkins ataca o que ele considera o argumento favorito dos criacionistas, formulado recentemente por Fred Hoyle: “a probabilidade de a vida ter surgido na Terra não é maior que a chance de um furacão, ao passar por um ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747” (p. 155). O argumento do design inteligente é, segundo Dawkins, a mera reiteração desse antigo recurso à probabilidade. O autor argumenta, então, que a falácia do argumento reside no fato de que “por mais estatisticamente improvável que for a entidade que se queira explicar através da invocação de um designer, o próprio designer tem de ser no mínimo tão improvável quanto ela” (p. 156). Ou seja, para Dawkins, Deus é o Boeing 747 definitivo! Depois disso, o autor passa a enaltecer a virtude conscientizadora do darwinismo diante do que considera a evasiva pouco eficaz dos teístas (especialmente a de ATKINS, 1992): “o Deus preguiçoso de Atkins é... literalmente Deus ocioso, desocupado, desempregado, supérfluo, inútil. Passo a passo, Atkins consegue reduzir a quantidade de trabalho que o Deus preguiçoso tem de fazer, até que finalmente fica sem nada; ele pode nem se dar ao trabalho de existir” (p. 162). Diante disso, Dawkins afirma categoricamente que a Teoria do Design Inteligente (TDI) não é uma solução plausível para o problema da complexidade irredutível. Segundo ele, os evolucionistas sabem muito bem que o acaso não é uma alternativa e que a seleção natural é uma explicação muito mais satisfatória, pois, diferentemente da TDI, ela não duplica o problema e, além disso, oferece metáforas que explicam adequadamente o fenômeno da complexidade irredutível: (i) a escalada do monte improvável; e (ii) o segredo de um cofre. Essas metáforas superariam os argumentos criacionistas da irredutibilidade complexa da asa e do olho. Segundo ele, “os criacionistas têm razão em dizer que, se a complexidade irredutível puder ser adequadamente demonstrada, isso arruinará a teoria de Darwin. O próprio Darwin disse isso” (p. 170). Por outro lado, “embora saibamos pouquíssimo sobre Deus, a única coisa que podemos ter certeza é que ele teria de ser... de complexidade supostamente irredutível” (p. 170), o que também arruina a TDI. A seguir, Dawkins passa a explorar a tendência criacionista de hipervalorizar as lacunas nos registros fósseis, o que ele vê como resultado de uma “lógica defeituosa” condenada até pelo teólogo Dietrich Bonhoeffer e como uma espécie de contentamento com a ignorância. Segundo ele, com esse recurso, os criacionistas buscam o que seria uma “vitória por eliminação”, sem levar em consideração que haveria outras evidências evolucionistas além dos fósseis (p. 173). Dawkins recorda que quando indagaram a J. B. S. Haldane o que poderia desmentir a teoria da evolução, ele teria respondido: “fósseis de coelho no período pré-cambriano”. Apesar disso, até hoje não foram encontrados fósseis anacrônicos. De volta à TDI, o autor afirma que a atitude de seus defensores seria admissível diante de truques de mágica, enquanto é derrotista e preguiçosa em assuntos da ciência. De fato, ela se enquadraria no mesmo espírito que levou Agostinho a declarar que a curiosidade é uma versão mais perigosa da tentação. Por isso, Dawkins se vangloria das dificuldades de Michael Behe, o mentor atual da TDI, nas questões do flagelo bacteriano e do sistema imunológico. Para ilustrar a importância da curiosidade científica, Dawkins mostra como os cientistas já são capazes de explicar por que a Terra é ideal para a existência da água: (i) sua posição na região conhecida como “Goldilocks”; (ii) sua órbita quase circular (que impede seu afastamento dessa região); (iii) a proteção que recebe de Júpiter contra os asteroides; (iv) e uma única lua que não desestabiliza seu eixo de rotação. Embora Dawkins tenha geralmente uma forma bastante objetiva de argumentar e seja convincente com sua argumentação, para mim, o esforço mais insatisfatório que o autor faz vem de sua estranha insistência de que a TDI e o princípio antrópico sejam incompatíveis. A TDI diz que Deus propositalmente inseriu o planeta Terra na região de Goldilocks, enquanto o princípio antrópico afirma que a existência de água na Terra só foi possível por causa de sua localização naquela região. Sinceramente, não vejo como essas duas afirmações possam estar em contradição. Dawkins menciona também as condições necessárias para o aparecimento da vida na Terra: (i) existência de água; (ii) surgimento espontâneo da primeira molécula hereditária; (iii) número suficiente de estrelas e planetas para satisfazer as exigências da estatística; (iv) e abundância de elementos químicos. Em relação às exigências estatísticas, Dawkins afirma que o universo é tão grande que “mesmo com probabilidades tão absurdamente escassas, a vida ainda teria surgido em 1 bilhão de planetas” (p. 187). A seguir, o autor passa a explicar um ponto que já havia mencionado várias vezes antes: os evolucionistas não propõem que a evolução tenha ocorrido com base no acaso. Segundo ele, o acaso não é uma boa explicação para a diversidade das espécies (o que ele considera um dos equívocos mais graves daqueles que criticam o darwinismo). Isto é, o acaso pode até explicar a origem da vida, mas não a sua diversidade. De fato, Dawkins reconhece que haveria três barreiras para a evolução do homem na Terra: (i) a origem da vida; (ii) a origem das células eucariontes; e (iii) a origem da consciência. De qualquer forma, ele declara que a Terra é amistosa para com a vida por causa da seleção natural e do princípio antrópico. Isso resolveria a questão da primeira barreira, mas como explicar que a força E que liga os componentes do núcleo do átomo é ideal para a existência da vida? Se a força fosse pequena demais (0,006 em vez de 0,007), o universo não teria nada além de hidrogênio. Se ela fosse grande demais (0,008), todo o hidrogênio teria se fundido e criado elementos mais pesados. Ora, uma química sem hidrogênio não seria capaz de gerar a vida como a conhecemos, pois não haveria água. Os criacionistas dizem que, quando Deus criou o universo, sintonizou suas constantes fundamentais. Os evolucionistas recorrem a explicações que levam em consideração um multiverso com leis locais, ou big crunches com versões seriadas do universo, ou buracos negros capazes de fazer com que o universo se reproduza sob as condições da seleção natural e da hereditariedade. Neste momento, Dawkins se pergunta: por que não chutar o balde de uma vez e admitir a existência de um Deus? (p. 198). O autor responde que o multiverso, com toda a sua extravagância, é simples; Deus ou qualquer agente inteligente “teria de ser altamente improvável, no mesmíssimo sentido estatístico das entidades que se supõe que ele explique” (p. 199). Então, como os criacionistas reagem à ideia de que Deus é complexo e improvável? Swinburne (1996) nega a complexidade de Deus; Ward (1996) admite uma complexidade relativa e interna; e Peacocke (2004) postula que Deus apenas criou o universo com uma propensão para a complexidade. Dawkins aproveita, então, para falar de supostas tentativas por parte dos criacionistas de corromper os cientistas: (i) conferências científicas com maioria esmagadora de criacionistas convidados; (ii) a criação do prêmio Templeton (com uma premiação duas vezes maior do que a do Nobel) especialmente para pesquisadores criacionistas; e (iii) a popularização de “senhas” preconceituosamente favoráveis aos cientistas criacionistas. No entanto, diferentemente do que Dawkins pode querer ter transmitido em relação a essa suposta corrupção de cientistas ateus, qualquer pessoa que já circulou em meios acadêmicos sabe que as pressões ali sentidas em favor do evolucionismo não são nem menos intensas nem mais honestas do que os esforços que Dawkins reprova por parte dos criacionistas. O raciocínio de Dawkins, neste capítulo, é sumariado da seguinte forma: (i) é difícil explicar a origem da vida; (ii) a tentação natural é atribuir a aparência de design a um design verdadeiro (“guincho”); (iii) a tentação é falsa, porque a hipótese de que haja um projetista suscita imediatamente o problema maior sobre quem projetou o projetista; (iv) Darwin mostrou que as criaturas vivas , com sua improbabilidade estatística espetacular e enorme aparência de terem sido projetadas, evoluíram através de degraus gradativos, a partir de um início simples (“guindaste”); (v) não temos ainda um guindaste para a física, a melhor explicação para a origem do universo (ainda que insatisfatória) é a teoria do multiverso; (vi) não devemos perder a esperança de que surja um guindaste para a física tão bom quanto o darwinismo é para a biologia.



O capítulo 5 (“As raízes da religião”) trata das três possíveis explicações evolucionistas para a universalidade da religião: (i) a seleção de grupo; (ii) a teoria da religião como subproduto (TRSP); e (iii) a teoria da deriva genética (TDG). O capítulo abre com o imperativo darwinista da eliminação do desperdício. Como explicar, então, que com o utilitarismo impiedoso exigido pelo evolucionismo, existam fenômenos pródigos como os caramanchões, a formicação (antigo hábito dos pássaros de “tomar banho” no formigueiro) e a religião? A religião, por exemplo, demanda energia, consome recursos e limita o número de parceiros sexuais. Para entender essa aparente contradição, Dawkins sugere que redefinamos o conceito darwinista de benefício para o de “vantagem para a sobrevivência”, em um sentido amplo. Pode ser a sobrevivência de um fenótipo estendido (parasita) ou uma simples replicação. O autor procura, assim, provar que a presença da religião em todas as culturas humanas não garante que a religião tenha alguma vantagem a oferecer ao homem. À ideia de que a religião ofereça ao homem um placebo contra o estresse, Dawkins levanta duas objeções: (i) a declaração de George Bernard Shaw de que “o fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer muito mais do que o fato de um homem bêbado ser mais feliz que um sóbrio” e (ii) a declaração de Cathy Ladman de que “todas as religiões são a mesma coisa: culpa, com feriados diferentes”. À ideia de que a religião forneça consolo ao homem, ele responde com a frase de Steven Pinker: “uma pessoa que está com frio não encontra nenhum consolo em acreditar que está no quente”. À explicação de que a religião é uma hiperatividade de certa região do cérebro, Dawkins contrapõe a indagação de qual teria sido a pressão da seleção natural que teria favorecido sua evolução. À explicação política de que a religião serve como instrumento de dominação, o autor contrapõe que ainda quer saber por que as pessoas são vulneráveis aos encantos da religião, deixando portas abertas à exploração por parte de padres, políticos e reis. Ou seja, para Dawkins, é necessário encontrar uma explicação darwinista satisfatória para o fato misterioso de que um traço que ele considera culturalmente inútil tenha evoluído e se tornado universal sem ter nada de positivo a contribuir para a sobrevivência humana. Na busca dessa explicação, Dawkins cogita até mesmo na controvertida ideia da seleção de grupo (WILSON, 2002), segundo a qual a seleção darwiniana escolhe entre espécies ou outros grupos de indivíduos. Diante das formidáveis objeções que o conceito suscita, Dawkins prefere, então, relegá-lo ao reino da possibilidade, optando, em vez disso, pela TRSP, proposta inicialmente pelo próprio Darwin. Começando com a analogia das mariposas que voam em direção às velas, Dawkins levanta a hipótese no. 1 de que a religião é oriunda da pressão darwiniana sofrida pelas crianças para obedecer aos pais. Sua hipótese no. 2 é de que a religião seria o subproduto de disposições psicológicas normais como, por exemplo, o subproduto de um dualismo instintivo, o subproduto de uma teleologia instintiva (DENNETT, 1998; 2006), o subproduto de um dispositivo hiperativo de detecção de agente, ou o subproduto de nossa capacidade de nos apaixonarmos (FISCHER, 2006). Na explicação de Fischer (2006), a monogamia seria um instinto evolutivo temporário para proteger a prole. A teoria geral da religião como subproduto acidental (TRSP), um efeito colateral de uma coisa útil, é a que Dawkins (p. 248) pretende defender. Com base em uma analogia com a evolução da linguagem, a TDG propõe que um gene pode se espalhar por uma população não por ser um gene bom, mas simplesmente por ser “um gene sortudo” (p. 249). Por outro lado, essa deriva afetaria replicadores como os genes e os memes (as unidades de herança cultural). Um replicador seria “uma informação codificada que faz cópias exatas de si mesma, junto com cópias inexatas ocasionais, ou ‘mutações’... As variedades de replicadores que calham de ser eficientes em se autocopiar tornam-se mais numerosas em detrimento de replicadores alternativos que não se copiam tão bem” (p. 253). Dawkins reconhece, no entanto, as limitações da TDG quando aplicada aos memes: (i) os memes são menos estruturados que os genes; (ii) sua natureza física é ainda desconhecida; (iii) podem existir apenas no cérebro; e (iv) replicam-se com menos precisão. Por isso, o autor argumenta que “os detalhes podem flutuar de forma idiossincrática, mas a essência é transmitida imutada, e é só isso o necessário para que a analogia dos memes com os genes funcione” (p. 255). Assim, Dawkins reconhece com Richerson e Boyd (2005), que é preciso combater a impressão (deixada por DAWKINS, 2001) de que o gene é o único jogo darwiniano em ação. A seguir, Dawkins divulga as ideias de Blackmore (1999) de memeplexos semelhantes a cartéis de memes: “um memepelxo é um conjunto de memes que, embora não sejam necessariamente bons sobreviventes isoladamente, são bons sobreviventes na presença de outros membros do memeplexo” (p. 262). Ele propõe, então, a Teoria Memética da Religião (TMR), segundo a qual algumas ideias religiosas sobrevivem por mérito absoluto (isto é, sua capacidade de sobreviver independentemente dos memes que as cercam), enquanto outras por sua compatibilidade com o memeplexo preexistente. A seleção natural é lenta demais para explicar a rapidez da evolução da religião; por isso, Dawkins propõe uma seleção natural memética. Sua posição final é uma sobreposição da TMR com a TRSP. Dawkins também aceita que a religião é, pelo menos em parte, produto de um design inteligente (p. 266), mas não como proposto pelos defensores dessa ideia. Segundo ele, a religião evolui, mas tem o mesmo pedigree das modas e da arte: trata-se de uma invenção humana. Utilizando como estudo de caso a prática comum entre ilhéus primitivos de acabarem adorando as cargas que lhes eram trazidas pelos homens brancos em seus navios (ATTENBOROUGH, 1960), especialmente no Pacífico Sul, o autor chega à conclusão de que o que faz com que seja difícil perceber a intervenção humana, no caso da religião, seria: (i) a velocidade de expansão; (ii) o apagamento dos rastros; (iii) a diversificação; e (iv) a preservação das semelhanças com estágios mais antigos. Este capítulo é um alívio para o leitor criacionista. Depois de um intenso bombardeio por parte do autor aos principais postulados do criacionismo, tem-se a oportunidade de examinar, com mais detalhes, qual é a alternativa proposta por Dawkins. Com efeito, o autor é muito menos convincente como construtor de teorias do que como crítico de teorias já formuladas. Dawkins tem a capacidade de produzir críticas devastadoras (a frase de Lutero citada por ele na p. 251, se verdadeira, não é mais admissível às pessoas de intelecto: “quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”), mas decepciona quando tenta fazer sentido daquilo que procura explicar. Em minha opinião, o recurso à teoria dos memeplexos soa desesperado e pouco persuasivo: “cartéis de genes/memes” (p. 261) soam mais como o enredo de um desenho animado do que ciência séria.



O capítulo 6 (“As raízes da moralidade: por que somos bons?”) procura, primeiramente, explicar a origem darwiniana do senso moral. Dawkins alega que a moral cristã é incoerente porque procura defender a religião a qualquer preço. Suas explicações darwinianas para o senso moral passam pela teoria do gene egoísta: os animais tenderiam a “cuidar de familiares, defendê-los, dividir recursos com eles, advertir-los de perigos e mostrar altruísmo em relação a eles por causa da probabilidade estatística de que aquele parente tenha cópias dos mesmos genes” (p. 281). Há também o caso do altruísmo recíproco que funciona por causa das assimetrias nas necessidades e na capacidade de fazê-las. Há uma explicação darwiniana mesmo para fenômenos aparentemente exclusivos à raça humana como reputação e consumo conspícuo. Morcegos vampiros descobrem em que outros indivíduos de seu grupo social podem confiar, quem paga suas dívidas (em sangue regurgitado) e quais são os que trapaceiam. Da mesma forma, a doação altruísta pode ser uma propaganda de dominância ou superioridade (Efeito Potlatch): os zaragateiros dominantes afirmam sua dominância alimentando os subordinados. São, portanto, quatro as razões darwinianas para o altruísmo: (i) parentesco genético; (ii) replicação (isto é, o pagamento de favores recebidos); (iii) reputação; (iv) propaganda autêntica e impossível de falsificar. Dawkins explica a bondade como “erro” darwiniano, que precede a religião. Com base nas experiências de Hauser (2006) com testes de dilemas morais, o autor trata da busca científica por universais morais e da postulação de uma gramática moral universal, chegando à conclusão de que não há diferenças significativas entre os juízos morais de ateus e crentes. Segundo ele, essa seria uma prova favorável a uma explicação evolutiva para a moralidade. Então, passa a comentar por que Deus não precisa existir para que sejamos bons: ser bom apenas na presença de vigilância é imoral, sugere pessimismo e indica que precisamos não de religião, mas de polícia. Dawkins explora, por isso, a alta correlação que existe entre religiosidade e criminalidade e dá a entender que existem universais morais que prescindem da religião. Dessa forma, Dawkins defende que as morais não precisam ser absolutas como é pretendido pela religião e o patriotismo: “Deus e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e derramamento de sangue” (p. 303).



Dawkins dedica a primeira parte do capítulo 7 (“O livro do ‘Bem’ e o Zeitgeist moral mutante”) a provar que “quem pretende basear sua moralidade literalmente na Bíblia ou nunca a leu ou não a entendeu” (p. 306). Por isso, o autor aponta inadequações nos relatos do Antigo e do Novo Testamento. Dawkins compara a destruição causada pelo dilúvio de Noé com a declaração de alguns cristãos de que Deus usou o furacão Katrina para punir Nova Orleans por sua imoralidade. Segundo ele, “era de se esperar que um deus onipotente adotasse uma abordagem um pouco mais precisa para destruir pecadores: um infarto discreto, talvez, em vez da destruição a granel de uma cidade inteira” (p. 308). Analisando as histórias de Gênesis, Êxodo e Juízes, incomoda-se com “a farsa tragicômica do ciúme maníaco de Deus contra outros deuses” (p. 317). Para ele, a invasão da terra prometida em geral não se distingue, em termos morais, da invasão da Polônia por Hitler ou dos massacres dos curdos e dos árabes por Saddam Hussein. Finalmente, admira-se que Deus possa ter recomendado a pena de morte pela mera violação do sábado como dia de guarda. Segundo Dawkins, o próprio Jesus é o modelo para a tese de que não devíamos derivar nossa moralidade da Bíblia, pois seus ensinos rompem com a tradição do Antigo Testamento. Por isso, o autor sugere o lema “ateus por Jesus” (p. 323). De certa forma, o problema do Novo Testamento não seria com Jesus, mas com aqueles que teria criado a doutrina da expiação, o simbolismo da cruz e a ideia de pecado original. Mesmo assim, afirma que Jesus é culpado de exclusivismo cultural: “amai o próximo” significa simplesmente “amai outro judeu”. Por isso, emenda: “Jesus teria se revirado no túmulo se soubesse que Paulo estava levando seu plano para os porcos” (p. 332). Além disso, Dawkins vê inúmeros com os escritos do Novo Testamento: se as epístolas mostram um “João maconhado”, o Apocalipse é João sob o efeito do LSD (p. 332). Dawkins percebe os mesmos defeitos da Bíblia na Ilíada e outras obras da Antiguidade. No entanto, isso não o incomoda porque essas outras obras não mais são vistas como guias para orientar a vida das pessoas. Segundo Dawkins, uma consequência bastante negativa da religiosidade é a homogamia (isto é, o casamento com pessoas da mesma religião) que acaba produzindo (i) a rotulação das crianças; (ii) escolas segregadas; e (iii) os tabus contra casamentos externos. Na segunda parte do capítulo, Dawkins estuda o Zeitgeist (espírito da época) moral, propondo a aceitação de novos dez mandamentos. Para ele, os novos tempos (com o sufrágio feminino, o fim da discriminação aos negros, a recuperação do respeito aos animais, a preocupação ecológica e a condenação à guerra) exigem isso. As características dessa mudança do Zeitgeist incluem: (i) sua direção reconhecível e consistente; (ii) sua intensa rapidez; e (iii) sua sincronização. Dawkins busca a explicação para esses fatos no avanço tecnológico, na teoria dos memes e no desenvolvimento da educação. Segundo ele, o Zeitgeist moral muda, mas essa mudança não é impulsionada pela religião ou pelas Escrituras. Dawkins dedica a terceira e última parte do capítulo à tentativa de provar que Hitler não era ateu como se costuma pensar. Segundo ele, (i) a família de Hitler era católica; (ii) Hitler estudou em escolas católicas; (iii) pessoas que o conheceram intimamente o identificaram como católico (Rudolf Hess, Goering, Gerhard Engel; (iv) seus discursos contra o ateismo (em 1933) e contra os judeus (em 1922 e 1923) revelam sua religiosidade; (v) seu livro de memórias têm perspectivas nitidamente religiosas; e (vi) sua reação ao atentado de Munique (em 1939) foi atribuir a preservação de sua vida à Providência. Ainda assim, Dawkins reflete que mesmo que Hitler fosse ateu, isso não mudaria sua convicção de que o ateismo é um sistema superior, pois os ateus não fazem maldades em nome do ateismo: “Stálin e Hitler fizeram coisas extremamente cruéis, em nome, respectivamente, do marxismo dogmático e doutrinário e de uma teoria eugênica insana e acientífica com toques subwagnerianos” (p. 358). Dawkins termina o capítulo citando Harris (2007): “o perigo da fé religiosa é que ela permite a seres humanos normais colher os frutos da loucura e considerá-los sagrados.”



O capítulo 8 (“O que a religião tem de mau? Por que ser tão hostil?”) tenta explicar duas coisas: (i) por que os cientistas não devem ser considerados fundamentalistas e (ii) por que é necessário combater a religião. Segundo Dawkins, os cientistas não são fundamentalistas porque (i) admitem seus erros e os corrigem; (ii) não recorrem a fugas filosóficas ou alegações relativistas; (iii) não se pode confundir paixão com fundamentalismo; e (iv) não debocham da razão (como no caso do “julgamento do macaco” levado avante por William Jennings Bryan, em 1925, ou no caso do lema do Bryan College: “pense crítica e biblicamente”). Dawkins advoga que é preciso combater mesmo a religião “sensata” porque esta permite os abusos da religião fundamentalista: (i) a lavagem cerebral em crianças; (ii) a blasfêmia como passível de punição legal; (iii) a discriminação de homossexuais (como no caso famoso de Alan Turing); e (iv) sua obsessão antiaborto (como no caso de George Bush, Madre Teresa de Calcutá e Paul Hill). Dawkins se incomoda principalmente com dois tipos de argumentos usados pelos religiosos contra o aborto e a eutanásia: (i) o argumento do tipo bola de neve e (ii) o argumento Beethoven. No primeiro caso, os religiosos argumentam que, “se se permitir que os médicos acabem com a agonia dos doentes terminais, logo todo mundo estará despachando a vovó para ficar com o dinheiro dela” (p. 376). O segundo argumento, proposto originalmente por Maurice Baring (1874-1945), de que um aborto por razões de deficiência física ou mental poderia ter impedido o nascimento de Beethoven, é uma lenda urbana sem qualquer confirmação histórica, e é contrabalançado pela lenda proposta por Roald Dahl de que um aborto nos teria livrado de Hitler. Nesse ponto, Dawkins propõe sua tese de que “até mesmo a religião amena e moderada ajuda a proporcionar o clima de fé no qual o extremismo floresce naturalmente” (p. 388). O mais impressionante na tese de Dawkins é que apenas dez páginas depois de ter demonstrado sua insatisfação contra o argumento do tipo bola de neve, com o qual os religiosos não permitem a eutanásia porque esta poderia levar a abusos, Dawkins propõe um argumento do tipo bola de neve para defender a ideia de que não deveríamos permitir a religião porque esta poderia levar ao fanatismo!



O capítulo 9 (“Infância, abuso e a fuga da religião”) apresenta o que Dawkins considera as consequências da educação religiosa na vida das crianças. Começando pelo caso do sequestro de Edgardo Mortara, um menino de seis anos, por motivos religiosos, em 1858, o autor alega que a pedofilia de alguns padres católicos é menos prejudicial do que a educação religiosa imposta às crianças de qualquer confissão religiosa (p. 404). Para justificar esse posicionamento extremo, Dawkins faz referência aos traumas produzidos pela doutrina do inferno, ao sofrimento físico causado pelos rituais das antigas religiões, incluindo sacrifícios humanos, e das religiões de nossa época, incluindo a mutilação genital das meninas e a condenação ao túnel do tempo seiscentista das crianças amish. Finalmente, Dawkins ataca a educação criacionista em escolas públicas ou subsidiadas e ao problema da rotulação. O autor elogia os esforços dos ateus britânicos para se redenominar como “brilhantes” (brights) e escapar do impiedoso processo de rotulação empreendido pelos religiosos. O autor fecha o capítulo com uma proposta de educação religiosa como parte da cultura literária: com (i) uma ênfase no valor literário da Bíblia na mesma condição dos mitos gregos; e (ii) uma fidelidade meramente sentimental à tradição.



O capítulo 10 (“Uma lacuna muito necessária?”) analisa se a religião é necessária ao preenchimento de uma lacuna psicológica. Segundo Dawkins, frequentemente se diz que há uma lacuna no cérebro com o formato de Deus, que precisa ser preenchida, quer Deus exista ou não. O autor indaga, então, se essa lacuna não poderia ser mais bem preenchida com outra coisa: a arte, a amizade, o humanismo, a biofilia (amor à natureza e à vida), etc. Tendo já tratado de duas das supostas funções da religião (explicação e exortação), Dawkins se dedica agora às funções de consolo e inspiração. No caso da religião como consolo, o autor alega que a persistência da religião é um caso de “pedomorfose” (manutenção de características infantis na vida adulta) em que o “amigo imaginário” da infância assume os contornos do “Deus imaginário” da fase adulta. Para chegar a essa conclusão, Dawkins se apoia nas pesquisas de Jaynes (1976), que sugere que, até o ano 1000 a.C. (a aurora da consciência humana), as pessoas não sabiam que a voz de sua consciência vinha de dentro delas mesmas e, por isso, a atribuiam aos deuses. Esses deuses imaginários teriam funcionado, então, como uma caixa de ressonância para testar novas ideias. Para Dawkins, o poder de consolo da religião é um erro de lógica, pois não a torna verdadeira: “mesmo que todos os ateus fossem neuróticos desesperados levados ao suicídio por uma angústia cósmica infinita – nada disso contribuiria nem com um pingo de prova de que a religião é verdadeira” (p. 445). O autor alega que não há sequer evidência de que exista correlação entre crença e felicidade. Além disso, para ele, o consolo provido pela religião é de qualidade inferior àquele provido pela ciência: o consolo religioso (i) não é sincero (pois os parentes se desesperam diante da morte de um ente querido; e (ii) é sustentado por crenças contraditórias (como o purgatório e o limbo, por exemplo). No caso da inspiração da religião, Dawkins afirma que a ciência é muito mais inspiradora, oferecendo-nos transcender a estreita janela de luz à qual os nossos sentidos nos condenaram. Segundo ele, nossos cérebros são computadores portáteis que evoluiram para nos ajudar a sobreviver num mundo médio em que os objetos que interessavam à nossa sobrevivência não eram nem muito grandes nem muito pequenos. Nosso cérebro não está equipado para imaginar como seria ser um neutrino capaz de atravessar paredes. No entanto, a ciência nos ensinou que, contrariando nossa intuição comum, coisas aparentemente sólidas como rochas são na verdade compostas quase que totalmente de espaço vazio. Por isso, Dawkins chega à conclusão de que “o que vemos do mundo real não é o mundo real intocado, mas um modelo do mundo real, regulado e ajustado por dados sensoriais” (p. 471). O autor fecha o livro com a nota positiva de que fica “muito feliz de estar vivo numa época em que a humanidade tenta superar os limites do entendimento. Melhor ainda, talvez acabemos descobrindo que os limites não existem” (p. 475).



Holloway (2003) chama Dawkins de “Reverendo Dawkins”. Essa é uma descrição apropriada. Pelo que se percebe de seu livro, Dawkins é um homem sincero, bem humorado, inteligente, perspicaz e de convicções inabaláveis. Seu principal objetivo é cumprir uma “grande comissão”: ir a todo povo, tribo e língua e lhes anunciar os malefícios da religião, assegurando-lhes que Deus não existe. Ao fazer isso, Dawkins não poupa esforços, atropelando as tradições religiosas do ocidente e do oriente, do presente e do passado, principalmente o catolicismo. Duvido, no entanto, que seu livro funcione como ele deseja: as pessoas não aderirão ao ateismo pela mera leitura de suas páginas. Embora não falte persuasão a Dawkins, a sensação que se tem é que sua argumentação corre nos mesmos termos em que correria caso tivesse tentando convencer um torcedor do Flamengo a torcer pelo Fluminense. O autor demonstra pouca sensibilidade e procura convencer pelo esmagamento da posição do outro. Além disso, é admirável que uma pessoa tão inteligente e articulada não se tenha deixado tocar pelo fenômeno da espiritualidade, justamente, quem sabe, o ingrediente que lhe possibilitaria alcançar seu objetivo de chegar ao intelecto, coração e, por que não dizer, alma de seus leitores. Além disso, Dawkins demonstra certa ingenuidade ao constantemente insistir que alegar que Deus é a primeira causa exige que se identifique o que teria causado a existência de Deus (seu principal argumento). Essa objeção, repetida desde O diálogo dos mortos, de Luciano de Samósata, no segundo século A.D., nunca conseguiu se estabelecer como persuasiva nos círculos religiosos e, por essa razão, parece um tanto presunçoso imaginar que o faça agora simplesmente por ser formulada em termos darwinianos. O livro de Dawkins, pelo contrário, parece-me que vai fortalecer as crenças daqueles que se consideram religiosos e, no fim das contas, só vai mesmo convencer aqueles que, por uma razão ou outra, já concordam com seus postulados. Isso não significa, porém, que Dawkins falhe em nos provocar à reflexão e em denunciar muitas de nossas inadequações como pessoas assumidamente religiosas.



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