Monday, December 17, 2012

Resenha: Reading the Bible Again for the First Time

BORG, Marcus J. Reading the Bible again for the first time: taking the Bible seriously but not literally. San Francisco: Harper, 2001. 321 p.




por Milton L. Torres



O livro de Marcus Borg, professor de religião e cultura na Universidade Estadual do Óregon, propõe uma forma de ler a Bíblia de novo, mas como se fosse pela primeira vez. Sua preocupação fundamental é com o conflito religioso e cultural resultante de uma visão literal da Bíblia e seu foco principal é uma abordagem histórico-metafórica oriunda de dois contextos: o meio acadêmico e a congregação religiosa. O autor se identifica, primeiramente, como acadêmico, depois como luterano convertido à Igreja Episcopal e, finalmente, como crente na validade de todas as tradições cristãs estabelecidas. Com base nisso, ele apresenta as bases para uma abordagem histórico-metafórica da Bíblia e as aplica ao Antigo e ao Novo Testamento.

No primeiro capítulo, “Reading lenses: seeing the Bible again” (“Lentes de leitura: vendo a Bíblia de novo”, p. 3-36), Borg explica por que é preciso ler a Bíblia de novo. Segundo ele, o antigo modo de ler a Bíblia se tornou irrelevante, uma vez que a modernidade o demoliu. Infelizmente, segundo ele, muitas pessoas continuam a defender essa forma (que ele considera ultrapassada) de entender a Bíblia como se essa fosse a única forma válida. Borg chega a identificar os partidos envolvidos nesse conflito hermenêutico: os fundamentalistas e os liberais. Seriam três os principais pontos de discórdia: o evolucionismo, o homossexualismo e a busca do Jesus histórico. Para o autor, os fundamentalistas dos tempos atuais surgiram a partir de uma reação à cultura moderna, reivindicando a ênfase dos reformadores na autoridade da Bíblia. No entanto, Borg explica sua gênese a partir de eventos muito anteriores: a popularização das Escrituras após a invenção da imprensa, a fragmentação do cristianismo em diversas denominações, a substituição do literalismo natural pelo naturalismo consciente e o conseqüente aparecimento de um literalismo mitigado. A despeito dos protestos dos fundamentalistas, Borg considera o fundamentalista como sendo literalista, doutrinário, moralista, patriarcal, exclusivista, alienante e não tradicional. O fundamentalismo não seria tradicional porque é historicamente condicionado. Segundo o autor, o fundamentalismo se provou ineficaz diante dos grandes movimentos culturais de nossa época: o pluralismo religioso, a globalização, o relativismo cultural, a modernidade e a pós-modernidade. O impacto da modernidade, com seu cientificismo, sua ontologização da epistemologia, seu materialismo, seu ceticismo em relação à espiritualidade e sua obsessão pela factualidade, encurralou os fundamentalistas entre duas posições completamente estéreis: o literalismo e o reducionismo. Já o impacto da pós-modernidade fez com que a modernidade fosse rejeitada como apenas mais uma cosmovisão, mas, ao mesmo tempo, trouxe consigo uma valorização da experiência pessoal que acabou com a compreensão de que a verdade depende da literalidade.

No capítulo 2, “Reading lenses: the Bible and God” (“Lentes de leitura: a Bíblia e Deus”, p. 21-36), o autor defende que há três formas de se ver a Bíblia: como produto divino, como uma reação humana ao contato com Deus e como produto humano diante da inexistência de Deus. Para justificar sua idéia de que a segunda opção é a melhor, Borg procura provar, inicialmente, que a Bíblia não é um livro divino. Segundo ele, isso se percebe porque as estórias da criação são simbólicas, as leis bíblicas são regras ordinárias de conduta, há descrições de um Deus caprichoso e intolerante no Antigo Testamento e há preconceitos expressos na Bíblia que expressam uma suposta inferioridade feminina. O autor tenta provar, então, que a Bíblia é tampouco um livro simultaneamente humano e divino. Segundo ele, essa é uma dicotomia desnecessária e hermeneuticamente impossível, que acaba por conferir autoridade às nossas partes favoritas da Bíblia. Além disso, há, na Bíblia, uma absoluta preponderância da perspectiva humana, conforme a evidência interna atesta. Apesar disso, Borg não rejeita um caráter sagrado para as Escrituras. Segundo ele, esse caráter sagrado resulta do processo de canonização e é independente da origem da Bíblia. A Bíblia seria, então, sagrada porque a comunidade da fé lhe atribui importância vital e porque, por causa disso, ela lhe serve como lentes para contemplar o mundo. Seu caráter sagrado lhe atribui, por sua vez, autoridade dialógica. Isso significa que, em vez de ser uma regra absoluta de conduta, a Bíblia se torna uma fonte de relevância, uma força moldadora, um parâmetro de definição. A Bíblia se torna, portanto, uma espécie de sacramento por meio do qual é possível obter graça e por meio do qual se pode receber o Espírito Santo. Para provar essa afirmação, Borg usa a analogia da eucaristia. Segundo ele, a origem humana do pão e do vinho não os impede de se tornar veículos da graça de Deus. Então, como é a Bíblia a Palavra de Deus? Em sentido metafórico, em sentido sacramental, em seu status e função, não em sua origem. A Bíblia é o dedo que aponta para a lua e não a própria lua (p. 34).

O capítulo 3, “Reading lenses: history and metaphor” (“Lentes de leitura: a história e a metáfora”, p. 37-53) serve para explicar, com base nas premissas estabelecidas no capítulo anterior, como funciona o método histórico-metafórico (MHM) de interpretação da Bíblia. Trata-se de um método com ênfase histórico-metafórica, preocupado com o contexto e voltado para uma abordagem crítica e sócio-antropológica. O autor reconhece, porém, algumas limitações do método. Se controlado por uma cosmovisão moderna, pode levar ao ceticismo e a uma preocupação exclusiva com o passado. Além disso, o método tem uma natureza técnica que pode intimidar os menos cultos. A ênfase metafórica do método defende a não literalidade do texto bíblico e propõe uma atenção cuidadosa às suas nuanças e multivocidade. Por essa razão, pretende-se uma teologia narrativa, auxiliada pela crítica literária e profundamente psicológica. O importante não é crer, mas ver (p. 41). Ou seja, ninguém é chamado a crer em uma metáfora, mas a ver por intermédio dela. O autor justifica seu projeto hermenêutico com base na antigüidade da crença na natureza metafórica da Bíblia, defendida desde Orígenes, e com base no status da Bíblia como clássico da literatura. A abordagem metafórica precisa, porém, de mecanismos de controle como, por exemplo, a complementação por parte de uma abordagem histórica. Segundo Borg, a Bíblia apresenta três tipos de narrativas: as narrativas exclusivamente históricas, as narrativas que metaforizam a história e as narrativas exclusivamente metafóricas. Para se identificar o tipo de narrativa empregado em um texto, é necessário que se observa a evidência histórica e os limites do espetacular. Isto é, só são aceitos como factuais os milagres que fazem parte do modus operandi do sagrado. Segundo Borg, Jesus curava mesmo as pessoas (fato histórico), mas nunca andou sobre as águas. O andar sobre as águas foi simplesmente uma metáfora dos evangelhos. Para o autor, muitas pessoas atravessam três fases em sua forma de encarar a Bíblia. A ingenuidade pré-crítica seria a fase em que as pessoas dão crédito total às figuras de autoridade em sua religião e aceitam, sem questionamentos, sua interpretação do texto bíblico. Nessa fase não há fé, apenas ingenuidade. Uma segunda fase faz desenvolver o pensamento crítico e cria-se certa obsessão pela factualidade, gerando uma corrosão da religião, pois a pessoa se vê impedida de exercer a fé naquilo que ela crê ser impossível. Finalmente, a terceira fase é a da ingenuidade pós-crítica, que não é a mesma coisa que a ingenuidade pré-crítica, pois transcende a factualidade por meio da percepção da verdade existente nas narrativas metafóricas. O autor lamenta, no entanto, que nem todos conseguem fazer a transição para essa fase de maturidade espiritual.

O capítulo 4, “Reading the creation stories again” (“Lendo, de novo, as estórias da criação”, p. 57-84) abre a segunda parte do livro, dedicada à aplicação do MHM ao texto do Antigo Testamento. Borg, primeiramente, explica por que considera que a expressão Bíblia Hebraica é mais adequada do que a expressão Antigo Testamento. Segundo ele, ela demonstra respeito ao judaísmo e nega que o Novo Testamento tenha substituído o Antigo Testamento. Depois de rejeitar a cronologia de Usher (p. 59), o autor afirma que Abraão e Sara foram os primeiros personagens históricos da Bíblia (p. 62). Depois de analisar a teoria das fontes sacerdotal (P) e javista (J) para o relato da criação, Borg apresenta suas explicações para a inclusão de dois relatos metafóricos da criação no livro de Gênesis: a necessidade de dar uma elucidação pré-científica das origens humanas e propor uma cosmovisão que inclua convicções acerca da natureza de Deus e do homem. A leitura da fonte sacerdotal (Gn 1:1-2:3) dá ênfase ao sábado e é um reflexo de uma cosmologia primitiva. Trata-se de uma forma litúrgica, talvez um hino com antífonas ou uma doxologia. Como texto poético, é, portanto, metafórico. Na leitura javista (Gn 2:4ss), Adão não é um nome próprio, pois nenhum outro personagem bíblico tem esse nome. Essa compreensão metafórica dos relatos da criação vê o mito como uma forma de descrever a realidade. Ela difere da teoria da origem histórica, que vê a criação como singularidade histórica (a exemplo da teoria do Big Bang) e o universo criado como distinto de Deus (a exemplo do teísmo histórico), e da teoria da dependência ontológica, que vê o universo como sendo formado pelas emanações de Deus (a exemplo do panenteísmo). A realidade descrita pelo MHM, quando este é aplicado aos relatos da criação, é uma realidade em que tudo o que existe é bom, mas nem tudo o que acontece é. Esses relatos consistem de um esforço do autor bíblico para valorizar o mundo natural e para demonstrar que o homem mortal e caído está destinado à grandeza.

O capítulo 5, “Reading the Pentateuch again” (“Lendo, de novo, o Pentateuco”, p. 85-109) apresenta o Pentateuco como a cristalização de uma antiga tradição acerca da origem dos judeus, atribuindo status sagrado ao código mosaico. Para Borg, embora ambientado no séc. XIII a.C., o Pentateuco teria sido escrito entre 500 e 400 a.C., com a temática da promessa de Deus e seu cumprimento diante da esterilidade das matriarcas judias, diante das adversidades da vida, diante do cativeiro egípcio, diante da necessidade de uma legislação nacional e diante da infidelidade do povo. Borg apresenta, ainda, o princípio da consistência divina, proposto por John Dominic Crossan, de acordo com o qual Deus age, em nossos dias, da mesma forma como agia no passado. Sendo assim, pode-se dizer que Deus se interessa pela história e nela intervém, mas não da forma exata como o Pentateuco relata. Ou seja, Deus faz milagres, mas não do tipo descrito na travessia do mar Vermelho. A leitura metafórica do Pentateuco permite que Borg interprete o Egito como símbolo de todos os sistemas de dominação que existem ou já existiram no mundo, responsáveis pela exploração econômica (por meio de latifúndios e impostos injustos), pela opressão política e por usar a religião como forma de legitimação dessas práticas. O Pentateuco se torna, assim, um protesto e uma promessa de libertação em relação a essa dominação por meio da criação de uma sociedade igualitária, da revelação do ideal de Deus para com a humanidade e da revelação de que Deus cumpre suas promessas.

O capítulo 6, “Reading the prophets again” (“Lendo, de novo, os profetas”, p. 111-144) aplica o MHM aos livros proféticos, divididos em profetas anteriores e posteriores à secessão do reino. Estes últimos dividem-se em profetas menores e maiores, a depender do tamanho físico de seu texto. Para Borg, há nesses livros uma fórmula de predição e cumprimento que serve para historicizar a profecia, geralmente apenas o eco de um conhecimento escriturístico anterior. Para tal, os autores lançam mão de comentários, embelezamentos e passagens fora do contexto, o exemplo mais conspícuo disso sendo o uso neotestamentário da profecia de Is 7:10-17, aplicada por Mateus ao nascimento virginal de Cristo. Borg propõe que uma leitura mais madura dos profetas precisa se libertar dessa fórmula de predição e cumprimento e se ater à mensagem contextualizada dos mesmos. Para exemplificar isso, ele cita o caso do livro de Amós, que longe de se constituir em um livro de prognósticos é, mais que isso, uma obra de ferina denúncia contra os inimigos de Israel, contra o próprio povo de Israel, contra os ricos, contra sua forma de adoração e contra a injustiça social. Ou seja, em vez de nos fixarmos na dimensão escatológica do livro, deveríamos tentar compreender sua dimensão histórica estabelecida por formas literárias afins a um processo legal de quebra de contrato. Para alcançar seus objetivos, os profetas recorrem a uma estrutura de indiciamento e ameaça, lançando mão de atos proféticos (como a atribuição de nomes proféticos aos filhos, no caso de Oséias e Isaías) e atos dramáticos (como os de Jeremias e Ezequiel). Sendo assim, há várias maneiras de ler os livros proféticos. O ateu funcional vê os profetas como profundamente políticos e incidentalmente religiosos, com a sua paixão pela justiça e sua preocupação com o destino histórico simplesmente legitimando sua mensagem. Por isso, os considera como ficções literárias. O cristão esclarecido deve, no entanto, encarar a mensagem profética como fundamentada na experiência do sagrado. Ou seja, o profeta é uma pessoa e não um microfone (p. 125). A coragem do profeta vinha de sua experiência com Deus, mas ele seguia a tradição literária de sua época. Dessa forma, podemos dizer que os profetas tinham uma intimidade com Deus que os sensibilizava à situação de sua época, marcada por sistemas políticos de opressão social que incluíam a exploração do povo por parte das elites, um conflito entre a teologia real proposta pelo establishment e a teologia profética daqueles que se levantavam contra o status quo. Os profetas procuram, acima de tudo, incutir esperança. Então, por que nos é tão difícil apreciar sua mensagem dessa forma? Segundo Borg, temos uma tendência de projetar nossas angústias para o futuro. Isso é fruto da união do cristianismo com a cultura ocidental e de nossa incompreensão do valor da justiça social. Os profetas não pregavam uma justiça criminal destinada a punir os criminosos nem uma justiça civil que exigia que todos fossem tratados de forma igual. Eles pregavam a justiça social e atacavam as próprias bases da sociedade da época.

O capítulo 7, “Reading Israel’s wisdom again” (“Lendo, de novo, os livros sapienciais de Israel”, p. 145-182) aplica o MHM à literatura de sabedoria. A antiga literatura sapiencial de Israel era aquela com foco na vida quotidiana e voltada para temas práticos. Extremamente rica e diversa, apresentava uma temática abrangente e uma linguagem provocativa. Embora fizesse parte da seção escriturística conhecida como Escritos e fosse tradicionalmente associada a Salomão, essa literatura é difícil de datar, pois não faz referências a eventos históricos. O consenso dos estudiosos é que pertence ao período pós-exílico. Além dos livros canônicos de Provérbios (500 a.C.), Jó (600 ou 500 a.C.) e Eclesiastes (300 a.C.), a literatura sapiencial inclui, ainda, os livros de Eclesiástico (200 a.C.) e Sabedoria de Salomão (100 a.C.). Seu tom é inteiramente diferente do Pentateuco e dos livros proféticos, dando mais atenção ao indivíduo e à família. De acordo com Borg, os livros sapienciais não pretendem ter o status de verdade revelada e, por isso, apresentam uma natureza dialética e dialógica. Para ele, o livro de Provérbios contém duas grandes coleções: de poemas sapienciais (1-9) e de provérbios individuais (10-30). Na primeira parte, apresenta-se o “caminho” como a metáfora central da vida e se propõe uma escolha entre dois caminhos. A sabedoria personificada é introduzida como a primogênita da criação, como o símbolo do bom caminho e como um antecedente para uma imagem feminina de Deus. Em contraste, a mulher adúltera é apresentada como personificação antagônica à sabedoria, tornando-se o símbolo do mau caminho. Nessa seção, há total ausência do tema do além-túmulo. Na segunda parte, os provérbios individuais apresentam ilustrações práticas dos dois caminhos. A visão androcêntrica e homogênea de tais provérbios representa a boa esposa como tipo de sabedoria e a prosperidade como resultado direto da mesma. A pobreza é o resultado da preguiça e só se necessita de senso comum para que se alcance a felicidade. Trata-se de uma cosmovisão centrada no desempenho que põe ênfase na ordem do universo e que apresenta as dificuldades da vida como conseqüência do comportamento inadequado. O livro de Eclesiastes e Jó têm abordagens inteiramente diferentes, apresentando o que se pode chamar de sabedoria subversiva. Em Eclesiastes, a metáfora central é a da vida como um ato de se perseguir o vento. O livro rejeita a idéia de que o senso comum é a solução para os problemas da vida e apresenta uma nítida percepção das desigualdades sociais. O livro é marcado pelo tema da morte: sua inevitabilidade e aleatoriedade. Três justificativas são apresentadas para essa abordagem radicalmente crítica do senso comum ou da sabedoria convencional: ensino pelo contraste, pessimismo e depressão ou respeito pelo mistério da vida. Borg opta pela última dessas explicações, afirmando que, em Eclesiastes, a morte é uma lição didática para a vida. O livro de Jó, o qual Borg parece apreciar imensamente, é dividido, por ele, em prólogo (em prosa), diálogo poético entre Jó e seus acusadores (em três ciclos) e o epílogo que narra o encontro de Jó com Deus e constitui o clímax do livro. Em Jó se patenteia a completa inadequação do senso comum como fonte de sabedoria para a vida prática. Por essas razões, Borg considera que os livros sapienciais apresentam, de forma admirável, os conflitos existenciais: o conflito entre a religião de primeira e de segunda mão, o conflito entre o senso comum (sabedoria convencional) e a sabedoria alternativa (subversiva e misteriosa), os conflitos entre a teologia do Egito e a do êxodo, e os conflitos entre a teologia real e institucional e a teologia profética. Para Borg, os livros sapienciais antecipam, de modo adequado, as tensões existentes nas páginas do Novo Testamento.

O capítulo 8, “Reading the gospels again” (“Lendo, de novo, os evangelhos”, p. 185-225) abre a terceira parte do livro, dedicada à aplicação do MHM aos textos neotestamentários. Borg inicia este capítulo estabelecendo a importância da Bíblia Hebraica para o cristianismo. Segundo ele, a Bíblia Hebraica oferece aos cristãos a possibilidade de continuidade com uma respeitável tradição religiosa, uma linguagem imaginativa para os temas sagrados e uma sólida identidade. No entanto, Borg lamenta a gradual separação que acabou ocorrendo entre judeus e cristãos. Ele atribui tal fato a três razões principais: a recusa dos conversos gentios de aderir às estritas práticas judaicas, o desejo judaico de excluir os gentios e a crescente percepção romana das diferenças entre os dois grupos. Essa transição foi possibilitada por incidentes como a guerra dos macabeus (164 a.C.), a dominação romana (a partir de 63 a.C.), a diáspora causadora de um verdadeiro êxodo rural e os movimentos revolucionários que deram aos romanos uma desculpa para destruir Jerusalém. Os evangelhos se tornaram, em função disso, os relatos fundacionais do cristianismo. Como biografias públicas em uma longa tradicional oral, os evangelhos possibilitam leituras que buscam seu esboço de um Jesus histórico e percepções cristãs em função do Jesus canônico. Para ele, porém, o perigo de se confundir o Jesus histórico com o Jesus canônico pode levar à perda de credibilidade dos evangelhos, à incompreensão das metáforas por eles oferecidas e à perda de sua relevância para o presente. A confusão do Jesus histórico com o canônico, para Borg, passa por alto a experiência do sagrado, a justiça social profética, a crítica à sabedoria convencional (senso comum) e a ênfase evangélica na comunidade. Por isso, Borg propõe uma nova abordagem para os evangelhos que se volte para suas metáforas dentro de um contexto histórico, que os compreenda como construções temáticas e que tenha por base os temas desenvolvidos a partir das cenas inaugurais de cada evangelho. Assim, em Marcos, uma cena inaugural que salienta a iminência do reino de Deus põe ênfase no arrependimento como uma volta do exílio. Isto é, a salvação consiste de um caminho. Em Mateus, a cena inaugural com o sermão do monte apresenta a Jesus como um novo Moisés. De novo, a salvação é um caminho, desta vez representada pelo êxodo do Egito. A cena inaugural de Lucas coloca a Jesus na sinagoga de Jerusalém. Assim se dá a apresentação de um profeta profundamente engajado socialmente e ungido pelo Espírito Santo. Essa ênfase no espírito persiste no livro de Atos, onde ocorre, no Pentecoste, a reversão do mito da torre de Babel. Finalmente, o milagre das bodas, a cena inaugural do ministério de Jesus em João, sugere como esse evangelho difere dos sinóticos. Trata-se de diferenças de cronologia, geografia, mensagem e estilo de ensino. Borg demonstra não ter dificuldades em captar as metáforas dos evangelhos. O andar de Jesus por sobre as águas mostra que Jesus acalma as tempestades da vida (metáfora intrínseca) e que, por isso, tem autoridade para conduzir a Igreja (metáfora histórica). A multiplicação dos pães mostra que Jesus se importa com o que as pessoas comem e é, ao mesmo tempo, o pão que sacia a fome espiritual (metáfora intrínseca) e que ele provê alimento para nossa travessia do deserto (metáfora histórica). A cura dos cegos mostra que Jesus é luz (metáfora intrínseca) e que essa luz subverte as trevas (metáfora histórica). A declaração de que Jesus é “o caminho, a verdade e a vida”, comumente usada como texto clássico para a exclusividade do cristianismo, mostra que o caminho da vida passa pela morte (metáfora intrínseca) e que a salvação é, de fato, um processo de transformação semelhante ao da morte e ressurreição (metáfora histórica). Ou seja, o caminho não é uma salvação por sílabas Je-sus, mas um relacionamento pessoal e profundo com a pessoa de Jesus. Borg chega às seguintes conclusões em relação aos evangelhos: eles falam coisas extraordinárias de Jesus, eles são as narrativas mais importantes para o cristianismo e são profundamente verdadeiros.

O capítulo 9, “Reading Paul again” (“Lendo Paulo de novo”, p. 227-263) apresenta, inicialmente, cinco razões por que os estudiosos criticam os escritos paulinos: sua suposta perversão do evangelho, sua moral puritana, seu sexismo, seu preconceito contra os homossexuais e sua complexidade. Por outro lado os estudiosos, segundo Borg, também os admiram por três razões básicas: seu próprio condicionamento histórico, a coerência das cartas legítimas e o fato de suas metáforas estarem em inteira continuidade com as de Jesus. Borg sugere quatro fontes para o estudo de Paulo: as sete cartas legítimas, as três cartas escritas em seu nome, as três epístolas pastorais e o livro de Atos. Borg atribui extraordinária importância ao relato da conversão de Paulo na estrada de Damasco, narrado três vezes em Atos, mas afirma que, antes da conversão, Paulo recebeu uma boa educação em Tarso, cidade que, de acordo com Estrabão e Filostrato, era um centro de cultura helenista, famosa por sua filosofia e seu modo de vida frívolo. Além disso, Borg salienta a experiência do apóstolo como discípulo de Gamaliel, fariseu e fabricante de tendas. No entanto, para ele, nada se compara à experiência de Damasco, responsável pela criação do misticismo paulino. As experiências extáticas do apóstolo incluiriam, ainda, sua anábase celestial (2 Co 12:2-4), sua espiritualidade quotidiana, marcada por visões e revelação (2 Co 12:7) e sua contemplação da glória (2 Co 3:18). Depois de apresentar uma breve introdução às viagens de Paulo, Borg passa a analisar suas estratégias missionárias: visitas às sinagogas, reuniões em pequenos grupos (principalmente com gentios), criação de pequenas congregações em insulae (prédios de apartamentos) e villae (casas rurais), itinerância e acompanhamento pastoral por meio de cartas que deveriam ser lidas em voz alta e que não se propunham a fazer uma apresentação formal da doutrina cristã, mas tratar de temas exigidos pelas circunstâncias de cada igreja. Para Borg, os focos da mensagem de Paulo foram: a pessoa de Jesus, sua própria conversão, a inclusividade do evangelho e a iminência escatológica. Ao aplicar constantemente o termo Kyrios (“Senhor”) a Jesus, Paulo estava fazendo declarações anti-escravagistas, anti-pagãs e anti-imperiais. Borg também resolve a tensão teológica entre as metáforas da justificação pela fé e do estar “em Cristo” explicando-a como fruto da dialética paulina. Ou seja, Paulo contrasta a vida “em Adão” (sob o domínio do pecado) com a vida “em Cristo” (a nova criação de 2 Co 5:17-18), apresentando a metáfora da morte e ressurreição, por ocasião do batismo, como uma ilustração da transição da vida em Adão para a vida em Cristo. Trata-se, ainda, de uma transição da heteronomia e da autonomia para a teonomia. Como resultado disso, cria-se uma nova identidade no seio de uma comunidade espiritual e surgem solidariedade e igualdade social. Da mesma forma, a dialética paulina estabelece um contraste entre fé e obras com a metáfora da justificação pela fé, uma questão particular em Gálatas entre Paulo e os judaizantes, mas uma questão geral na epístola aos Romanos. Borg acredita que o tema da justificação pela fé é pouco compreendido e, por isso, tenta explicá-lo de forma clara. Para ele, (i) a justificação pela fé não nos isenta da observância da lei, (ii) não deve ser confundida com perdão, (iii) não é elemento decisivo para a salvação, (iv) não é um sistema de exigências e (v) é um relacionamento com Cristo. Ou seja, ser justificado pela fé é estar “em Cristo”. Finalmente, o capítulo fecha com uma exposição acerca da importância da expressão “Cristo crucificado” nos escritos paulinos. Para Borg, essa expressão (i) equivale a uma condenação do sistema imperial, (ii) equivale à rejeição da sabedoria convencional (senso comum), (iii) tem o valor de revelação do amor de Deus e (iv) é um símbolo da transformação que envolve a morte para o eu e mesmo a morte física.

O último capítulo, “Reading Revelation again” (“Lendo o Apocalipse de novo”, p. 265-296) trata inicialmente das principais correntes interpretativas do livro do Apocalipse: a milenarista, que enfatiza a iminente volta de Jesus, tendo sido popularizada por Hal Lindsey, a historicista e a preterista. Borg também traça a história da canonização do livro, que foi rejeitado, durante muito tempo, pela antiga igreja grega, por Eusébio de Cesaréia, por Cirilo de Alexandria, pelo cânon bizantino e pelos reformadores, especialmente Lutero e Calvino. Depois de apresentar uma introdução ao livro (autoria, data, estilo literário, etc) e um pequeno resumo de seu conteúdo, Borg declara (p. 293, n. 15) que, embora creia que João tenha tido visões oriundas de Deus, ele acredita que essas visões foram apresentadas literariamente e só incidentalmente correspondem à experiência real de João. Borg passa, então, a criticar a corrente futurista de interpretação do Apocalipse, que o apresenta como um criptograma do futuro, especialmente idéias como aquelas que defendem que a criação do Estado de Israel, em 1948, e o surgimento da China comunista são o cumprimento das profecias do Apocalipse. Borg defende uma interpretação historicista e preterista para o livro, argumentando que a evidência interna favorece a esse tipo de leitura. Ou seja, o principal objetivo do livro é identificar a antiga cidade de Roma como um poder opressor. Isso é alcançado, de forma brilhante, pela gematria de 666, pela identificação de Babilônia como poder que procura destruir Jerusalém (Babilônia o fez em 586 a.C. e Roma o fez em 70 A.D.) e pela identificação explícita de Roma em Ap 17:9, 18. Segundo Borg, a mensagem do Apocalipse se aplica ao futuro imediato de João e somente secundariamente ao nosso futuro. Seu propósito é consolatório. Ou seja, o Apocalipse falhou como visão política, mas não como visão religiosa, pois foi relevante para as pessoas da época de João e continua relevante na nossa época, pois fala às angústias comuns no coração humano. Segundo ele (p. 279), o Apocalipse sugere que a volta de Jesus é uma metáfora. O mais importante, portanto, é que, contra o pano de fundo de um conflito cósmico (bem compreendido pelos gregos e romanos por causa de sua familiaridade com o mito da luta entre Apolo e o dragão), o Apocalipse declare que Jesus é o Senhor. O Apocalipse mostra, além disso, que o problema de Roma não se limitava à perseguição religiosa. O Apocalipse é uma denúncia contra todos os sistemas que se sustentam por meio da opressão política e econômica legitimada pela religião. A Nova Jerusalém surge, nesse contexto, como uma utopia passível de se realizar, o sonho de Deus. É, por essa razão, que João não a situa no céu, mas na própria terra. Para Borg, isso significa que, em vez de nos alienarmos com sonhos de uma terra além da realidade e do tempo, deveríamos buscar, sob a orientação de Deus, a construção dessa utopia em nossa própria terra e em nosso próprio tempo. Para ele, as maiores virtudes do Apocalipse seriam (i) seu senso de justiça, (ii) sua condenação dos sistemas de opressão, (iii) seu tom profético e impressivo e (iv) seu poder de transcender a história. O epílogo do livro (p. 297-302) apresenta as conclusões de Borg sobre a Palavra de Deus: (i) a Bíblia fala com diferentes vozes: a voz de homens em busca de Deus, a voz do Espírito, as vozes no conflito entre a religião institucional e as denúncias contra ela, e as vozes no conflito entre a sabedoria convencional que defende o status quo e a sabedoria alternativa que o desafia; (ii) a leitura da Bíblia nos traz bênção: a experiência do sagrado, a convicção de que essa experiência nos faz melhores, e a convicção de que deus é justo e compassivo; (iii) a Bíblia nos faz um chamado para “grandes relacionamentos” (p. 301) com Deus e com o próximo (Mt 22:37-40); e (iv) a Bíblia nos conclama a viver em comunidade e a respeitar as tradições dessa comunidade. Para Borg (p. 302), na experiência religiosa, o papel da Bíblia é secundário apenas ao papel do Espírito Santo.



esta resenha foi publicada originalmente por mim em: GONDIM, Luiz Carlos L. . Por uma leitura mais globalizada e menos literal da Bíblia? Formadores: Vivências e Estudos, Cachoeira, v. 2, p. 262-273, 2008. Podem-se encontrar ali as objeções do filósofo e teólogo Luiz C. L. Gondim à forma como Borg propõe que as pessoas leiam a Bíblia.

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