Monday, December 17, 2012

Resenha: God Against the Gods

KIRSCH, Jonathan. God against the gods: the history of the war between monotheism and polytheism. New York : Penguin, 2004.




por Milton L. Torres



God against gods é uma obra que, conforme seu próprio autor admite (p. 1) procura mostrar o lado mais obscuro do monoteísmo e o lado mais nobre do politeísmo. Para o autor, o monoteísmo seria o responsável pelas principais formas de terror religioso encontradas no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Segundo ele (p. 6-7) a razão por que o politeísmo tem tido uma apreciação tão negativa na história se deve a sua difamação pelos profetas do judaísmo e pelos autores cristãos, mas o politeísmo seria muito mais tolerante, sincrético e atrativo do que os livros de história ensinam. Para Kirsch (p. 9-15) o paganismo seria uma invenção dos judeus e cristãos cujo rigorismo monoteísta se recusou a conviver com outras formas de religião. A palavra “pagão” tem o significado etimológico de “caipira” e jamais foi empregada pelos próprios pagãos em referência a si mesmos. Para provar sua tese, o autor dividiu o livro em duas partes: a primeira (com quatro capítulos) é dedicada ao fracasso das primeiras tentativas monoteístas e a segunda (com sete capítulos) à guerra do monoteísmo contra o politeísmo conforme esta foi travada a partir de Constantino.



O capítulo 1 “Against all the gods of Egypt” (p. 21-38) mostra como o monoteísmo não foi bem sucedido entre os antigos egípcios. Com base nos esforços de Aquenaton (séc. XIV a.C) para instalar um culto monoteísta ao deus sol, Kirsch mostra que o monoteísmo assume as características de uma contra-religião. Além disso, Kirsch afirma que o monoteísmo de Aquenaton não foi um movimento espontâneo, mas forçado pelas divergências existentes entre as diferentes castas de sacerdotes e os fatores econômicos delas resultantes. Dessa forma, não nos deveria surpreender que o politeísmo tivesse retornado ao Egito imediatamente após a morte do faraó.



O capítulo 2 “What did pagans do?” (p. 39-63) procura mostrar que as acusações trazidas por judeus e cristãos contra os cultos pagãos teriam sido infundadas. Cristãos e judeus teriam, propositalmente, exagerado suas referências às “atrocidades” e às “tentações” do paganismo. Segundo o autor (p. 42) as descrições pagãs de sexo cultual eram metafóricas do mesmo modo que o eram as afirmações de que os cristãos precisavam comer a carne e beber o sangue de Cristo. Além disso, segundo ele, o envolvimento de mulheres nos cultos pagãos era visto com desconfiança pelos judeus e cristãos que limitavam a inclusão feminina na adoração e que imaginavam que as mulheres só podiam ter participação sexual nesses cultos. A acusação de adorar ídolos é também rebatida pelo autor com a alegação de que isso também era simbólico, uma vez que Sêneca, Horácio e outros autores gregos e romanos sugeriam que o culto pagão tinha a mesma natureza dos atuais espetáculos de mágica no circo, em que os espectadores compreendiam estar presenciando atos de legerdemain, mas se deixavam levar pela atmosfera fantástica, tornando-se cúmplices de certa seqüência de eventos. Em relação à acusação de sacrifícios humanos, Kirsch procura mostrar que, durante a maior parte dos tempos bíblicos, eles já não mais eram praticados, tendo sido substituídos pelos jogos de gladiadores. Mesmo antes disso, porém, não eram marcados pela crueldade.



No capítulo 3 “Terror and true belief” (p. 65-91) o autor traça a história do monoteísmo judaico a partir da monarquia, detendo-se nas realizações religiosas de Josias e na guerra dos macabeus, em que o martírio teria sido inventado como prática religiosa (p. 80-81). Kirsch enfatiza que o judaísmo não era atrativo para o mundo greco-romano por três razões específicas: a circuncisão, as leis de saúde e o sábado (p. 89).



O capítulo 4 “Confessors and traitors” (p. 93-116) trata do choque entre monoteísmo e politeísmo no baixo império romano contra o pano de fundo da adoção de vários cultos orientais pelos romanos (especialmente o mitraísmo, o culto de Magna Mater e o culto de Ísis e Serape) e da filosofia greco-romana (especialmente o neoplatonismo). Para Kirsch, o judaísmo nunca havia constituído uma verdadeira ameaça ao Império Romano, mas quando os cristãos teriam supostamente abolido os elementos distintivos que faziam com que o judaísmo não apelasse ao cidadão romano, passaram a comparar os deuses tradicionais aos demônios e, além disso, recusaram-se a participar do culto ao imperador, os romanos passaram a considerar os cristãos como uma ameaça em potencial. Por isso, passaram a divulgar calúnias contra eles, chamando-os de incendiários, subversivos, pervertidos sexuais, onólatras, antropófagos, etc. Os cristãos passaram, então, a ser ameaçados com tortura, execução, trabalhos forçados, encarceramento, marcas distintivas, confisco de bens, entre outras coisas. No entanto, para Kirsch, as narrativas de martírios não passam de propaganda religiosa posterior, ficções que, segundo ele, não se encaixam na disposição romana para tolerar religiões diferentes.



O capítulo 5 “In this sign, conquer” (p. 119-145) trata da suposta conversão de Constantino ao cristianismo e sua influência em favor do monoteísmo. Após mostrar inicialmente que a perseguição de Diocleciano aos cristãos foi realizada porque este imperador tinha interpretado que a campanha cristã contra os deuses tradicionais prejudicara a paz dos deuses (p. 129-132) Kirsh traça como foi possível para Constantino, um bastardo, chegar ao poder em Roma, sob a patronagem de Cristo e do deus Sol.



No capítulo 6 “The harlot in the bishop’s bed” (p. 147-167) Kirsch trata do Edito de Milão e da criação de uma ortodoxia católica. Ao fazer isso, dá ênfase ao comportamento ambíguo do imperador que, embora professasse o cristianismo, aceitava cargos religiosos no paganismo (como o de pontifex maximus, por exemplo), cunhava moedas com efígies de divindades pagãs, permitia festas públicas oficiais em homenagem aos deuses tradicionais e se demorava em aceitar o batismo.



O capítulo 7 “The ruler of the whole world” (p. 169-192) faz ligações entre a suposta opção de Constantino pelo monoteísmo e suas inclinações pessoais. Para o autor, ali nasceu o primeiro Estado totalitário da história (p. 170-172) com a criação do primeiro serviço de espionagem e informação, cujos espiões/informantes ficaram conhecidos na história como agentes in rebus. A conseqüência disso seria uma aliança quase que indissolúvel entre Igreja e Estado (p. 178-179). Além das inclinações totalitárias, Constantino teria também preferido o cristianismo por razões de consciência. Tendo cometido atos indesculpáveis contra sua própria família, o imperador necessitava do perdão que o cristianismo lhe oferecia. Constantino assassinara o próprio filho (Crispo) a madrasta (Fausta) e o sobrinho (Liciano). Como um dos objetivos do capítulo é tratar da tensão entre cristianismo e paganismo na política do imperador, Kirsch tenta mostrar que a cidade de Constantinopla, fundada por ele, tinha características que refletiam essa tensão, apresentando elementos pagãos e cristãos na arquitetura, organização, etc.



O capítulo 8 “The orphans of Macellum” (p. 193-211) descreve os percalços da sucessão ao trono de Constantino. Constâncio II seguiu o exemplo do pai e criou um verdadeiro banho de sangue para garantir o acesso ao poder. O príncipe executou, entre outras pessoas, a Júlio Constâncio (seu tio e sogro) Dalmácio (tio) Hanibaliano (primo e cunhado) César Dalmácio (primo) o futuro sogro de seu irmão Constante, o marido de sua tia Anastácia e o filho mais velho de Júlio Constâncio. Os únicos parentes do sexo masculino que lhe restaram foram seus irmãos carnais (Constantino II e Constante) e os dois filhos mais jovens de Júlio Constâncio (Galo e Juliano) os quais degredou para Macelo, uma vila insignificante da Ásia Menor. Após a morte precoce de seus irmãos, Constâncio II se viu, porém, obrigado a recorrer a esses órfãos para conter a revolta liderada pelo pagão Magnêncio. Depois de receber importante ajuda de Galo, o mais velho dos órfãos, para conter a rebelião, Constâncio II o executou, temendo que este se tornasse seu rival.



O capítulo 9 “The secret pagan” (p. 213-235) mostra como se deu a conversão de Juliano ao paganismo por influência do bispo Pegásio, de seu pedagogo Mardônio e dos filósofos neoplatônicos Jâmblico e Edésio, sob o impacto de uma visita à cidade de Tróia, da leitura dos poemas de Homero e das atrocidades praticadas por Constâncio II contra a própria família. Juliano, o último dos órfãos de Macelo, participou de um taurobólio em Éfeso e foi secretamente iniciado nos mistérios de Elêusis. As descrições antigas de Juliano o apresentam como desengonçado e desgrenhado (Amiano Marcelino) olhos inquietos, risada histérica e corcunda (Gregório de Nazianzo). Mesmo com esses aparentes impedimentos, Juliano tornou-se mestre das letras e exímio estrategista militar, tendo conseguido o apoio dos pagãos para que se tornasse o novo imperador de Roma.



O décimo e último capítulo “Behold the rivers are running backwards” (p. 237-267) descreve a luta pelo poder entre Constâncio II e Juliano, e a vitória deste último. Juliano acaba produzindo uma verdadeira renascença da cultura clássica e das religiões pagãs. O novo imperador desmantela o sistema de espionagem romano e busca, utopicamente, criar uma igreja católica pagã. Tendo instaurado um regime seriamente comprometido com a moral, Juliano adota uma política austera que proibia a prática do vômito nas festas cristãs e cancelava os estipêndios públicos pagos aos sacerdotes cristãos. Suas tiradas anticristãs se tornaram conhecidas de muitos. Ele se referia ao cristianismo como ateísmo e chamava as igrejas cristãs de tumbas. Além disso, referia-se à doutrina cristã como constituindo mera oferta de graça barata. Os cristãos revidavam, chamando-o de açougueiro, uma referência clara a seu gosto pelo sacrifício de animais aos deuses pagãos.



Kirsch termina a obra com um epílogo intitulado “The handless scribe” (p. 269-284) no qual descreve como os “homens de preto”, uma facção radical do cristianismo, conseguiu levar ao trono um militar, Joviano, sem parentesco com Juliano. A seguir, menciona como Teodósio, a quem chama de primeiro inquisidor espanhol, assumiu o trono logo depois. A intolerância de Teodósio o teria levado a promulgar uma lei que Kirsch chama de “lei dos mil terrores” (p. 275) e que teria marcado, definitivamente, a vitória do monoteísmo sobre o politeísmo no Império Romano.



A obra de Kirsch assume interesse vívido para os cristãos de nossa época, não apenas por ser escrita com real paixão e linguagem cativante, mas, principalmente, porque nos adverte que há mais de uma versão para as narrativas históricas. Sobretudo, no entanto, a obra é oportuna porque nos previne de que podemos sucumbir a requintes de crueldade semelhantes aos percebidos nos mais detestáveis crimes cometidos ao longo da história, simplesmente por julgarmos que estamos fazendo a vontade de Deus e promovendo o avanço de Seu reino. Os fins não justificam os meios, e a obra de Deus é realizada quando nos sensibilizamos às diferenças, tornando-nos tolerantes em relação a elas. Se o amor não puder converter o outro a nossa causa, a violência jamais o conseguirá. É possível que o relato de Kirsch seja tão tendencioso quanto qualquer outro, favorável ou não ao cristianismo, contudo, isso não nos isenta de refletir acerca de como podemos ser mais tolerantes quando lidamos com aqueles que discordam de nós.



publicado originalmente em: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 16, ano 7, n. 2, mai.-ago. 2008.

http://www3.est.edu.br/nepp/revista/016/16milton.htm

No comments: